Os filósofos das Luzes queriam que os cidadãos agissem como
súditos e soberanos. Quando resta-lhes apenas obedecer, prevalece a
sabedoria do chefe do tráfico
Por Eduardo Migowski
Passei a tarde de sexta feira em casa. Não consegui me deslocar para o
trabalho em função da situação do Rio de Janeiro. Na minha televisão
apareciam blindados, helicópteros e homens fardados. Todos fortemente
armados. O motivo era um cerco que estava sendo montado à favela da
Rocinha, maior do Brasil. Uma guerra entre quadrilhas de traficantes
rivais saiu do controle e o estado do Rio de Janeiro, falido, pediu
apoio federal.
O caos na Rocinha seria um fato isolado? Creio que não. Claro que o
problema é complexo e existem centenas de explicações igualmente
válidas. Mas eu queria pensar um pouco sobre a natureza dos regimes
democráticos e a relação entre a crise política que vivemos e esses
acontecimentos recentes. No início, esse texto vai parecer um pouco
abstrato, por isso peço um pouco de paciência ao leitor. No final
tentarei ligar todos os pontos aparentemente soltos.
No longínquo século XVIII, os filósofos iluministas definiam a
democracia como o sistema de governo em que o cidadão é ao mesmo tempo
súdito e soberano. Ele é soberano porque participa do destino coletivo.
Sua opinião importa e precisa ser ouvida. Ele é parte naquilo que
Rousseau chamou de Vontade Geral. O conceito de Vontade Geral não deve
ser entendido como a soma das vontades particulares, pois a Vontade
Geral deve necessariamente guiar-se pelo interesse comum. É dessa
intrincada equação, entre a soma das vontades particulares e o interesse
comum, que nasce a Vontade Geral.
Ao contrário do que pensam os liberais, na política a soma das partes
não forma o todo. A soma das vontades individuais é apenas a expressão
de interesses conflitantes, um jogo de forças sem direção. No fim,
prevalece quem tem mais poder. Todos perdem. É pura e simples dominação.
O filósofo Michel Foucault, invertendo a famosa frase de Clausewitz,
disse que a política é a guerra por outros meios. Eu diria que não
exatamente a política, mas a democracia é a guerra por outros meios.
Como lembrou Marilena Chauí, o sistema democrático é o único que aceita
os conflitos como legítimos e, desse modo, os mantém dentro dos limites
institucionais.
É preciso estar atento. A Vontade Geral choca-se, a todo o
momento, com as vontades particulares e corre-se o risco de que os
interesses acabem por prevalecer. É nesse momento de conflito que o
indivíduo deve ser súdito, ou seja, abrir mão de seus desejos egoístas
momentâneos. Mas nem sempre isso acontece.
Em 2011, o mesmo traficante que agora leva o terror à favela da
Rocinha, Nem, disse as seguintes palavras numa entrevista: “UPP não
adianta se for só ocupação policial. Tem de botar ginásios de esporte,
escolas, dar oportunidade. Como pode Cuba ter mais medalhas que a gente
em Olimpíada? Se um filho de pobre fizesse prova do Enem com a mesma
chance de um filho de rico, ele não ia para o tráfico. Ia para a
faculdade” (“Meu Encontro com Nem”, revista Época). Se o filho
do pobre fizesse vestibular com condições iguais a um rico, ele não iria
para o tráfico e eu não ficaria em casa, sem poder sair. A educação
pública de qualidade para todos, portanto, pode ser entendida como a
emanação da Vontade Geral. Ela assegura o bem e a tranquilidade comum.
O projeto das UPPs queria transformar os moradores das comunidades
carentes em súditos, sem lhes conceder a soberania. A ideia era impor a
ordem, sem democracia. Era acabar com os conflitos pela força, pelo
medo. Por isso estava fadado ao fracasso. Violência só produz mais
violência. Como numa panela de pressão, no primeiro furo, tudo iria para
os ares.
