A exemplo de “Interestelar”, o filme “A
Chegada” ("Arrival", 2016) é uma ficção-científica desafiadora. Enquanto no filme de Nolan a física
quântica e a relatividade buscavam conciliação num ponto distante da galáxia, em
“A Chegada” o desafio está naquilo que nos mantêm presos à Terra, assim como a
gravidade: a linguagem. Como nos comunicar com visitantes vindos de um ponto
distante do Universo através de uma linguagem que nos aprisiona a um
tempo-espaço tridimensional? De repente o homem descobre que está incomunicável no Universo. A linguagem não serve apenas
para dar nome a coisas e acontecimentos. Traz consequências: nos aprisiona no
tempo e memórias. E para nos libertar da realidade construída pela linguagem,
somente um salto de fé. Mas não existe almoço grátis. Mesmo um filme tão intelectualmente
ambicioso, teve que pagar o preço político-ideológico de uma produção
hollywoodiana.
Para um estudioso em linguagem e comunicação,
A Chegada é um thriller
semiótico-linguístico. Para os espectadores em geral, A Chegada é uma narrativa de ficção científica desafiadora. Digamos
que seja um mix de Independance Day
com o clássico O Dia em Que a Terra Parou
de 1951 (despreze a refilmagem de 2008) com uma narrativa potencialmente em
loop do filme Interestelar de
Christopher Nolan.
Se em Interestelar, Nolan lidava com mecânica quântica e procurava uma conciliação
com a Relatividade do tempo-espaço, aqui em A
Chegada Villeneuve leva a discussão do contato humano com outros mundos ou
civilização para o plano semiótico-linguístico. E o resultado é surpreendente:
na verdade a forma como utilizaríamos a linguagem para tentarmos nos comunicar
com uma outra civilização seria tão paradoxal que deveríamos alterar
radicalmente a maneira como percebemos o tempo e espaço.
Em outras palavras: ao
tentarmos imergir na linguagem de uma nova civilização vindo do outro lado da
galáxia, teríamos que nos libertar das amarras da nossa própria linguagem.
Descobriríamos que a maneira como percebemos passado, presente e futuro é
condicionado pela nossa própria gramática, sintaxe e semântica.
A linguagem não é apenas uma
ferramenta que dá nome às coisas. Ela altera a maneira como percebemos a realidade.
Ou aquilo que chamamos por “realidade”.
Além disso, A Chegada Villeneuve dá um soco no
estômago de toda a Teoria da Informação (TI), que é o pressuposto teórico por
trás de projetos de busca de inteligência extraterrestre como o SETI (Search of
Extraterrestrial Inteligence), nos EUA – visa analisar sinais de rádio de baixa
frequência vindos do Universo em busca de alguma transmissão extraterrestre
inteligente.
Para a TI, código e redundância
seriam sinais de inteligência numa frequência de sinais, por criarem padrões
intencionais – distinguindo sinais “aleatórios” dos sinais “inteligentes”,
pensando aqui inteligência como “intencionalidade”. Portanto, descobertos esses
padrões, bastaria entender a semântica e sintaxe dos sinais para sabermos o que
representam.
Porém, essa é uma concepção
bem terrestre de inteligência, que projetos como SETI acredita ser universal:
qualquer forma de vida inteligente somente poderia se comunicar através de
códigos, redundâncias e padrões.
A relatividade do antropocentrismo
Mas não é o caso dos
visitantes extraterrestres de A Chegada:
se um dia alguma forma de vida “inteligente” de outro planeta vier nos visitar,
sua forma de “comunicação” será inteiramente outra. Descobriríamos arduamente
que as noções de “inteligência” (como “intencionalidade”) e “comunicação” (como
“representação”) são tão relativas que certamente implodiriam o nosso
antropocentrismo.
Na verdade, descobriríamos
que a teoria da linguagem foi o substituto materialista da velha metafísica
religiosa: assim como na religião nós humanos seríamos exclusivos no Universo
por sermos criados à imagem e semelhança de Deus, da mesma forma nas Teorias da
Linguagem ou na TI a nossa forma de inteligência e comunicação seria a única
referência para qualquer inteligência que supostamente exista em algum
recôndito da Galáxia.
A Chegada desconstrói todas essas certezas que, como veremos, chega ao ponto do
radicalismo gnóstico.
O Filme
Nas primeiras cenas assistimos
a um suposto flashback detalhando o nascimento, a breve vida e morte da filha
de Louise Banks (Amy Adams), uma emérita especialista em linguística que tem o
seu cotidiano na Universidade quebrado por uma transmissão ao vivo da TV no
meio de uma aula: 12 gigantescos objetos voadores (chamadas de “conchas”) se
posicionaram em diferentes pontos do planeta. São silenciosos e flutuam a
poucos metros do solo.
Ao contrário do que os
noticiários dizem ao público, os governos do mundo já tentaram fazer o primeiro
contato com as criaturas desses objetos, os “heptapods” – grandes criaturas
inteligentes que se assemelham a polvos com sete tentáculos, enormes cabeças e
mãos gigantes.
Os militares fracassaram em
todas as tentativas de comunicação: as criaturas apenas ecoam ruídos que às
vezes parecem sons de baleias ou aqueles dos tripods do filme Guerra dos Mundos (2005). Por isso,
Louise é contatada pelo Coronel Weber (Forest Whitaker) para ajudar os
militares a decodificar a linguagem alienígena, juntamente com o físico e
matemático Ian (Jeremy Renner).
