Ao recorrerem à Psicologia, os que querem dominar os desejos
reconhecem os limites da Religião. Mas reproduzem o mesmo dispositivo
que resultou na cruz
Por Fran Alavina | Imagem: A coroação de espinhos, Michelangelo Merisi da Caravaggio, circa 1604
O debate sobre a decisão judicial que dá margem legal para a
estapafúrdia “cura gay” além de ter recebido as reações devidas nos
últimos dias – reações que devem aumentar –, também dá lugar para que se
possa ter uma visão mais complexa do que se esconde sobre esta lógica do absurdo.
Absurdidade que, por se manter na longa duração da história da
repressão dos desejos dissidentes e da objetivação do corpo, acaba por
se apresentar para muitos como normalidade na história da nossa cultura.
De fato, quando comparado com a história da sexualidade no Ocidente,
este absurdo é a regra e não a exceção. Regras de uma suposta
“normalidade”, datada desde quando o cristianismo como forma religiosa
hegemônica e como tipo de consciência política dominante estabeleceu
para nós a moralidade dos afetos tristes. Tristes, pois afetos
que se regem não pela liberdade do agir, mas pela conduta proibitiva;
não pela completude, porém pela interdição. Trata-se de uma submissão do
desejo àqueles que não gozando – no caso católico está parcela que em
tese não possui o gozo sexual é o clero – podem prescrever as regras do
gozo permitido.
Ora, o que é esta bizarrice da “cura gay” senão a velha proibição do
prazer, a antiga interdição do gozo que o cristianismo na sua versão
protestante, evangélica ou neopentecostal, herdou da versão católica? A
estratégia evangélica que agora obteve uma vitória temporária, porém
expressiva, não possui nada de novo. Ela imita um projeto de poder sobre
o corpo por meio da submissão às superstições teológicas de um saber
determinado e legitimamente constituído. Uma submissão do saber ao
proselitismo da crença, em primeiro lugar, pois capaz de oferecer uma
garantia segura para uma submissão dos corpos e dos desejos, já que
discurso de poder mascarado de discurso de saber.
Em outras palavras, o debate sobre a “cura gay” é um dos dispositivos que nos permitem ver em sua inteireza a relação entre saber e poder,
síntese de um inescrupuloso desejo de dominação, desejo que se dá a ver
em um momento em que não basta apenas a servidão voluntária, ou seja,
quando os mecanismos hodiernos da corrida proselitista estão esgarçados.
Não é mera coincidência que agora, após os neopentecostais, evangélicos
e católicos chegarem ao ápice de sua escalada midiática, recorra-se a
um discurso que, por princípio, os prosélitos rechaçam: o discurso científico.
Não é pouca coisa que se tente usar de um determinado saber
médico que não se dirige diretamente ao uso dos corpos, mas à
subjetividade: a psicologia. Ora, é justamente sobre este âmbito, o âmbito da psique,
que se dá o campo de atuação das religiões. Um grande pensador disse
uma vez que o poder mais forte é aquele que reina sobre os ânimos. É aí
que reina o discurso religioso, capaz de propiciar a mais forte das
coações: a coação interna.
O homem religioso é, antes de tudo, um ser de paixão. Seu mundo é
tecido por camadas de afetividade que se desdobram para além das razões,
ou dos absurdos aparentes. O que carece de sentido aos olhos do crente
terá sentido único e reconciliador no sentimento. Como descreve Pascal
ao longo dos seus fragmentários Pensamentos, a razão da fé é
demostrar que ela não possui razão alguma. Isso não quer dizer que o
sentimento religioso se confunda com o puro irracionalismo, ou que seja
uma esfera carente de sentido, mas que por sua própria constituição será sempre mais um discurso de paixão do que de razão –
potanto um discurso auto-referente que fará do outro, daquilo que lhe é
estranho e diferente, um elemento de incômodo que quando não pode ser
apagado sem deixar resquícios, deve ser modificado para ser subsumido.
Ou seja, deve deixar de ser o que é, o diferente, para se tornar o
igual. Portanto, da alteridade à repetição.
Toda paixão forte, como aquela da religião, quer fazer de si a regra e
a régua do mundo. É próprio da passionalidade forte acomodar-se apenas
àquilo que lhe é semelhante. As divisões em inúmeras seitas e
denominações que pululam na história do cristianismo é prova viva do
expurgo do diferente. É próprio deste tipo de consciência religiosa, em
que a paixão encontra seus níveis mais altos, expurgar o dessemelhante. O
que é a história dos primeiros concílios senão a longa batalha do
expurgo do diferente, que uma vez expulso completa a figura do herege,
daquele que não possuindo mais nenhum vínculo com sua antiga comunidade
pode ser objeto do mais poderoso dos ódios, segundo Espinosa, o ódio teológico?
