Certa vez o sociólogo francês Pierre Bourdieu
provocou: “a opinião pública não existe”. A pesquisa “Perils of Perception 2016”
(Perigos da Percepção) do instituto britânico Ipsos Mori parece confirmar isso:
na verdade a opinião confunde-se com percepção, assim como nos telejornais
atuais as notícias são confundidas com “sensações”, seja dos jornalistas ou dos
telespectadores. O resultado da pesquisa foi a criação do “Ranking da
Ignorância” – a distância entre a percepção que as pessoas têm da realidade em
que vivem e os dados oficiais de cada país. O Brasil ocupa os primeiros
lugares, atrás da Índia, China e EUA. Entre os países menos “ignorantes”,
Holanda e Coréia do Sul. Incapacidade de entender estatísticas, preconceito, atalhos
mentais, ignorância racional e o “poder das anedotas” das mídias estão entre os
fatores apontados pela disparidade entre percepção e realidade. Também há um
fator comum entre os países primeiros colocados: o monopólio midiático.
É comum na grande imprensa as palavras “percepção”
e “sensação” serem tomadas como sinônimos. Por exemplo, em um telejornal fala-se
da necessidade de construir um posto da Polícia Militar na praça de um bairro
com altos índices de criminalidade. Segundo o repórter, o posto criaria uma
“percepção de segurança” para os moradores.
Ou então fala-se em “sensação de crise” no
final do ano quando, na base do olhômetro, o repórter conta o número de pessoas
que não carregam sacolas de compras em um shopping.
Ou ainda quando se faz uma rápida enquete com
populares em algum calçadão do centro da cidade para confirmar alguma
“percepção” sobre qualquer coisa.
Atualmente, notícias se confundem com
“percepções” ou “sensações” tomadas como evidências sobre qualquer suposta
tendência, crise ou acontecimento. É o que recentemente tem sido denominado de
“pós-verdade” – um grande arco que vai do menosprezo por fatos objetivos até a
ignorância racional e o efeito Dunnig-Kruger – indivíduos acreditam saber mais
do que especialistas por estarem abastecidos por clichês, sofismas e frases
prontas.
Porém, percepções não são a realidade. É o
que comprova a pesquisa do Instituto Ipsos Mori “Os Perigos da Percepção 2016”,
realizada entre os meses de setembro e novembro envolvendo 40 países. O
objetivo é demonstrar o quanto as pessoas têm uma interpretação equivocada da
sua própria realidade – a diferença entre a percepção (desvalorização ou exaltação
de determinados temas que preocupam a sociedade) e os dados estatísticos
oficiais de uma determinada realidade.
A partir dos dados coletados, a pesquisa
conseguiu traçar o “índice da ignorância”, listando os países cuja percepção é
mais distante da realidade.
A Índia aparece em primeiro, seguida por
China e Taiwan. O Brasil figura em sexto lugar, após os EUA. Na ponta oposta do
índice estão Holanda, Reino Unido e Coréia do Sul.
Aqui o conceito de “ignorância” não implica em
falta de inteligência, mas apenas falta de conhecimento ou informação objetiva
sobre uma realidade. O objetivo principal da pesquisa é levantar questões sobre
o porquê da disparidade entre a percepção e os dados oficiais de cada país.
Os Resultados
Segundo a pesquisa, os brasileiros acham que
a população muçulmana no País é muito maior (12%) do que na realidade (menos de
0,1%) – França, no topo, 31% contra 7% na realidade. E se equivocam ainda mais
por acreditar que até 2050 que a religião islâmica chegará a 18% da população,
enquanto dados reais que chegará no máximo a 1%.
Perguntados sobre a proporção da população
que diz ser feliz, os brasileiros falam em 40% enquanto estudos indicam que são
92% aqueles que se consideram felizes.
Brasileiros também se equivocam quanto a
proporção da distribuição da riqueza: para os entrevistados, os 70% menos ricos
detém 24% da riqueza quando a realidade é muito pior, apenas 9%.
Ainda consideram que o Brasil é mais
tolerante do que realmente é. Os entrevistados acreditam que mais de 50% da
população acham que a homossexualidade é moralmente aceitável. Mas dados
oficiais apontam que só 39% pensam assim.
Ranking de 2015 |
Quanto ao sexo antes do casamento, os
brasileiros sobrestimam o preconceito: acham que 43% não aceitam – quando o
dado real é 35%. E o inverso é sobre o tema aborto: acham que 61% devem
considerar moralmente inaceitável. Dados reais indicam 79% da população.
Os dados coletados sobre a percepção dos
entrevistados foram confrontados com diferentes fontes de informações oficiais e
institutos de pesquisas de cada um dos países.
Bombas Semióticas
Os resultados sobre os Perigos da Percepção do Ipsos Mori confirmam os resultados do atual
estágio da engenharia de opinião pública, não mais focada nas estratégias
hipodérmicas de repetição e doutrinação político-ideológica do passado, mas
agora concentradas na detonação do que o Cinegnose chama de “bombas semióticas”
que torna-se instrumento da “Guerra Híbrida” – através da moldagem da percepção
por estratégias de “agenda setting” e “espiral do silêncio” criar “climas de
opinião” que evoluem para “ignorância racionalizada” através dos clichês de
noticiários que confundem notícia com percepção.