O Rio de Janeiro está sofrendo os efeitos negativos dessa política
desastrosa. Mas os erros locais não explicam tudo, o problema é ainda
mais sério. Nessa mesma entrevista, o traficante fez outra afirmação
desconcertante: “Meu ídolo é o Lula. Adoro o Lula. Ele foi quem combateu
o crime com mais sucesso. Por causa do PAC da Rocinha. Cinquenta dos
meus homens saíram do tráfico para trabalhar nas obras. Sabe quantos
voltaram para o crime? Nenhum. Porque viram que tinham trabalho e futuro
na construção civil.”
Independentemente da avaliação que cada um de nós tenha do
ex-presidente, há nessa frase algumas revelações importantes. Nem, o
traficante, disse que o PAC tirou de modo definitivo 50 homens do crime,
pois conseguiram um emprego e uma chance de mudar de vida. O
investimento público em infraestrutura é outro exemplo prático da
Vontade Geral. Um programa de obras públicas, agindo numa comunidade
carente, melhorando a vida dessas pessoas, gerando empregos e ajudando
na construção da paz. Emprego, renda, paz e crescimento econômico,
contribuem para o equilíbrio social.
A harmonia do todo é um bem coletivo que não pode ser alcançado pela
interação egoísta entre indivíduos atomizados. A sociedade existe, não é
pura abstração, ao contrário do que afirmou Margaret Thatcher. Foram
seus vícios que fizeram com que eu ficasse em casa na sexta feira ou que
um morador da Rocinha perdesse a prova da UERJ no domingo, uma das
poucas oportunidades que essas pessoas teriam para mudar a sua
realidade.
Liberdade formal não basta. Do que adianta a Constituição Federal
garantir a liberdade de ir e vir em casos como esse? O indivíduo, como
parte desse todo, é afetado por essa dinâmica corrosiva dos conflitos
egoístas A ideia de comunidade pode ser uma abstração, mas os conflitos
são reais e os tiros matam.
A regulamentação estatal necessita da confiança e do compromisso
individual com a coletividade. A tributação, por exemplo, é uma forma de
pagar dívidas passadas e a investir em projetos futuros. A lógica é
simples: eu devo parte do meu padrão de vida àqueles que me antecederam e
tenho uma responsabilidade com as gerações vindouras. Tal prática
estimula e sentimento de pertencimento. Portanto, é mais que uma medida
econômica, mas uma postura ética em que o indivíduo se perceber como
parte de uma estrutura que o transcende. Os impostos, ao serem aplicados
em programas como o PAC, ou em educação, serviriam à Vontade Geral. São
elementos básicos da democracia.
Claro que essa separação não é tão nítida e muitas vezes o dinheiro
público é vertido para outros fins. Mas o golpe que sofremos foi
arquitetado por pequenos grupos que, em nome de uma moralidade difusa,
colocaram o poder a serviço de poucos. O que os incomodava era a frágil
democracia que havíamos construído nas ultimas décadas. Com o golpe
votou-se uma PEC que limita os gastos primários. Programas como o PAC
agora são inviáveis. A política cortou os poucos laços que mantinha com a
soberania popular. A concorrência desmesurada e a falta de assistência
levam os indivíduos a buscar refúgios de diferentes formas. Não há vácuo
político, o poder atua em rede e, na ausência do Estado, outras formas
de agenciamento se fortalecem.
Nosso presidente, o mais impopular da história, aceita qualquer
demanda, qualquer pressão, para se manter no cargo. Nossa democracia
agoniza num jogo de forças entre vontades particulares, enquanto nosso
Estado se desintegra sem direção.
Após o golpe, o discurso político perdeu totalmente seu contato com a
realidade. Nossa tranquilidade vem de esperanças quiméricas. Porém,
para além da ilusão e da propaganda, existe a realidade, que teima em
nos mostrar a sua face mais perversa. A ilusão me diz que sou livre e
vivo numa democracia, porém no mundo real existem balas que podem me
matar. Nesse embate entre o real e a fantasia, por precaução, eu fiquei
em casa, mesmo com a Constituição cidadã em pleno vigor. Se a democracia
é a guerra por outros meios, sem democracia a guerra emerge pelos meios
tradicionais.
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