Uma vez ao mês, pelo menos, o nobre
deputado Hipólito Gouveia de Carvalho, reeleito ao cargo com uma margem
invejável de votos dedicava uma horinha de sua intensa agenda política para
cuidar de sua imagem. Até porque marketing pessoal anda caro nos últimos
tempos, e cuidar da própria imagem nunca é um sacrifício para qualquer
congressista. De tal forma que aquela
velha barbearia de sua cidade natal sempre lhe caia muito bem, quando
necessário. Aproveitava-se o tempo para visitar a família, estimular
correligionários e ainda promover “aquela” aparição pública:
- O deputado tá na barbearia do
Nogueira!!!
E a cidade toda buliçava em torno da
pracinha da Democracia, centro nervoso daquela pequena, mas orgulhosa “pólis”.
A inércia de outrora dava lugar a um fervor cívico genuíno, onde até o padre
arrumou um jeito de brilhar a frente do homem público com um aceno mimético,
ansiando ainda por um cumprimento, a qualquer hora que o humor do deputado
assim permitisse. Que se faça justiça! O
deputado sempre fora um homem dado aos arroubos públicos, super cordial e
festivo com os eleitores. Hipólito era o quadro político mais importante
daqueles confins! Um animal político em plena forma, orgânico e voz uníssona
dos seus concidadãos que ali se amontoavam naquele calor amazônico de janeiro,
ou para lhe pedir favores, ou trocar confidências, ou ainda reclamar,
simplesmente reclamar.
Suado às bicas por todas as entranhas de seu
obeso corpanzil. Aquele homem imenso e oleoso chegava ao recinto entregando-se
de uma vez a uma poltrona em frente ao espelho, como se fosse uma cama real.
Claro! Pagou mais. O Nogueira, barbeiro tradicional da cidade, alugava uma ou
duas horas da barbearia e seus profissionais somente para o arremate da
cabeleira grisalha de Hipólito. Ninguém poderia entrar ou sair do recinto, e
nenhum outro barbeiro a exceção do dono poderia trabalhar naquele corte. Ao
menos, que ele porventura o delegasse. Numa atitude dotada do mais sincero
pendor fisiológico, ou melhor, da mais sincera gratidão, digamos assim, o
paladino presenteou o estabelecimento com dois super potentes
ares-condicionados. De última geração! Ligados sempre ao estalo máximo, quando
em sua nobre presença, obviamente. Só que dessa vez ainda se livrando das gotas
de suor que turvavam-lhe a visão, estranhou um jovenzinho churriado que só, um
frangote, indumentado como mandam as barbearias profissionais. Uma vez
apresentando-se, viu-se logo que era altivo e provavelmente muito capacitado,
gabaritado como cria que era do próprio Nogueira. Após os salamaleques formais
perguntou o menino de forma perspicaz:
- O de sempre, excelência?
Hipólito esgueirou-se de lado para
olhá-lo, não acreditando muito na imagem produzida pelo espelho a frente. Notou
a confiança do juvenil e estendeu um sorriso largo confirmando o pedido e dando
o start para que ele iniciasse logo os trabalhos. O deputado não era um
cliente fácil, vez que fazia daquela valiosa hora uma intensa reunião de pauta
ao celular. Isso quando não cismava de abrir o i-pad, fazendo aquele
povo todo vibrar porta-fora do estabelecimento como se fosse um gol do
time local. Era o progresso chegando através das mãos de seu filho mais
honrado!
- Vou lhe dar trabalho, filho! -
atentou já digitando com os dedos rechonchudos os números ao telefone.
- Não tem problema, excelência! - disse
entrelaçando os dedos inteiros na extensa cabeleira grisalha à beira do corte.
Não era qualquer um que tinha o
privilégio de ouvir sobre o destino da cidade, do estado e até do país. O
menino em silêncio então apenas cuidava pra não errar a mão. Compenetrado e com
a testa franzida, o menor ouviu o deputado relaxar ao telefone, falando num tom
alto:
- Armandinho, é como eu te falei,
ontem!! Fala pro advogado, representante, lobista, sei lá dele, que não tem
porque não dar! Vai ser bom pra todo mundo... A base é de cinco por cento pra
cada, não tem chororô!! Mais do que isso chama a atenção! Fica na maciota, e
faz o teu... Fica na maciota, ouviu! Todo mundo sabe que tem pra todo mundo! -
parou um instante e ouviu por alguns segundos, depois prosseguiu aos gritos – Não!!
Não!! Não!! Que porra de CPI, o quê!?!? Aquela que tá na gaveta do Serginho?!
Não!! Eles não tem força pra botar em pauta!! E se botar... E se botar...
escuta Armandinho... E se botar... a
gente para essa porra à unha! Vai feder pra todo mundo você acha que eles vão
querer?? É ruim!!
