O que diferencia revolução, luta institucional, rebedia e
desobediência civil? Por que, nas últimas décadas, a ciência política
esqueceu este debate? Vale a pena retomá-lo?
Por Boaventura de Sousa Santos
Há
temas que, apesar de serem uma presença constante na vida da grande
maioria das pessoas, ora aparecem ora desaparecem do radar daqueles a
quem compete refletir sobre eles –
seja no plano científico, cultural ou filosófico. Alguns dos temas hoje
desaparecidos são, por exemplo, a luta social (mais ainda, a luta de
classes), a resistência, a desobediência civil, a rebeldia, a revolução
e, subjacente a todas eles, a violência revolucionária. Ao longo dos
últimos cento e cinquenta anos estes temas tiveram um papel central na
filosofia e na sociologia políticas porque sem eles era virtualmente
impossível falar de transformação social e de justiça. Hoje em dia, a
violência está onipresente nos noticiários e nas colunas de opinião, mas
raramente é referida aos temas anteriores. A violência de que se fala é
a violência despolitizada, ou como tal concebida: a violência
doméstica, a criminalidade, o crime organizado. Por outro lado, é sempre
de violência física que se fala, raramente de violência psicológica,
cultural ou simbólica e, nunca, de violência estrutural. Os únicos
contextos em que a violência é, por vezes, referida como política é a
violência nos países “menos desenvolvidos” ou “Estados falidos” e a
violência terrorista, considerada (e bem) como um modo inaceitável de
luta política.
Em
termos de debate filosófico e político, o nosso tempo é um tempo
simultaneamente infantil e senil. Engatinha por entre ideias que o
atraem pela novidade e lhe conferem o orgulho de ser protagonista de
algo inaugural (autonomia, competição, empoderamento, criatividade,
redes sociais). E, por outro lado, deixa-se perturbar por uma ausência,
uma falta que não consegue nomear exatamente (solidariedade, coesão
social, justiça, cooperação, dignidade, reconhecimento da diferença),
uma falta obsoleta mas suficientemente impertinente para o fazer
tropeçar na sua própria ruína. Como a luta, a resistência, a rebeldia, a
desobediência, a revolução continuam a constituir a experiência
quotidiana da grande maioria da população mundial – que, aliás, paga um preço muito alto por isso –,
a disjunção entre o modo como se vive e o que é dito publicamente sobre
ele faz com que o nosso tempo seja um tempo dividido entre dois grupos
muito assimétricos: os que não podem esquecer e os que não querem
recordar. Os primeiros só na aparência são senis e os segundos só na
aparência são infantis. São todos contemporâneos uns dos outros, mas
reportam-se a contemporaneidades diferentes.
Revisitemos,
pois, os conceitos senilizados. A luta é toda a disputa ou conflito
sobre um recurso escasso que confere poder a quem o detém. As lutas
sociais sempre existiram e sempre tiveram objetivos e protagonistas
muito diversificados. No final do século XIX, Marx conferiu um papel
especial a um certo tipo de luta: a luta de classes. A sua
especificidade residia na sua radicalidade (a parte perdedora perderia
tudo), na sua natureza (entre grupos sociais organizados em função da
sua posição face à exploração do trabalho assalariado) e nos seus
objetivos incompatíveis (capitalismo ou socialismo).
As
lutas sociais nunca se reduziram à luta de classes. A meio do século
passado, surgiu o termo “novos movimentos sociais” para dar conta de
atores políticos organizados em outras lutas, segundo outros critérios
de agregação que não a classe e para objetivos muito diversificados.
Esta ampliação não só alargava o conceito de luta social como dava mais
complexidade à ideia de resistência, um conceito que passou a designar
todos os grupos inconformados com o estatuto de vítima. É resistente
todo aquele que se recusa a ser vítima.
Esta
ampliação recuperava alguns debates do final do século XIX entre
anarquistas e marxistas, sobretudo o debate sobre a revolução e a
rebeldia. A revolução implicava a substituição de uma ordem política por
outra, enquanto a rebeldia significava a rejeição de uma dada (ou
qualquer) ordem política. A rebeldia distinguia-se da desobediência
civil, porque esta, ao contrário da primeira, questionava uma
determinação específica (por exemplo, serviço militar obrigatório) mas
não a ordem política no seu conjunto.
