Começou há 33 anos. O monstro pedia mais combustíveis fósseis;
não fomos capazes de freá-lo. Então, emergiu a AntiPolítica. Parece tão
distante… agora, as crianças já não podem compreender o que eram países,
ou sociedades
Por John Feffer | Tradução: Inês Castilho
Certa vez, há muito, muito tempo, testemunhei diante da grande assembleia de nossa terra.
Quando descrevo esse fato para as crianças, hoje, soa como um conto
de fadas. Em certo tempo – antes do mundo estilhaçar-se num milhão de
pedaços – essa velha mulher era uma jovem idealista que tentou persuadir
nosso poderoso Congresso de que um monstro estava perseguindo nossa
terra.
“Eles acreditaram, tia Rachel?” – as crianças me perguntaram.
“Eles me ouviram, mas não me escutaram.”
“E o que você fez?”
“Pensei muito, escrevi muito e organizei uma apresentação ainda
melhor!, disse-lhes pacientemente. “Eu tinha de dar um jeito de tornar
aquele monstro visível para que aquelas pessoas poderosas pudesse
vê-lo.”
“Como era ele, tia Rachel?”
“Era invisível, crianças, mas podíamos sentir sua respiração quente. E
podíamos ver as coisas terríveis que fazia. Podia fazer os oceanos se
levantarem. Podia fazer as colheitas secarem nas lavouras. Ainda assim,
continuávamos alimentando esse monstro terrível.”
“Mas, por que?”
“É o que o monstro demanda. Alguns monstros querem devorar crianças
pequenas. Outros insistem em jovens donzelas. Mas este aqui insistia em
navios-tanque de petróleo e carregamentos de carvão. E, à medida que
crescia, exigia cada vez mais.”
A essa altura, as crianças estavam com os olhos arregalados. “E o que você fez?”
“Falei com aquelas pessoas poderosas novamente. E desta vez tentei
descrever o monstro com mais força.” À medida em que eu voltava ao
passado, o rosto das crianças transformava-se no daqueles políticos
mortos há tanto tempo. “Apresentei mais gráficos detalhados do aumento
das temperaturas. Citei estatísticas sobre o impacto da queima de
carvão, petróleo e gás natural. Mostrei fotos do que o gelo derretido e a
elevação do nível dos mares já haviam feito. E então mostrei a eles
imagens de como o futuro seria: cidades submersas, terras arrasadas pela
seca, oceanos mortos. Eles olharam e ainda não viram. Ouviram e
escutaram menos ainda. Pessoas poderosas — conclui — nem sempre são boas
pessoas.”
“E o que você fez?”, elas perguntaram de novo.
“Parei de falar, meus queridos. Vim para cá escapar do monstro. Vim para Arcadia.”
Pareciam desapontadas. As crianças conhecem os contos de fada. Elas
esperam que alguém – talvez um cavaleiro de armadura brilhante – apareça
de repente e mate o monstro.
“Não havia nenhum cavaleiro”, lamentei. “E o monstro ainda vive. Podemos sentir seu hálito quente até agora.”
Claro, meus jovens alunos não entendem bem minha história. Hoje, em
2050, não há mais Congresso nos Estados Unidos. Não há mais audiências
públicas. Não há mais painéis intergovernamentais ou reuniões globais. É
como se eu falasse para eles sobre banquetes romanos ou combates
medievais. E mesmo assim meus alunos sempre pedem mais histórias sobre o
mundo desaparecido de 2017, como se estivessem pedindo mais uma fábula
de Esopo. Mas eles não enxergam como essas lendas de tanto tempo atrás
estão conectadas com suas vidas de hoje.
Afinal, vivem num mundo pós-político.
A morte da política
Antes do termômetro global ficar fora de controle, antes da grande
pane econômica do início dos anos 2020, antes da escalada das batalhas
entre justiceiros e jihadistas, antes dea comunidade internacional
rachar como um espelho esmagado por um punho, houve aquela morte
inicial, quase despercebida à época.
