Causas da crise institucional são claras. Grupos que tomaram poder não têm projeto de país; agora degladiam-se pela parte do leão no butim. Alternativa é articular bloco potente pelos direitos sociais
Por Antonio Martins
No momento em que se redige este texto, informam os noticiários, Michel Temer procura juntar cacos e encontrar uma saída “honrosa” para o conflito entre Renan Calheiros, presidente do Senado, e Marco Aurélio Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Ambos trabalharam pela derrubada do governo eleito em 2014, mas agora entraram em conflito ácido. Mello quer afastar Renan da presidência do Senado. Para isso, brande entendimento jurídico que, se consolidado, viola direitos fundamentais e sepulta a presunção de inocência. Renan, contrariado, fez o macho: ao invés de contestar a decisão provisória do STF, decidiu ignorá-la, projetando o país no cúmulo da insegurança jurídica. Temer tenta um remendo, nas poucas horas que faltam para o final da sessão plenária do Supremo. Nada garante que será bem-sucedido.
Mas o barraco entre chefes de dois dos três poderes é apenas a parte mais visível de um conflito que se alastra entre os golpistas. O epicentro é o Executivo, por razões óbvias. Duas semanas depois de aceitar a renúncia do munistro Geddel Vieira Lima, um dos responsáveis pela articulação política do governo, Temer não sabe como substituí-lo. O posto foi oferecido ao PSDB, que reclamava mais espaço no governo. Os tucanos recusaram. Desejam participar do núcleo central do poder – mas usando luvas grossas e mãos de gato. Sugerem, gaiatos: e se ficássemos com o ministério da Fazenda?
É briga de banqueiros grandes – e globais. Armínio Fraga, o eterno escolhido do PSDB para o ministério da Fazenda, trabalha com George Soros. Teria atuado no planejamento de vários ataques especulativos. Mas Henrique Meirelles, o titular atual, seria menos influente? Brasileiro de Anápolis, herdeiro de pecuaristas, estudou em Harvard e cultivou relações. Presidiu o Bank Boston brasileiro e o global. Foi tido como um dos banqueiros mais próximos de Bill Clinton – talvez o presidente norte-americano mais ligado à oligarquia financeira. No Brasil, transitou por todo o universo político. Elegeu-se deputado federal pelo PSDB, dirigiu o Banco Central sob Lula e assumiu o ministério da Fazenda com Temer.
O butim é farto, mas a crise é funda. Por isso, a disputa no Planalto se agrava. É ela que traga os demais poderes. Todos – Renan, Temer, César Maia, Gilmar Mendes, Aécio, Serra, Alckmin – querem parte dos bônus. Entrega do Pré-Sal às petroleiras estrangeiras. PEC-241-55, para achatar o gasto social e ampliar a transferência de recursos do Estado aos banqueiros. Desmonte da Previdência, que arrasará o INSS e abrirá caminho para os sistemas de aposentadorias privadas, administrados pelos bancos. Em cada PEC, Projeto de Lei, Medida Provisória, tenebrosas transações. Vinte e quatro horas depois de o Palácio do Planalto enviar ao Congresso a PEC-287, que desmantela a Previdência Social, o relator da matéria na Câmara, deputado Alceu Moreira, anunciava já ter preparado parecer favorável à proposta. “Sou o Flash”, disse com escárnio.
Porém, não há projeto de país. Os que nos exasperávamos com a falta de ideias e criatividade, no período Dilma, enxergamos agora o que é a infertilidade política real. Em nove meses, que mísera ideia o governo Temer apresentou – além do assalto aos direitos sociais e da entrega do Estado aos particulares? Que originalidade demonstraram o PSDB ou a mídia associada ao golpe?
À falta de futuro, alimentam-se de ódios. Erguem a bandeira da luta contra a corrupção. Em nome dela, querem incapacitar ou prender adversários – desde que tal ação preserve… o atual sistema político, no qual nadarão de braçadas, em seguida! Este punitivismo sem programa acende heróis fugazes. Marco Aurélio Mello tentou ceifar Renan imaginando que se converteria imediatamente em herói de Higienópolis, do Leblon e da mídia. O presidente do Senado trucou: sem ele, para a farra das privatizações. Mídia, Planalto e movimentos como o MBL e o Vem Pra Rua enrolaram as bandeiras e puseram-se a negociar com quem tratavam como bandido.
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No cenário de caos para o qual o país regrediu, os direitos sociais parecem ser a chave crucial. Sua devastação divide os golpistas, que disputam o butim. Defendê-los pode unir os que sustentam, além da democracia e da igualdade, a própria ideia de preservar a República – algo a que as elites parecem cada vez mais indiferentes.
Do golpe ao caos – é e tende a ser, por lógica, o caminho dos que impuseram um governo ilegítimo. Contra o caos, os direitos – é uma alternativa. As multidões que se reuniram contra o golpe, entre março e maio, articularam-se acima de tudo em torno da ideia de direitos. Não tinham cor partidária. Reuniam uma galáxia — de velhos militantes a secundaristas; dos movimentos sindicais à luta LGTB; todo o leque de sensibilidades feministas e negras. Estavam unidas pela ideia de que Outro País é Possível; de que não suportamos a normatização social, política e moral que querem nos impor.
Esta galáxia pode se formar de novo – agora pela defesa dos direitos sociais. Em torno deles, e da ideia de país solidário que expressam, é que se pode articular um bloco social amplo e potente – ainda que diverso.
Certas oportunidades não devem ser perdidas. Para 13 de dezembro começam a ser convocadas manifestações que se opõem às políticas de rapina – à PEC 55 e ao desmonte da Previdência, em especial.
No fim de um ano pesado, é preciso reforçá-las. Nelas reside nossa esperança de começar a virada; de acirrar as contradições evidentes entre os que governam contra o país; de abrir caminho para um 2017 respirável.
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