Ao longo dos séculos, o outro para o cristão tornou-se em primeiro
lugar aquele que não pertence mais ao grupo primitivo, mesmo que este
outro ainda se diga cristão. O modo como o cristianismo – em suas mais
diversas versões – lida com a homossexualidade é um espelho de como ele
se fossilizou no trato com a diferença. É por isso que a
homossexualidade traz à tona o ódio, quase insano, dos prosélitos, pois é
a mais absoluta diferença em relação a uma moralidade dita “normal” e
“natural”. É a liberdade de um corpo e a autodeterminação de um prazer
constituinte que não apenas rompe com o círculo do gozo prescrito, mas
reinventa os lugares e os objetos do gozo. Não por outro motivo, o
prosélito sempre verá menor culpa no homem adúltero do que no homem gay.
Um desobedece certo aspecto da moralidade aceita, mas não se coloca
fora dela; já o outro, está completamente fora dos seus limites.
Há aqui, neste dispositivo do afeto, uma sutiliza que não deve ser
desconsiderada. O gay só se faz outro porque estabelece uma relação
incomum entre iguais. Nossa alteridade é a expressão dos iguais, e não
uma alteridade da exclusão, ou do expurgo do diferente. Sutileza irônica
esta, posto que foi justamente por também estabelecer uma relação
incomum entre iguais, por se fazer um com os seus, que o galileu das
periferias do império romano tornou-se o outro, o absolutamente outro,
tanto que foi remetido à execração pública e à morte ignominiosa. Era
tão outro que não poderia mais ser subsumido e aceito no interior de sua
antiga comunidade. A transexual que corajosamente se apresentou
publicamente crucificada, há alguns anos, na Parada Gay de S.Paulo,
apenas nos deu simbolicamente esta semelhança entre o dispositivo
afetivo de gays e lésbicas e o dispositivo afetivo do cristianismo das
origens.
Uma vez que a relação incomum entre os iguais torna-se o pecado sem
perdão, é preciso – já que não é mais possível realizar fogueiras
públicas – retirar a homossexualidade da esfera do pecado, isto é, do
simples discurso religioso e realocá-lo no discurso médico, portanto
transformando em uma patologia que se submete a certa clínica. Assim, o
pecado sem perdão transfigura-se em “doença curável”, enfermidade não
apenas da alma, mas do desejo que pode ser passível de tratamento. Já
que não se pode apagar fisicamente o diferente, se distorce àquilo que é
sua maior determinação, o desejo, para apagar a diferença e subsumir o
“anormal” na “normalidade”.
Por isso, o uso de um saber que, além de ser capaz de emprestar rigor
de ciência às meras opiniões de uma moralidade imposta, também é um
saber médico, um conhecimento clínico. Um saber capaz de se prestar ao
papel, quando manejado na mão torta dos prosélitos, de realizar a medicina da culpa. Aí, se dá a passagem do pecado à enfermidade, ou seja, do discurso meramente religioso para o discurso médico.
É um instrumento de poder refinado que gente como Silas Mafalafaia
declare-se psicólogo, que os proponentes da “cura gay” sejam prosélitos
dos setores mais alinhados com o atraso, mas que sejam tratados, segundo
a determinação judicial, como “pesquisadores”. O uso interessado de um
certo saber médico para a confirmação das posições teológicas é o
reconhecimento dos limites da crença, porém expõe também que o desejo de
dominação de um tipo de consciência religiosa tende a não encontrar
limites – é o mesmo tipo de consciência religiosa que distorce os
sentidos do Estado laico, que confunde propositalmente violência
simbólica com liberdade de expressão. Este desejo de dominação, para não
se apresentar tão claramente – pois sabe que não pode mostrar à luz do
dia suas entranhas protofascistas –, subverte saberes e agora encontra
amparo no último poder que faltava à sua conquista: o Judiciário, o
protagonista do momento.
É um momento difícil, no qual o dispositivo afetivo de desejo entre
os iguais é confrontado violentamente por outro desejo, o desejo de
dominação e submissão. Assim, para além de absurda e quão caricata possa
ser a questão, está em jogo um problema político dos mais
determinantes, pois como dizia certo odiado pensador, é própria do corpo
político saudável o desejo de não se deixar dominar. Ora, quando um dos
elementos desse corpo político deseja dominar, vê-se o quanto está
doente este corpo. Portanto, vale agora, mais uma vez, o alerta de
Pasolini: “Estamos Todos Em Perigo”!
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