Como os historiadores – aqueles que ficam para contar a lenda – irão
informar vocês, não houve funerais nem obituários para a morte da
política. E mesmo que tivesse havido, poucos teriam derramado algumas
lágrimas. A confiança que as populações tinham em seus representantes
naqueles dias era mais baixíssima. Nos Estados Unidos, meros 9% confiavam no Congresso, comparados com 18% que confiavam nas grandes empresas e 73% nos militares.
A política em Washington, onde eu vivia naqueles anos pré-diluvianos,
havia se tornado um cabo de guerra entre dois times odiados. Às vezes,
um lado vencia e arrastava o outro pela lama. Então a situação se
invertia. Não importa: no final das contas, estavam todos enlameados.
Sim, as coisas poderiam ter acontecido de forma diferente. Era
possível ainda adotar reformas radicais e formar uma nova geração de
políticos. Mas no momento de maior perigo – para si mesmos e para o
mundo inteiro – os norte-americanos viraram as costas para a política,
elegendo o candidato mais antipolítico da história do país. Os pais
fundadores fizeram de tudo para assegurar que o sistema não produziria
esse resultado, mas não havia como prever Donald Trump ou as
circunstâncias que o colocaram no poder.
Quando os primeiros europeus chegaram na América do Norte, mais de
meio milênio atrás, trouxeram armas muito mais poderosas do que os
machados de pedra e tacapes de madeira brandidos pelas nações
ancestrais. Mas não foram apenas as armas que se revelaram tão
devastadoras. Os europeus levavam dentro de si algo muito mais letal:
doenças invisíveis como a varíola e a gripe. Esses vírus golpearam os
nativos americanos como muitas foices, matando nove em cada dez habitantes originários do continente.
Muitos séculos depois, Donald Trump chegou em Washington munido das
armas explícitas da retórica extremista e do sangue-frio sociopata com
que destruiu seus opositores políticos. Mas o que ele carregava
escondido dentro de si foi o que seria, em última análise, mais
catastrófico. Embora tivesse concorrido contra o establishment
político na campanha eleitoral que o colocou na Casa Branca, também
jogou, para chegar lá, segundo as mesmas regras políticas. Lá no fundo,
porém, sua maior urgência era destruir completamente a política: tweet
após tweet, ultraje após ultraje.
E seu ataque à política acabaria com o mundo como o conhecíamos, por
volta de 2017. No final, tornaria irrelevantes depoimentos no Congresso e
o próprio Congresso. Ainda hoje, mais de trinta anos depois, os
cadáveres continuam sendo empilhados.
O julgamento de Paris
Ensino ciência para crianças pequenas aqui em Arcadia. Não é difícil
explicar os conceitos científicos básicos que tanto mudaram nosso mundo,
e temos um laboratório bem equipado para que façam experiências. Por
isso, eles entendem a ciência das mudanças climáticas. O que os deixa
desconcertados é como a crise aconteceu…
“Por que nossos avós não fizeram com que as fábricas trabalhassem em
dias alternados?”, uma garota brilhante me perguntou certa vez. “Por que
não usaram aqueles carros toscos somente no fim de semana?”
Nossas crianças conhecem pouco além de Arcadia, e esta comunidade é
completamente sustentável. Produzimos tudo o que necessitamos.. O que
não cultivamos, sintetizamos ou criamos em nossas impressoras 3-D. Temos
um comércio limitado com as poucas comunidades vizinhas. Se há uma
morte inesperada, emitimos outra permissão de nascimento. Se o nível de
nossas baterias solares cai durante o inverno, racionamos energia. Tudo é
reciclado, dos ossos de nossas galinhas aos nossos excrementos. As
crianças de Arcadia não entendem o desperdício.
Elas também não entendem o agora estranho conceito de comunidade
internacional. Nunca se aventuraram além dos muros de nosso pequeno
universo. Só viram o mundo exterior por meio do turismo virtual, o que
apenas reforça seu desejo de continuar aqui. Afinal, o mundo lá fora não
passa de uma coleção de pequenos fragmentos penetrantes, que meu
ex-marido costumava chamar de terras rachadas deste planeta. Meus alunos
não conseguem compreender como esses cacos, a maioria deles
microambientes extremamente perigosos, conseguiam juntar-se no passado,
formando grandes nações que às vezes cooperavam para resolver problemas
comuns. É como aquela velha história do elefante e os seis homens cegos.