Os pesquisadores do Instituto Ipsos Mori
apontam para alguns motivos sobre essa discrepância entre percepção e realidade:
(a) Inabilidade com números
Somos particularmente pouco hábeis em lidar
com cifras numéricas ou muito elevadas ou muito pequenas – o que afeta nossa
capacidade de pensar em, por exemplo, distribuição de renda ou em
supervalorizarmos os números sobre gravidez na adolescência, como mostram dados
sobre crimes praticada por menores: a percepção é de 70% quando dados oficiais
apontam para 20% .
(b) Preconceito e “atalhos mentais”
Tendemos a pegar informações facilmente
disponíveis, mesmo que não se encaixem perfeitamente em uma questão.
O sociólogo Pierre Bourdieu já apontava a
falácia principal das pesquisas de opinião no texto “A Opinião Pública Não
Existe” (clique aqui): partem do pressuposto que
qualquer um sempre tenha uma opinião a dar. Na maior parte do tempo, as
opiniões são compostas por um conjunto racionalizações, clichês ou frases
prontas facilmente disponíveis e sempre repetidas pela estratégia de agenda setting, facilitada pelo contexto
de monopólio midiático, como veremos abaixo.
(c) Emotional Innumeracy
Exaltamos ou desvalorizamos determinados
temas influenciados por preconceitos e medos difundidos pela sociedade, criando
a discrepância entre percepção e estatística – as representações diárias da
mídia sobre ISIS arregimentando brasileiros em redes sociais, Oriente Médio e
terrorismo levam a uma sobre-valoração dos números do crescimento de muçulmanos
e imigrantes no país.
(d) Mídia e o “poder da anedota”
A identificação das notícias com a percepção
(seja dos próprios jornalistas ou dos leitores e telespectadores) leva a grande
mídia a buscar personagens, narrativas ou histórias exemplares que “comprovem”
uma determinada “sensação” ou “clima de opinião” pré-existente: o repórter que
fica contando o número de pessoas em um shopping sem carregar sacolas de
compras para comprovar a crise econômica;
A história de um adolescente que caiu no
crime para fugir da família; história emocionante de luta e dedicação de um
empreendedor bem sucedido – o que cria a discrepância com os dados estatísticos
oficiais: apenas 1% dos desempregados se beneficiam das políticas públicas de
apoio ao empreendedorismo – clique aqui.
(e) Ignorância Racional
Conceito no qual o custo de adquirir um novo
conhecimento excede os benefícios que esse conhecimento traria.
Permanecer ignorante é racional (aqui pensada
a racionalidade associada a lei do menor esforço). Principalmente quando há
todo um movimento social e midiático de encarar a Política como uma prática em
si corrupta, dispendiosa e distante e que, por isso, não traz nenhum benefício
individual para o eleitor.
A ignorância seria uma resposta racional a um
contexto político em torno de nós, no qual temos a percepção de não termos
poder ou controle.
Percepção e monopólio midiático
O ranking da ignorância resultante da pesquisa
Perils of Perception chama atenção para um detalhe final, porém decisivo: os
seis países nas primeiras colocações (respectivamente Índia, China, Taiwan,
África do Sul, EUA, Brasil) apresentam uma situação de monopólio, controle e
censura midiáticas.
Apesar de variedade de dialetos, diferenças
culturais e regionais e um sistema midiático aparentemente vibrante e
pluralista, a Índia oferece um excelente estudo de caso sobre o poder da
comunicação e softpower com Bollywood no cinema e a Sun TV na produção televisiva,
como aponta Daya Kishan Thussu no livro Communicating
India’s Soft Power – clique aqui.
Na China o controle e censura em relação as novas
mídias fechando jornais on line independente e o controle dos conteúdos pelo
Partido Comunista. Chegando, inclusive a proibir filmes sobre viagens no tempo
– o Cinegnose já discutiu o porquê, clique aqui.
Na África do Sul temos o amplo domínio da
Naspers que controla 23 revistas
(incluindo as mais lidas da imprensa cor-de-rosa), sete diários e o gigante da
televisão por assinatura DSTV. Com mais de um século de existência, esta
multinacional da África do Sul vende serviços em mais de 130 países. Incluindo
o Brasil (com participação na editora Abril), a China - associada da Tencent,
de serviços de Internet e telefonia.
Nos EUA seis corporações, os chamados “Big
Six”, controlam a mídia: Time Warner, Walt Disney, Viacom, Rupert Murdoch, CBS
Corporation e NBC
Universal. Absolutamente dominam notícias e entretenimento.
Pior é no Brasil. Apenas as organizações
Globo detém o monopólio das comunicações sob a estratégia da chantagem política
(atualmente associada ao Poder Judiciário – Polícia Federal e Ministério
Público) e controle do mercado publicitário mediante o BV – bônus por volume,
propina paga às agências de publicidade que nela anunciam.
Além dos motivos apontados acima, certamente
o monopólio dos meios de comunicação é a condição principal para se criar os
três fatores que resultam em um “clima de opinião” ideal para moldar definitivamente a
percepção da esfera pública: acumulação, consonância e onipresença midiática.
Fonte: DUFFY, Bob. "Perils Of Perception", Ipsos View, March, 2016 - clique aqui
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