O
conceito de revolução foi-se alimentando com a revolução russa, a
revolução chinesa, a revolução cubana, a revolução argelina, a revolução
egípcia, a revolução vietnamita ou a revolução portuguesa de 25 de
Abril de 1974 (ainda que muitos, eu incluído, duvidássemos do seu
carácter revolucionário). A queda do Muro de Berlim veio retirar
atualidade ao conceito de revolução, ainda que ele ressuscitasse alguns
anos depois na América Latina com a revolução bolivariana (Venezuela), a
revolução comunitária (Bolívia) e a revolução cidadã (Equador), mesmo
que também nestes casos fossem muitas as dúvidas sobre o caráter
revolucionário destes processos. Com o levantamento neozapatista de
1994, o Fórum Social Mundial de 2001 e anos seguintes e os movimentos
indígenas e afrodescendentes, os conceitos de rebeldia e de dignidade
voltaram a dominar. Até hoje.
Subjacente às vicissitudes destes diferentes modos de nomear as lutas sociais contra o status quo estiveram
sempre duas questões: a dialética entre institucionalidade e
extra-institucionalidade; e a dialética entre luta violenta ou armada e
luta pacífica. As duas questões são autônomas, ainda que relacionadas: a
luta institucional pode ou não ser violenta e a luta armada, se
duradoura, cria a sua própria institucionalidade. Ambas as questões
começaram a ser discutidas ao longo do século XIX e explodiram em
momentos diferentes no final do século XIX e início do século XX. Por
que as refiro aqui? Porque, apesar de nos últimos trinta anos terem sido
consideradas obsoletas ou residuais, ganharam ultimamente uma nova
vida.
Institucional versus extra-institucional:
Esta questão agudizou-se com as divisões no seio do partido social-democrata alemão nas vésperas da Primeira Guerra Mundial. Lutar dentro das instituições? Ou pressioná-las e mesmo transformá-las a partir de fora por vias consideradas ilegais? A questão teve o seu curso durante cinquenta anos e pareceu ter-se esgotado com o fim da revolta estudantil de Maio de 1968. Obviamente que em diferentes partes do mundo continuou a haver insurreições, guerrilhas, protestos, greves ilegais, lutas de libertação; mas de algum modo foi-se consolidando a ideia de que representavam o passado e não futuro, uma vez que a democracia liberal, agora apadrinhada pelo neoliberalismo global, FMI, Banco Mundial, ONU, acabaria por se impor como o único modo legítimo de dirimir conflitos políticos. Tudo mudou em 2011 com a onda de movimentos de protesto em diferentes países: as diferentes primaveras de revolta, o movimento Occupy Wall Street, os movimentos dos indignados, etc. Por que esta mudança? Suspeito que a crise da democracia liberal tem se aprofundado de tal modo que movimentos e protestos fora das instituições podem passar a ser parte da nova normalidade política.
Esta questão agudizou-se com as divisões no seio do partido social-democrata alemão nas vésperas da Primeira Guerra Mundial. Lutar dentro das instituições? Ou pressioná-las e mesmo transformá-las a partir de fora por vias consideradas ilegais? A questão teve o seu curso durante cinquenta anos e pareceu ter-se esgotado com o fim da revolta estudantil de Maio de 1968. Obviamente que em diferentes partes do mundo continuou a haver insurreições, guerrilhas, protestos, greves ilegais, lutas de libertação; mas de algum modo foi-se consolidando a ideia de que representavam o passado e não futuro, uma vez que a democracia liberal, agora apadrinhada pelo neoliberalismo global, FMI, Banco Mundial, ONU, acabaria por se impor como o único modo legítimo de dirimir conflitos políticos. Tudo mudou em 2011 com a onda de movimentos de protesto em diferentes países: as diferentes primaveras de revolta, o movimento Occupy Wall Street, os movimentos dos indignados, etc. Por que esta mudança? Suspeito que a crise da democracia liberal tem se aprofundado de tal modo que movimentos e protestos fora das instituições podem passar a ser parte da nova normalidade política.
