O Brasil que está saindo do atual período de recessão é um país
praticamente sem uma burguesia industrial, limitado a uma burguesia
comercial que compra e vende produtos, papeis ou ativos públicos e
privados, com uma classe trabalhadora em situação muito precária,
buscando sobreviver e uma classe média assalariada que está
desaparecendo. A reforma trabalhista e a terceirização vão corroer os
empregos assalariados intermediários nas grandes empresas privadas e no
setor público. O que está emergindo é uma sociedade cada vez mais
polarizada entre os muito ricos e a maior parte da população
empobrecida. A avaliação é do economista Marcio Pochmann, professor da
Universidade de Campinas (Unicamp), ex-presidente do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e presidente da Fundação Perseu
Abramo, que esteve em Porto Alegre nesta segunda-feira (18),
participando de uma homenagem a Marco Aurélio Garcia e de um debate
sobre “O Capital”, organizado pela Fundação Maurício Grabois.
Em entrevista ao Sul21, Pochmann analisou a atual
situação econômica do país, reconhecendo que há alguns indicadores
apontando para uma interrupção da queda da atividade econômica, mas
ainda insuficientes para sustentar uma retomada consistente da economia.
“O governo Temer está aproveitando essa situação para passar a imagem
de que estamos saindo da recessão, embora as informações sejam muito
frágeis e não nos permitam muito otimismo acerca de uma retomada da
economia, podendo indicar, ao invés disso, uma trajetória de estagnação
da economia brasileira”, diz o economista que identifica algumas
mudanças profundas em curso no tecido social brasileiro.
Sul21: Nas últimas semanas, integrantes do
governo Temer vê citando indicadores econômicos que apontariam para o
início de uma retomada da economia brasileira. Essa retomada é real, na
sua opinião?
Marcio Pochmann: A recessão é um fenômeno anormal na
trajetória de uma economia capitalista e no Brasil não seria diferente.
A recessão iniciada no final de 2014 é a terceira desde 1980 quando o
Brasil constituiu-se como uma economia industrializada, ou a quarta, se
considerarmos a recessão de 1929, quando o país tinha uma economia de
base agrária-exportadora. A trajetória comum das recessões é que elas
têm um prazo reduzido de manifestação. As recessões de 1981-1983 e de
1990-1992 registraram uma forte queda da economia no primeiro ano, que
foi suavizada no segundo ano e depois voltou se aprofundar no ano
seguinte.
A recessão iniciada em 2014 avançou por uma trajetória diferente.
Tivemos dois de queda e agora, no terceiro ano, em 2017, a economia de
certa forma parou de cair. Do ponto de vista estatístico, há sinais de
saída dessa situação tão baixa. Mas não há indicadores que sinalizem
sustentação de um processo de recuperação, de tal forma que pode ser
algo parecido com o que vivemos em momentos anteriores nas décadas de 80
e 90. O governo tomou algumas medidas que viabilizaram algumas melhoras
do ponto de vista do consumo, como a liberação do Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço, a queda da taxa de juros, a melhora do comércio
externo e a excelente safra agrícola. Então, de fato, há elementos que
ajudam a entender por que a economia não seguiu na recessão. Ela
estancou em um patamar relativamente baixo.
O governo Temer está aproveitando essa situação para passar a imagem
de que estamos saindo da recessão, embora as informações sejam muito
frágeis e não nos permitam muito otimismo acerca de uma retomada da
economia, podendo indicar, ao invés disso, uma trajetória de estagnação
da economia brasileira. Não há motores que possam indicar uma retomada
do crescimento da economia a não ser a ocupação de capacidade ociosa que
temos, provocada por uma queda muito significativa. Também não há
sinais de retomada do investimento.
Sul21: Do ponto de vista do desemprego, que cresceu nos últimos meses, houve alguma melhora?
Marcio Pochmann: Se compararmos com as recessões
anteriores, desta vez os sinais sociais foram muito mais agudos. Tivemos
um crescimento do desemprego muito mais rápido e explosivo, comparando
com o que ocorreu em 1990 e 1981. O aumento da pobreza também foi muito
acelerado, o que é visível nas regiões centrais das grandes cidades
brasileiras, com a presença de moradores de rua e desempregados. A
pobreza voltou a crescer rapidamente, mas a taxa de pobreza que tínhamos
era muito baixa em 2014. Neste ano, estávamos com menos de 10% da
população em condição de pobreza. Já em 1980, tínhamos 44% da população
vivendo em situação de pobreza.
Nós temos um fenômeno hoje no Brasil que impede as pessoas de
permanecerem desempregadas, conforme o conceito utilizado pelo IBGE.
Segundo esse conceito, a pessoa, para ser considerada desempregada, não
pode ter trabalhado mais do que duas horas na semana, tem que estar
disponível para o trabalho e ocupar imediatamente o trabalho existente.
Se a pessoa está lavando automóveis ou elaborou alguma estratégia de
sobrevivência, isso passa a ser considerado pelo IBGE como ocupação. E
as ocupações que cresceram possuem essas características. São pessoas
com jornada de trabalho muito pequena, salários ruins. Há um precariado
que se expande nestas condições, substituindo o antigo trabalhador com
carteira assinada.