As crianças de Arcadia podem entender as partes, mas obviamente, diante
dos acontecimentos das últimas três décadas, o todo lhes escapa.
Pensem naquela comunidade internacional, há muito desaparecida — digo
para eles — como um bebê chorão nascido em 1945 de pais briguentos. A
infância conturbada foi seguida por uma estranha juventude. Somente na
meia idade, com o fim da Guerra Fria, em 1989, finalmente caiu em si,
mas por pouco tempo. Em poucos anos entrou em senilidade prematura. Em
2017, com 72 anos, a comunidade internacional já havia passado a idade
de aposentadoria, com a saúde frágil e precisando desesperadamente de
assistência de saúde.
Essa idosa criatura coletiva, este Cavaleiro da Triste Figura, era
visto como nosso salvador, o matador do monstro horrível. Quando chegou a
hora, contudo, mal poderia levantar uma lança.
Sem nenhum conhecimento do ciclo de vida da comunidade internacional,
meus alunos não podem mesmo entender por que as temperaturas globais
continuaram a subir na primeira parte deste século, a despeito dos
melhores esforços dos cientistas, ambientalistas e cidadãos conscientes.
Vários países, Uruguai e Butão
entre eles, foram extraordinariamente longe na redução de sua pegada de
carbono. As pessoas adotaram o vegetarianismo, passaram a usar carros
elétricos, reduziram o uso de aquecedores no inverno – como se mudanças
no estilo de vida, por si só, pudessem assassinar o monstro.
Infelizmente, um problema global requeria uma resposta realmente
global. O acordo climático de Paris, assinado por 196 países no final de
2015, representava esse esforço. Somente dois países
recusaram-se a assinar, uma (a Síria) porque estava atolada numa guerra
civil e a outra (Nicarágua) por pura obstinação. Isso apesar dos termos
do acordo estarem longe do adequado. A comunidade internacional, que se
reuniu neste crepúsculo de cooperação, entendeu bem a enormidade do
desafio: impedir que as temperaturas globais subissem dois graus acima
da média pré-industrial. Na melhor hipótese, porém, o tratado de Paris
evitaria que as temperaturas subissem três graus. E como todos sabem agora, nem isso aconteceu.
Então aquela comunidade internacional abandonou
a própria ideia de sustentabilidade e abraçou seu primo menor, a
resiliência. Tento explicar às crianças que sustentabilidade tem a ver
com harmonia – manutenção de equilíbrio, nunca tomar mais do que damos
de volta. Resiliência, por sua vez, é fazer as adaptações requeridadas
por uma crise, para simplesmente sobreviver. A decisão de Paris, ao
consentir com a resiliência foi, na verdade, o reconhecimento do
fracasso.
Embora frágil, foi ao menos parte de um processo. É disso que se
trata a política democrática, digo para meus alunos. Você tem de começar
em algum lugar e esperar que melhore a partir dali. Afinal, há sempre a
possibilidade de que um dia você consiga até passar da resiliência para
a sustentabilidade.
Mas, claro, há também a opção de regredir, que é exatamente o que aconteceu.
A Contrarrevolução Trump
É um fato lastimável de nosso mundo que destruir seja tão mais fácil que construir. Qualquer um pode empunhar uma marreta; poucos podem usar uma espátula. Um espirro inadvertido pode derrubar o mais elaborado castelo de cartas.
É um fato lastimável de nosso mundo que destruir seja tão mais fácil que construir. Qualquer um pode empunhar uma marreta; poucos podem usar uma espátula. Um espirro inadvertido pode derrubar o mais elaborado castelo de cartas.
Donald Trump foi mais do que somente um espirro. Sua devoção
à destruição do “Estado administrativo” foi impressionante. Naquele
tempo, nós estávamos todos tão focados no lado doméstico da destruição –
a derrubada dos pilares do Estado de bem-estar social, a revogação do
sistema de saúde universal, a reversão da proteção e dos direitos de
voto legais de todos os tipos – que falhamos em prestar a devida atenção
para quanto aquela destruição espalhou-se pelo planeta e o devastou.