Luta armada versus luta pacífica:
A questão da violência é o tema que o pensamento político dominante (tão viciado no estudo dos sistemas eleitorais) evitou a todo o custo ao longo do século passado. No entanto, os protagonistas das lutas no terreno debateram-se continuamente com ele. Obviamente, nem toda a violência é revolucionária. Ao longo do século, quem mais recorreu a ela foram os contra-revolucionários, os nazis, os fascistas, os colonialistas, os fundamentalistas de todas as confissões e os próprios estalinistas após a perversão da revolução que empreenderam. Mas no campo revolucionário as divisões foram acesas: entre os marxistas e maoístas indianos e Gandhi; entre Martin Luther King Jr. e Malcom X; entre diferentes movimentos de libertação do colonialismo europeu e Frantz Fanon; entre movimentos independentistas na Europa (País Basco, Irlanda do Norte) e movimentos revolucionários da América Latina.
A questão da violência é o tema que o pensamento político dominante (tão viciado no estudo dos sistemas eleitorais) evitou a todo o custo ao longo do século passado. No entanto, os protagonistas das lutas no terreno debateram-se continuamente com ele. Obviamente, nem toda a violência é revolucionária. Ao longo do século, quem mais recorreu a ela foram os contra-revolucionários, os nazis, os fascistas, os colonialistas, os fundamentalistas de todas as confissões e os próprios estalinistas após a perversão da revolução que empreenderam. Mas no campo revolucionário as divisões foram acesas: entre os marxistas e maoístas indianos e Gandhi; entre Martin Luther King Jr. e Malcom X; entre diferentes movimentos de libertação do colonialismo europeu e Frantz Fanon; entre movimentos independentistas na Europa (País Basco, Irlanda do Norte) e movimentos revolucionários da América Latina.
Também
aqui – e pese embora a continuidade da luta armada no delta do Niger e
nas zonas rurais da Índia dominadas pelos naxalitas (maoístas) – a ideia
da violência revolucionária e da luta armada tem perdido legitimidade,
de que é eloquente demonstração as negociações de paz em curso na
Colômbia. Mas há dois elementos perturbadores de que quero dar conta. Em
muitos países onde a violência política terminou com negociações de
paz, a violência voltou (muitas vezes contra líderes políticos e de
movimentos sociais) sob a forma de violência despolitizada ou
criminalidade comum. El Salvador e Honduras são casos paradigmáticos e a
Colômbia pode vir a sê-lo. Por outro lado, a luta armada foi
deslegitimada porque falhara muitas vezes nos seus objetivos e porque se
acreditou que estes seriam mais eficazmente atingidos por via pacífica e
democrática. E se a crise da democracia se aprofundar?
Um dos
revolucionários que mais admiro e que pagou com a vida a sua dedicação à
revolução socialista, o Padre Camilo Torres, da Colômbia, doutorado em
sociologia pela Universidade de Lovaina, respondeu assim em 1965 à
pergunta de um jornalista sobre a legitimidade da luta armada: “Os fins
não justificam os meios. No entanto, na ação concreta, muitos meios
começam a ser impraticáveis. De acordo com a moral tradicional da
Igreja, a luta armada é permitida nas seguintes condições: 1) terem-se
esgotado os meios pacíficos; 2) existir uma probabilidade bastante alta
de ter êxito; 3) que os males resultantes dessa luta não sejam piores
que a situação que se quer remediar; 4) que haja um grupo de pessoas com
critérios ilustrados e corretos sobre o cumprimento das condições
anteriores”.
A um
pacifista como eu, que sempre lutou pela radicalização da democracia
como via não violenta para construir uma sociedade mais justa, causa
arrepios pensar se em muitos países os padrões de convivência pacífica e
democrática não estarão a degradar-se a tal ponto que as quatro
condições do Padre Camilo Torres possam ter resposta positiva.
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