Marcio Pochmann: É inegável que isso tem impacto
político. Cabe lembrar que, na recessão de 1981-1982, tivemos eleições
para governadores. Foi importante criar, naquele período, a ideia de que
estávamos saindo da recessão. Embora o resultado eleitoral tenha sido
uma derrota para o regime militar, eles conseguiram vitórias em alguns
estados, inclusive no Rio Grande do Sul. Agora, de modo similar, é
necessário gerar números positivos para dizer que estamos saindo desta
grave circunstância para gerar um 2018 mais favorável para as forças que
apóiam o atual governo. A questão é saber se isso tem condições de se
sustentar.
Em 2018, poderemos ter inclusive sinais negativos na economia. Saímos
da recessão de 1981-1982 pelo comércio externo. Naquele período,
tínhamos um país muito mais industrial do que temos hoje. Em 1991-1992,
saímos da recessão pela mudança de governo, com a posse de Itamar
Franco, pelo comércio externo e também por um aumento do consumo no
mercado interno. Esses mecanismos não estão claros hoje. O governo
liberou recursos do FGTS, muita gente usou esse dinheiro para pagar
contas e para algum consumo, mas isso é uma vez só. Não há continuidade
nesta liberação de recursos. É verdade que a taxa de juros caiu, mas ela
caiu muito mais do ponto de vista nominal do que real. Estamos
trabalhando com uma inflação este ano abaixo de dois pontos percentuais,
enquanto a taxa de juros está num patamar de 8%. Então, em termos
reais, ainda não há um ambiente favorável para os empresários tomarem
iniciativas para ampliar sua capacidade produtiva.
Por outro lado, o Brasil segue recebendo recursos externos, mas cerca
de 80% desses recursos estão sendo utilizados para a compra de ativos,
de empresas brasileiras. Isso não significa, necessariamente, ampliação
da capacidade produtiva. Sem negar que a situação de 2017 é melhor que a
de 2016, do ponto de vista econômico, com uma inflação mais baixa e um
melhor quadro externo, não há ainda, ao meu ver, base para sustentar uma
retomada consistente da economia.
Sul21: Muito se falou nos últimos anos do
surgimento de uma nova classe media, resultado dos avanços econômicos e
sociais que o Brasil teve na última década. Após pouco mais de um ano do
afastamento da presidenta Dilma Rousseff, parece existir uma certa
acomodação junto a esses setores médios, mesmo com um governo
atravessado por denúncias de corrupção, com uma legitimidade
extremamente baixa e uma crescente violação de direitos. Como você vê
essa postura geral da sociedade diante do quadro que estamos vivendo?
Marcio Pochmann: As pesquisas que temos feito, na
Fundação Perseu Abramo, e outros levantamentos apontam que há um
descontentamento generalizado e um descrédito na sociedade em relação ao
atual governo, mas que ela não consegue identificar nenhuma
alternativa. Não creio que esse ambiente revele uma acomodação, pois
2017 vem sendo marcado por grandes mobilizações e acirramentos de
classes. Tivemos greves sem paralelo na história do Brasil, do ponto de
vista da mobilização da sociedade. Por outro lado, os movimentos sociais
não se caracterizam por paralisações e mobilizações permanentes. Elas
ocorrem de tempos em tempos. Então, o que temos hoje não é uma
acomodação, mas sim uma espécie de perplexidade. A sociedade está
descontente com o atual governo e com a situação econômica, não vendo
perspectiva de retomar ao patamar em que se encontrava. Mas não há ainda
um pólo que seja capaz de agregar esse descontentamento que acaba
caindo em uma certa desesperança. Isso não significa, porém, satisfação
ou acomodação com a situação atual.
Nós temos um debate e uma polarização intensa no Brasil hoje
envolvendo talvez um terço da população, que acompanha esse processo e
se posiciona. Os outros dois terços da população estão completamente
distantes desse debate e tratam de viver o cotidiano e enfrentar as
dificuldades do dia-a-dia.
Sul21: A desesperança que você referiu envolveria também esses dois terços da sociedade que lutam para sobreviver?
Marcio Pochmann: Há uma desesperança e um
distanciamento. Cada vez mais se difunde a ideia de que a política faz
mal ao bom desempenho da economia. Vimos nas eleições passadas
candidatos que foram eleitos apresentando-se como não políticos, dando
margem à ideia de que a política é algo inadequado para a modernidade.
Neste contexto, a política vai se tornando algo residual e secundário,
na crença de que a economia possa oferecer soluções que a política não
consegue. Isso está sendo dito agora por integrantes do atual governo,
com frases do tipo: Se não fosse a política, o Brasil já teria saído da
crise. As denúncias contra o Temer praticamente paralisaram o país,
impedindo as reformas e coisas do tipo.
O fato concreto é que o Brasil que emerge dessa recessão mais
prolongada e profunda é um país muito menor do que aquele que entrou na
recessão. É um país que vai sair deste período muito mais
internacionalizado, em função da onda de aquisição de ativos públicos e
privados. A burguesia industrial praticamente desaparece nesta recessão.
O que temos hoje é basicamente uma burguesia comercial que faz
negócios, compra e vende produtos do exterior ou nossos produtos
primários, compra e vende papeis ou ativos públicos e privados. É muito
difícil imaginar que isso dê consistência para um ciclo de expansão
econômica. Além disso, o Brasil que sai dessa recessão tem uma classe
trabalhadora em situação muito precária, que busca estratégias de
sobrevivência. E estamos vendo praticamente o fim da classe media
assalariada brasileira. A reforma trabalhista e a terceirização vão
corroer os empregos assalariados intermediários nas grandes empresas
privadas e no setor público. O que eu vejo é uma sociedade cada vez mais
polarizada entre os muito ricos e a maior parte da população
empobrecida.
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