O novo presidente cancelou os troatados de comércio pendentes, tapou o
nariz para aliados tradicionais e questionou a utilidade de acordos
como aquele que desativava o programa nuclear do Irã. Mas esses eram
ataques em sua maioria bilaterais. Muito mais perigosas foram suas
ferozes investidas contra a governança internacional.
A mais importante delas, é claro, foi sua decisão de retirar os
Estados Unidos do acordo de Paris. É verdade que era um acordo frágil,
não obrigatório. Mas mesmo isso era demais para Donald Trump. O
presidente declarou
que o acordo colocaria os norte-americanos em desvantagem e forçaria os
trabalhadores e contribuintes a “absorver os custos” de reduzir as
emissões de gás do efeito estufa por meio da “perda de empregos, redução
de salários, fechamento de fábricas e produção econômica tremendamente
reduzida.” Não importava que nada daquilo fosse verdade. Programas de
energia renovável estavam criando
mais empregos bem pagos do que as indústrias de energia suja tentavam
manter. Em seu surto de destruição, contudo, o presidente Trump nunca
sentiu necessidade de justificar suas ações recorrendo a fatos
verdadeiros.
Além do mais, os Estados Unidos eram tanto o país mais rico como o
maior emissor de carbono do mundo. É como dizemos aos nossos alunos aqui
em Arcadia: se você é quem mais contribuiu cou bagunça, deveria ser o
mais reponsável
pela limpeza. É um conceito fácil das crianças absorverem. Apesar
disso, estava além do reconhecimento da maioria dos norte-americanos.
Pior do ser meramente indiferente, o novo presidente estava
determinado a apressar o aquecimento global, se necessário
unilateralmente, ao expandir a extração de petróleo perto do litoral; ao dar sinal verde para a construção de mais gasodutos e oleodutos; ao reduzir as restrições à indústria de energia suja; ao retirar o apoio para o desenvolvimento de energias alternativas; ao encorajar a produção e reduzir os limites de emissão para veículos que “bebem” gasolina; e ao cortar
o orçamento para a implementação de padrões ambientais de todo tipo
imaginável. Em outras palavras, Trump não estava apenas querendo deixar
enterrado o tesouro dos combustíveis fósseis. Estava ansioso para
alimentar o monstro ainda mais do que este demandava.
Se estivéssemos vivendo em tempos normais, poderia ter sido possível
lutar efetivamente em termos políticos contra esse assalto. Mas
exatamente quando a visão
baseada em uso carbono de Trump tomava os Estados Unidos e o mundo
explodia sobre nós, a política era levada para um quarto dos fundos e
estrangulada.
A Política da antipolítica
Eu me lembro do nascimento da antipolítica. Era jovem quando os
dissidentes do mundo “comunista” começaram a associar a atividade
política oficial a uma ordem imoral. Votar, acreditavam, era um gesto
vazio, quando o partido no poder recebia 99% dos votos. Os parlamentos
eram algo oco, quando o partido condutor e o politburo tomavam todas as
decisões. Quando a política está assim comprometida, todos — exceto os
oportunistas — recuam para a antipolítica.
O “socialismo real” morreu em 1989, e a política renasceu naquelas
terras de antipolítica – mas muito fugazmente. Em uma década, os novos
convertidos à democracia começaram a retornar à sua desconfiança inicial
em relação a tudo que era político e os políticos convencionais
tornaram-se os inimigos. A colaboração e o consenso eram mais uma vez um
anátema.
E então essa insatisfação com a política como a conhecíamos começou a
se espalhar-se para além do mundo pós-“comunista”. Eleitores de outros
lugares tornaram-se deslumbrados pelos políticos mais conservadores.
Donald Trump era parte dessa nova fraternidade de populistas
nacionalistas que incluía Vladimir Putin na Rússia, Recep Tayyip Erdogan
na Turquia, Rodrigo Duterte nas Filipinas e Viktor Orban da Hungria.
Todos eles começaram rapidamente a concentrar poder em suas próprias
mãos, numa tentativa de governar por decreto (ou, no caso de Trump, por
ordens executivas). No processo, usavam a antipolítica estrategicamente
para derrotar quaisquer desafios potenciais, em plano logal ou global.
