Um dos aspectos mais aprisionantes do trabalho assalariado é a
tendência a vincular a vida a uma única profissão. Que, em vez de
carreira, tenhamos trajetória, aventura, travessia
Crônica de Maria Bitarello
“Carreiras são uma invenção do século 20, e eu não quero uma”. Quando
li essa frase, conclui no ato: nem eu! Um dos primeiros pânicos que
tive, ainda bem nova, ao me projetar adulta era justamente esse: como é
que eu vou conseguir trabalhar a vida toda fazendo a mesma coisa? Tinha
calafrios noturnos com a ideia. Isso muito antes de ler a frase acima no
livro de Jon Krakauer, Na Natureza Selvagem. Muito antes de
saber que não era preciso fazer todo dia a mesma coisa pra ser um
adulto. Se soubesse então que carreiras são uma invenção recente, teria
me concentrado em sofrer apenas com os outros dois desse trio de
terrores do reino assombrado da “maturidade”: 1) acordar cedo todo dia;
2) e ter que virar esposa e mãe. Me sentia completamente inapta pra
todos eles.
E pra despistar o carreirismo e evitar que a profecia se
concretizasse, tive que dar uma voltinha por aí. Nos Estados Unidos, me
agradava observar o valor que conferem às conquistas atléticas. Fulano é
bancário, mas na verdade quando chega em casa e tira o disfarce de
Clark Kent ele vira um ultra-maratonista, treina todos os dias e disputa
até cinco provas anuais, incluindo o triathlon. Trabalho; qualquer um
pode fazer. Mas os feitos atléticos dependem de disciplina e
perseverança individuais, o que é uma prova de caráter na terra do self-made man.
Aí na França era parecido, porém diferente – todo poder ao cérebro.
Beltrano é carteiro, mas está escrevendo um ensaio definitivo sobre a
obra completa de Marcel Proust. Sicrano é funcionário administrativo da
prefeitura, mas todos os anos viaja pro Norte da África pra fotografar
mulheres da cultura tuaregue.
Foi um alívio perceber que a carreira não precisava ser a luz no fim
do túnel, o fim que justificaria todos os meios, nem o topo da cadeia
alimentar. Poderia ser maratonista e escritora, ciclista e jardineira,
yogi e cozinheira, professora e mochileira. Foi gloriosa e alforriante a
descoberta. Ia de encontro a tudo que eu sentia. Era possível, sim, ter
um trabalho que não me definisse enquanto espécie e não fazer desse
trabalho uma trilha monocórdica. A ausência de uma carreira no sentido
de um curriculum vitae não equivale a carência de ofício. De jeito nenhum. E o trabalho não dignifica o homem (e a mulher) coisa nenhuma.
Diante de tais descobertas, a ideia de voltar ao Brasil e,
consequentemente, precisar encontrar uma profissão definitiva me
mantinha firme e forte lá do outro lado do Atlântico – onde, parecia,
estaria a salvo desse fardo e das expectativas, minhas e de outrem,
acerca de quem eu deveria ser aqui na terrinha. No além-mar, em terras
estrangeiras, não esperavam muito de mim. Um sentimento libertador, a
princípio, mas por fim infantilizador. E com o tempo foi tornando-se
desestimulante sustentar o status café-com-leite do visto de estudante.
Era hora de voltar. Hora de peitar o utilitarismo profissionalizante de
frente.
E eis o que constatei. Carreira não pode ser algo que você busca,
como passar de fase no videogame, ou passar de júnior pra sênior na
firma. Uma carreira dotada de sentido só pode ser algo que te acontece,
como a vida. Movida pelo tesão, pelo amor, pela alegria. Ela vai sendo
trilhada ao longo da sua jornada terrena, como um passo dado depois do
outro, como os capítulos de um épico russo ou o avanço da escola de
samba na avenida. Haverá caminho, percurso, trajeto. Dos trabalhos que
você amou aos que detestou, dos amantes às amadas, das dores de garganta
às de cotovelo, passando pelas unhas encravadas e os vãos desesperos. É
a história de cada um. Natural e inevitável. A humana aventura.
Travessia.
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