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terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Em "A Chegada" o homem está incomunicável no Universo, por Wilson Roberto Vieira Ferreira.


A exemplo de “Interestelar”, o filme “A Chegada” ("Arrival", 2016) é uma ficção-científica desafiadora. Enquanto no filme de Nolan a física quântica e a relatividade buscavam conciliação num ponto distante da galáxia, em “A Chegada” o desafio está naquilo que nos mantêm presos à Terra, assim como a gravidade: a linguagem. Como nos comunicar com visitantes vindos de um ponto distante do Universo através de uma linguagem que nos aprisiona a um tempo-espaço tridimensional? De repente o homem descobre que está incomunicável no Universo. A linguagem não serve apenas para dar nome a coisas e acontecimentos. Traz consequências: nos aprisiona no tempo e memórias. E para nos libertar da realidade construída pela linguagem, somente um salto de fé. Mas não existe almoço grátis. Mesmo um filme tão intelectualmente ambicioso, teve que pagar o preço político-ideológico de uma produção hollywoodiana.  

Para um estudioso em linguagem e comunicação, A Chegada é um thriller semiótico-linguístico. Para os espectadores em geral, A Chegada é uma narrativa de ficção científica desafiadora. Digamos que seja um mix de Independance Day com o clássico O Dia em Que a Terra Parou de 1951 (despreze a refilmagem de 2008) com uma narrativa potencialmente em loop do filme Interestelar de Christopher Nolan.

Se em Interestelar, Nolan lidava com mecânica quântica e procurava uma conciliação com a Relatividade do tempo-espaço, aqui em A Chegada Villeneuve leva a discussão do contato humano com outros mundos ou civilização para o plano semiótico-linguístico. E o resultado é surpreendente: na verdade a forma como utilizaríamos a linguagem para tentarmos nos comunicar com uma outra civilização seria tão paradoxal que deveríamos alterar radicalmente a maneira como percebemos o tempo e espaço.

Em outras palavras: ao tentarmos imergir na linguagem de uma nova civilização vindo do outro lado da galáxia, teríamos que nos libertar das amarras da nossa própria linguagem. Descobriríamos que a maneira como percebemos passado, presente e futuro é condicionado pela nossa própria gramática, sintaxe e semântica.

A linguagem não é apenas uma ferramenta que dá nome às coisas. Ela altera a maneira como percebemos a realidade. Ou aquilo que chamamos por “realidade”.


Além disso, A Chegada Villeneuve dá um soco no estômago de toda a Teoria da Informação (TI), que é o pressuposto teórico por trás de projetos de busca de inteligência extraterrestre como o SETI (Search of Extraterrestrial Inteligence), nos EUA – visa analisar sinais de rádio de baixa frequência vindos do Universo em busca de alguma transmissão extraterrestre inteligente.

Para a TI, código e redundância seriam sinais de inteligência numa frequência de sinais, por criarem padrões intencionais – distinguindo sinais “aleatórios” dos sinais “inteligentes”, pensando aqui inteligência como “intencionalidade”. Portanto, descobertos esses padrões, bastaria entender a semântica e sintaxe dos sinais para sabermos o que representam.

Porém, essa é uma concepção bem terrestre de inteligência, que projetos como SETI acredita ser universal: qualquer forma de vida inteligente somente poderia se comunicar através de códigos, redundâncias e padrões.

A relatividade do antropocentrismo


Mas não é o caso dos visitantes extraterrestres de A Chegada: se um dia alguma forma de vida “inteligente” de outro planeta vier nos visitar, sua forma de “comunicação” será inteiramente outra. Descobriríamos arduamente que as noções de “inteligência” (como “intencionalidade”) e “comunicação” (como “representação”) são tão relativas que certamente implodiriam o nosso antropocentrismo.

Na verdade, descobriríamos que a teoria da linguagem foi o substituto materialista da velha metafísica religiosa: assim como na religião nós humanos seríamos exclusivos no Universo por sermos criados à imagem e semelhança de Deus, da mesma forma nas Teorias da Linguagem ou na TI a nossa forma de inteligência e comunicação seria a única referência para qualquer inteligência que supostamente exista em algum recôndito da Galáxia.

A Chegada desconstrói todas essas certezas que, como veremos, chega ao ponto do radicalismo gnóstico.


O Filme


Nas primeiras cenas assistimos a um suposto flashback detalhando o nascimento, a breve vida e morte da filha de Louise Banks (Amy Adams), uma emérita especialista em linguística que tem o seu cotidiano na Universidade quebrado por uma transmissão ao vivo da TV no meio de uma aula: 12 gigantescos objetos voadores (chamadas de “conchas”) se posicionaram em diferentes pontos do planeta. São silenciosos e flutuam a poucos metros do solo.

Ao contrário do que os noticiários dizem ao público, os governos do mundo já tentaram fazer o primeiro contato com as criaturas desses objetos, os “heptapods” – grandes criaturas inteligentes que se assemelham a polvos com sete tentáculos, enormes cabeças e mãos gigantes.

Os militares fracassaram em todas as tentativas de comunicação: as criaturas apenas ecoam ruídos que às vezes parecem sons de baleias ou aqueles dos tripods do filme Guerra dos Mundos (2005). Por isso, Louise é contatada pelo Coronel Weber (Forest Whitaker) para ajudar os militares a decodificar a linguagem alienígena, juntamente com o físico e matemático Ian (Jeremy Renner).