Era bizarro que, em tantos países, os eleitores apressassem-se a se
privar de direitos civis através dessa nova antipolítica. Esses
autocratas chegaram ao poder não por meio de golpes mais de eleições.
Mais bizarro ainda era o fato de que, naqueles anos, eram cada vez mais
os jovens
que não mais consideravam importante viver numa democracia. Quando
apenas os velhos acreditam nesse sistema, ele também está à beira da
morte.
Talvez a culpada fosse a economia. Os principais partidos haviam quase uniformemente apoiado políticas que aumentavam o abismo
entre ricos e pobres, tirando dos jovens os empregos e qualquer
esperança no futuro. Não foi surpresa que perdessem a fé na democracia.
Ou talvez a tecnologia tenha matado a política. O computador e a
celular combinados reduziram a atenção necessária para o envolvimento
sustentável nos assuntos públicos. As microcomunidades criadas pelas
mídias sociais ocultaram a necessidade de interagir com aqueles que não
partilhavam as mesmas micropreocupações. E, claro todo mundo começou a
insistir em resultados imediatos a partir de um simples toque no
teclado, que se traduzia, no plano da política, como uma crescente
preferência pelos decretos.
Por um breve lapso, o “choque” Trump provocou uma reação. Nos Estados
Unidos, houve grandes marchas de protesto, enquanto e burocratas hostis
ao governo sabotavam-no – mas isso só fortaleceu a narrativa de uma
elite liberal irresponsável e hostil do “estado profundo”. Neste momento
de aparente reversão, os aliados de Trump na Europa até perderam
algumas eleições. Mas os vencedores dessas contendas mantiveram
políticas que atingiam os direitos da maioria. Então, na eleição
seguinte ou na outra, o previsível aconteceu.
Como aqueles de uma certa idade recordam, ao final o próprio Trump
perdeu o poder, anulado por sua própria destrutividade vingativa.
Naquele momento, seus críticos exultaram, apenas para descobrir que ele
seria substituído muito em breve por alguém que compartilhava sua
antipolítica destrutiva sem seus nocivos traços pessoais.
Trump chocou a comunidade internacional. Seus sucessores engoliram
isso. E como todo mundo nas terras rachadas do planeta hoje sabe, o
monstro continuou a ser alimentado, enquanto os termômetros, inundações,
secas, incêndios selvagens, níveis do mar, ondas de refugiados e todo o
resto mantinham seu crescimento inexorável.
O fim da infância
Contos de fada deveriam ter final feliz. Eu asseguro às crianças que
elas estão a salvo dentro de Arcadia. Podem ver, elas mesmas, o sucesso
de nossas colheitas. Estão suficientemente longe das ondas gigantescas
do oceano para não temer as águas. Participam da vida política
democrática de nossa comunidade. Exceto por um eventual colapso, Arcádia
é uma pequena ilha de esperança num mar de desespero.
As temperaturas continuam a subir. Do lado de fora, a luta por
recursos torna-se mais sangrenta a cada ano. Muitas das comunidades que
um dia pontilhavam a paisagem à nossa volta não passam de uma memória.
Os muros que circundam Arcadia podem ser quase inexpugnáveis e nosso
arsenal está bem abastecido, mas uma questão permanece. Podemos
sobreviver sem os nossos membros fundadores, que agora começam a morrer?
Nós criamos e educamos as crianças sob a ameaça do mesmo monstro,
ainda mais crescido. À medida em que elas crescem, alguns jovens acusam
minha geração e a mim por fracassar na destruição dessa criatura.
Infelizmente, elas não poderiam estar mais certas. Acredito que nós, ao
menos aqui em Arcadia, fizemos o melhor que pudemos. É triste, mas não
foi suficiente.
Logo será a vez de nossas crianças. Elas cuidarão das colheitas e
manterão o arsenal. Continuarão em busca de uma solução científica para
as mudanças climáticas — na falta de uma solução política e uma
comunidade internacional para aplicá-la. Caberá a elas garatir que o
monstro, por mais que bufe e ameace a nossa própria vida, não seja capaz
de soprar e destruir também a nossa casa.
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