Ajeitando-se por baixo da bata que o
protegia dos cachos eliminados o deputado se sacudia e gesticulava a cada frase
como um italiano. Parou alguns minutos e apenas ouviu, depois empinou-se na
cadeira quase aos gritos:
- Não foi isso que a bancada
combinou!! Aquela concessão da estrada tem que passar pelo pessoal da comissão
primeiro, pra depois... Hã?! Tem que arregar, tem que arregar, sim, senão não
passa! Tá mas... mas... Lei de Responsabilidade Fiscal... tá no início do
governo ainda, Armando!!! Porra... Armandinho... tá de sacanagem, né! Deixa
essa porra pro STF, caralho? Vai meter Constituição no meio?! E eu duvido... E
eu duvido que entrem com ação, eu duvido!! Tem o deles também, irmão, ninguém
quer perder? Porra, Armandinho!! Eu pensando em ajeitar a parada pra gente e
você querendo ferrar com o projeto!!! E o pensamento positivo?! - após um
silêncio súbito e um breve relaxar na poltrona, descolou-se num
rompante, e ergueu o tronco com o dedo em riste, dando um susto no menino – Ele
que me venha com essa agora de suplente querendo ganhar!! Ele que me venha!!
Nunca foi assim!! Pelo menos comigo não, eu já fui suplente e tive que fazer
muito servicinho pra poder ganhar igual!! Nananinanão!! Tem dinheiro pra todo
mundo, porra, agora se virar bagunça dá problema!! Sabe o que é isso
Armandinho? É coisa de amador!! É coisa de amador!! Na primeira que pegarem ele
e colocarem no jornal, aí ele aprende a fazer direito!!
O menino tentava acompanhar os movimentos
bruscos do gigante a sua frente, mas apenas franzia a testa e fechava o
semblante como se quisesse domar uma fera. Aparentava uma honrosa serenidade
diante do que ouvia, que facilmente poderia ser confundida, pelos mais
sensíveis, com uma fragorosa passividade.
Era um menino apenas.
O nobre deputado, ao contrário,
continuou, um pouco mais calmo, mas quase que desenhando as palavras ditas com
as mãos:
- Armando... É assim... dá pra fazer.
O povo só dá ouvido quando sai no jornal, quando sai na revista... O Parlamento
é que manda nessa porra, a gente tem que garantir o nosso por aqui, senão a
caravana passa e a gente fica olhando... Eu quero ganhar o meu, você quer??
Então, o representante do Palácio já lavou as mãos, ele sabe do que acontece,
só não quer o nome dele, nome de ministro no meio... então, meu irmão?! Viu!! O
recado tá dado!! Se eles querem bolo, tem que trazer a farinha, porra!! Lembra
do caso da verba de escalão!! Lembra?! Lembra?! Então... Tu montou direitinho aquela,
tá com medo de quê, ô filha da puta? - o deputado coçou a barba ainda suja
de espuma respirando bem fundo, ouvindo a resposta – Não... não, meu
filho... naquela vez o que ferrou foi a
Polícia Federal, ninguém tava dando falta de material escolar nenhum, a
licitação já tinha corrido e tudo!! Mas..., mas.., escuta... porra a Federal... porra a Federal na cola,
toda partidária, em ano de eleição... aí é foda, né...! Tem que abrir o olho
nessas horas!! Só isso!! Só!!
Travestindo-se rapidamente no bom velhinho
o deputado carinhosamente dirige-se ao jovem:
- Tô te atrapalhando muito, filho?
- Não, não... - respondeu
moderadamente o garoto.
O menor já não franzia a testa como
antes... e a atitude serena perdia-se nos ares de uma viagem longinqua, bem
longe dali. Sem no entanto perder o manejo da tesoura e da navalha.
Hipólito, arfando, cujos cabelos
grisalhos recém-cortados grudavam ao suor seco do rosto retornou a plenária,
após mais uma ajeitada na cadeira:
- Olha, trabalhar com as assembléias
legislativas, só se for em estado pequeno. Esquema igual aquele de Rondônia
lembra? Ali a gente se deu bem, só pegou minhoca da terra e ainda fica na mão
deles... - parou um segundo, e retornou - Isso, a merda fica lá, não vem
com a gente. A gente que tá na base do governo não pode trazer o problema pra
perto, entende? - trouxe a mão esquerda ao peito num gesto condizente a
fala – Isso..., isso..., isso..., ahã... É, por que, você vai arriscar? É só
não aparecer o nome de ninguém do núcleo duro. Sabe alpinista? Pois é... faz o
teu, se der merda corta a corda... quem tiver embaixo, foda-se! O negócio é não
foder quem tá em cima! - Alguns segundos mais e o deputado explode numa
gargalhada – Aquele então é um filho da puta mesmo!! Lá na casa das primas
ele não fica com essa graça toda, né!! É um boca mole mesmo!! Hã... Hã...
Ahãn... Pois é... - outra gargalhada -
Pois é!! Se fosse banqueiro, eu duvido!!!