Louise e Ian terão que fazer os aliens entenderem uma simples questão: qual o propósito da visita? Junto com uma equipe de militares, entram em uma das conchas, em Montana, EUA. Lá encontrarão uma “barreira”: um espesso vidro pelo qual são separados os dois meios ambientes. Através do vidro, tentarão empreender uma aventura linguística.

A “barreira” é a grande metáfora do filme. Louise sente que a noção de linguagem dos militares é bem limitada. Não se trata apenas de “decodificar” – a linguagem também é feita de interações e jogos de linguagem corporais. Para pânico dos militares, Louise abandona os protocolos de segurança e se despe das roupas de proteção. Encosta a palma da mão no vidro, para ter a primeira resposta dos alienígenas: com as enormes mãos, desenham um círculo com tinta escura.

Será um símbolo? Um ideograma? Um ícone? Um o quê? As coisas vão complicando quando descobrem que esses círculos são muito mais do que isso: transmitem uma sentença ou um pensamento complexo em um segundo, com começo, meio e fim – nada a ver com letras ou frases.


Corrida contra o tempo


O que era um estudo científico, transforma-se numa corrida contra o tempo: o mal estar das grandes potencias como Rússia e China cresce. A barreira parece não estar apenas dentro de cada “concha” – entre os países cresce a desconfiança se todas as descobertas estão sendo partilhadas entre si. O instinto predador humano ameaça levar as potencias à guerra contra os visitantes interplanetários.

E para piorar, cresce convulsões nas grandes cidades como ondas de saque e violência e surgem cultos suicidas e terroristas em todo o mundo: parece que a descoberta que não somos os únicos criados à imagem e semelhança de Deus no Universo criou um estado de anomia e descrença por qualquer regra, lei ou princípio religioso ou filosófico. Se tudo é relativo, então vale tudo!

Essa sensação de relatividade se abaterá sobre Louise e Ian: como nos comunicarmos com aquilo que nos aterroriza por ser inteiramente outro?


A linguagem traz consequências


Uma das chaves de interpretação do filme é a fala de Louise na primeira sequência enquanto relembra o drama da morte da sua filha: “A memória é uma coisa estranha. Não funciona como imaginava. Estamos tão prisioneiros do tempo... pela sua ordem...”.

Representamos o passado através da linguagem, com a sua ordem sequencial de letras, sinais, fonemas organizados por uma ordem sintática. Ordem sequencial que representa a própria seta do tempo (passado, presente e futuro). A linguagem faz muito mais do que dar nomes a coisas ou acontecimentos: ela molda a realidade, cria um roteiro para navegarmos pelo mundo. Por isso a linguagem traz consequências – pode nos aprisionar em uma rede significante binária.

A primeira coisa que Louise e Ian compreendem é a palavra “arma” comunicada pelos círculos. Presos à binaridade dos códigos, pensaríamos a palavra dentro das oposições guerra/paz, violência/brandura etc.

Mas os heptapods não articulam a linguagem dessa maneira: sua comunicação escrita deriva de uma compreensão complicada e matemática do universo, muito próximo à conclusão final do filme Interestelar de Nolan. Através da sua escrita, os aliens podem folhear as próprias linhas do tempo quanto folheamos um livro.

Como romper com a prisão linguística? A resposta que A Chegada nos dá é gnóstica: por meio do salto de fé – arriscar tudo, romper com a binaridade, códigos, redundâncias e exercitar o aspecto invisível de toda linguagem, talvez essa a sua dimensão verdadeiramente universal: a interação analógica.

Louise arrisca tudo e se arroja para o interior da “concha” sozinha e desprotegida. Lá descobrirá como a nossa linguagem é limitada à maneira tridimensional como nossos corpos ocupam o espaço. A nossa linguagem se ocupa apenas da largura, profundidade e altura.

Falta o tempo, a dimensão analógica e sensível que a tecnologia digital humana parece querer nos fazer esquecer na cultura do eterno presente hedonista.


Não existe almoço grátis


Porém, tanta ambição filosófica de Dennis Villeneuve e do roteirista Eric Heisser (baseado no conto de Ted Chiang Story of Your Life tem um preço a ser pago. Afinal estamos numa cara produção hollywoodiana com lançamento em circuito mundial.

“Não existe almoço grátis”, diz uma frase popular que sintetiza o pragmatismo norte-americano. A Chegada teve que pagar o tributo aos clichês político-ideológicos hollywoodianos.

Para começar, as cenas de tensão iniciais da chegada das “conchas” e os primeiros contatos com os heptapods tem uma trilha musical com um toque, digamos, árabe. Afinal, para o Ocidente nada mais “alienígena” do que uma sonoridade oriental.

A cineteratologia (o estudo da representação dos monstros no cinema – clique aqui) dos aliens é bem Hollywood, lembrando as versões do filme Guerra dos Mundos e seus tripods. Até o som que ecoam em muitos momentos lembram as aterrorizantes trombetas das gigantescas máquinas do filme com Tom Cruise.

E, claro, as potências mais beligerantes e impacientes que querem partir para a guerra são, obviamente, China e Rússia. Enquanto isso, pacientemente e com senso de compaixão, cientistas norte-americanos tentam compreender o propósito das criaturas interplanetárias.

Em tempos atuais, certamente a NSA ou CIA teriam hackeado a comunicação alienígena para descobrir nas “conchas” alguma super-tecnologia que garantisse a supremacia dos EUA por todo o planeta. Se é que isso já não aconteceu...

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