O menino sem o brilho no olhar de antes
inicia a feitura da barba do nobre filho da terra:
- O de sempre não é, excelência?
Hipólito dessa vez não respondeu.
Permaneceu imóvel à escuta do aparelho celular. Alguns minutos em silêncio e
olhar fixo em algum ponto da sala, apenas ouvindo os bons conselhos de seu
assessor. Num dado instante respondeu à pergunta:
- Barba, cabelo e bigode, filho!
O menino riu. Talvez do atraso ensaiado
da resposta, talvez da ironia que se construía em sua mente.
Absorvido pelo sutil jogo político o
parlamentar reiniciou pela última vez o debate inflamado:
- E ele tem cartão-corporativo pra
quê? - riu num sorriso grande o homem já quase sem a barba - Dinheiro é
pra gastar, Armandinho!! Se metade dessas pessoas que estão no sol lá fora,
nesse calor da porra, olhando pra mim nessa cadeira com uma cara de pateta que
só vendo, estivessem no meu lugar, estariam fazendo a mesmíssima coisa!! - Iniciou
uma gargalhada gostosa, sem som algum - Armando... Armando... Armando...
escuta... Você é o filho da puta mais cagão que eu conheço... é o mais cagão!!
- o deputado não consegue mais segurar a gargalhada - Assim você não vai
crescer na posição, meu filho. Pra você ver, até esse menino aqui, que tá
fazendo o serviço dele na maior competência – Hipólito segura o braço livre
do menino e o sacoleja enquanto fala, num breve reconhecimento – tem mais
culhão que você!! Licitação... O negócio já foi criado cheio de brecha e você
ainda não aprendeu a fazer...!!! O mundo não foi feito pra gente que nem você,
não, Armando!!! “Tu” nasceu foi pra votar, não pra ser votado, seu
merda!!!- e terminou numa gargalhada sonora.
O deputado encerrou a ligação e bateu o
celular colocando-o no bolso da camisa. Respirou fundo e espreguiçou,
recompondo-se. Deu dois tapas em cada bochecha gorda fazendo-as tremerem em
frente ao espelho. Olhou cintilantemente para o menino e disse num tom paternal:
- Nesse país, filho, aprenda uma
coisa: Urna é igual a cu! Se você não andar com ele tampado, vão acabar
enfiando alguma coisa que você não queira nela.
O menino sorriu. Sorriu sem rir, ou algo
do tipo, sabe-se lá... Mas sorriu, como todos nós.
Esse moleque mestiço nunca se sentiu nem
de longe a salvação do país. E não há nada que o obrigasse nessa vida a se
sentir útil. Viverá seus prósperos anos arrancando migalhas, à força de uma
pretensa meritocracia, de uma roda da fortuna que o empurrou para o fosso,
longe de tudo que se mexe, respondendo à distância com seu sotaque mateiro, ao
preconceito dos abastados. Talvez, nem com recalque. Esse menino nasceu para
cumprir a “função” do pária. Não cobiça nada mais que um belo corte. Em
troca de uma imaterial dignidade, da qual ouvira falar remotamente, muito
provavelmente no seio da família. Mas o que ocorre... é que pelo espelho, quase
sem querer, o guri viu trincar os olhos venais do animal político no auge de cio.
E antes que ele atacasse, antes que ele espumasse de raiva, antes que o
instinto impusesse sua própria lei... Por instinto também, só que de
sobrevivência, o fedelho resolveu dizer não.
Com a ponta do dedo médio, o garoto
levantou cuidadosamente o queixo do deputado, expondo sua volumosa papada, e
anunciou com uma piscadela pelo espelho que tiraria o excesso da espuma com a
navalha. O deputado confiante disse:
- Parabéns meu filho, vou falar pro
Nogueira sobre você, excelente trabalho...
Não houve sequer tempo para continuar a
frase, o menino afundou anavalha num corte fundo na garganta de Hipólito de um
lado ao outro do pescoço fazendo-o desmaiar com a imagem no espelho. O sangue
desceu pelo peito do político democraticamente, aderindo a todos os cantos de
seu corpo gordo e fazendo poças em tom escuro, onde antes eram poças de suor. A
imagem crua do deputado degolado rendeu dois ou mais estrebuches e gemidos de
seu agora cadáver. Na rua, sob o sol, o aglomerado caboclo à porta ainda
tentava entender o que estava acontecendo, justamente porque o jovem barbeiro
com muita calma jogou a navalha no tanque à distância e pegou a vassoura para
limpar calmamente o derredor da cadeira de seu último cliente.
O corte na garganta do parlamentar
Hipólito Gouveia de Carvalho, coincidentemente, era do tamanho aproximado da
boca de uma urna eleitoral. E valendo-me da ideia do finado, produzindo talvez
uma nova metáfora política, poder-se-ia dizer, que o tamanho do corte não era
tão distante assim... do tamanho de um cu.
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