Louise e Ian terão que fazer
os aliens entenderem uma simples questão: qual o propósito da visita? Junto com
uma equipe de militares, entram em uma das conchas, em Montana, EUA. Lá
encontrarão uma “barreira”: um espesso vidro pelo qual são separados os dois
meios ambientes. Através do vidro, tentarão empreender uma aventura
linguística.
A “barreira” é a grande
metáfora do filme. Louise sente que a noção de linguagem dos militares é bem
limitada. Não se trata apenas de “decodificar” – a linguagem também é feita de
interações e jogos de linguagem corporais. Para pânico dos militares, Louise
abandona os protocolos de segurança e se despe das roupas de proteção. Encosta
a palma da mão no vidro, para ter a primeira resposta dos alienígenas: com as
enormes mãos, desenham um círculo com tinta escura.
Será um símbolo? Um
ideograma? Um ícone? Um o quê? As coisas vão complicando quando descobrem que
esses círculos são muito mais do que isso: transmitem uma sentença ou um pensamento
complexo em um segundo, com começo, meio e fim – nada a ver com letras ou
frases.
Corrida contra o tempo
O que era um estudo
científico, transforma-se numa corrida contra o tempo: o mal estar das grandes
potencias como Rússia e China cresce. A barreira parece não estar apenas dentro
de cada “concha” – entre os países cresce a desconfiança se todas as
descobertas estão sendo partilhadas entre si. O instinto predador humano ameaça
levar as potencias à guerra contra os visitantes interplanetários.
E para piorar, cresce
convulsões nas grandes cidades como ondas de saque e violência e surgem cultos
suicidas e terroristas em todo o mundo: parece que a descoberta que não somos
os únicos criados à imagem e semelhança de Deus no Universo criou um estado de
anomia e descrença por qualquer regra, lei ou princípio religioso ou
filosófico. Se tudo é relativo, então vale tudo!
Essa sensação de relatividade
se abaterá sobre Louise e Ian: como nos comunicarmos com aquilo que nos
aterroriza por ser inteiramente outro?
A linguagem traz consequências
Uma das chaves de
interpretação do filme é a fala de Louise na primeira sequência enquanto
relembra o drama da morte da sua filha: “A memória é uma coisa estranha. Não
funciona como imaginava. Estamos tão prisioneiros do tempo... pela sua
ordem...”.
Representamos o passado
através da linguagem, com a sua ordem sequencial de letras, sinais, fonemas
organizados por uma ordem sintática. Ordem sequencial que representa a própria
seta do tempo (passado, presente e futuro). A linguagem faz muito mais do que
dar nomes a coisas ou acontecimentos: ela molda a realidade, cria um roteiro
para navegarmos pelo mundo. Por isso a linguagem traz consequências – pode nos
aprisionar em uma rede significante binária.
A primeira coisa que Louise e
Ian compreendem é a palavra “arma” comunicada pelos círculos. Presos à
binaridade dos códigos, pensaríamos a palavra dentro das oposições guerra/paz,
violência/brandura etc.
Mas os heptapods não
articulam a linguagem dessa maneira: sua comunicação escrita deriva de uma
compreensão complicada e matemática do universo, muito próximo à conclusão
final do filme Interestelar de Nolan. Através da sua escrita, os aliens podem
folhear as próprias linhas do tempo quanto folheamos um livro.
Como romper com a prisão linguística? A resposta que A Chegada nos dá é gnóstica: por meio do salto de
fé – arriscar tudo, romper com a binaridade, códigos, redundâncias e exercitar
o aspecto invisível de toda linguagem, talvez essa a sua dimensão
verdadeiramente universal: a interação analógica.
Louise arrisca tudo e se
arroja para o interior da “concha” sozinha e desprotegida. Lá descobrirá como a
nossa linguagem é limitada à maneira tridimensional como nossos corpos ocupam o
espaço. A nossa linguagem se ocupa apenas da largura, profundidade e altura.
Falta o tempo, a dimensão analógica e sensível que a tecnologia digital humana
parece querer nos fazer esquecer na cultura do eterno presente hedonista.
Não existe almoço grátis
Porém, tanta ambição
filosófica de Dennis Villeneuve e do roteirista Eric Heisser (baseado no conto
de Ted Chiang Story of Your Life tem
um preço a ser pago. Afinal estamos numa cara produção hollywoodiana com
lançamento em circuito mundial.
“Não existe almoço grátis”,
diz uma frase popular que sintetiza o pragmatismo norte-americano. A Chegada teve que pagar o tributo aos
clichês político-ideológicos hollywoodianos.
Para começar, as cenas de
tensão iniciais da chegada das “conchas” e os primeiros contatos com os
heptapods tem uma trilha musical com um toque, digamos, árabe. Afinal, para o
Ocidente nada mais “alienígena” do que uma sonoridade oriental.
A cineteratologia (o estudo
da representação dos monstros no cinema – clique aqui) dos aliens é bem
Hollywood, lembrando as versões do filme Guerra
dos Mundos e seus tripods. Até o som que ecoam em muitos momentos lembram
as aterrorizantes trombetas das gigantescas máquinas do filme com Tom Cruise.
E, claro, as potências mais
beligerantes e impacientes que querem partir para a guerra são, obviamente,
China e Rússia. Enquanto isso, pacientemente e com senso de compaixão, cientistas
norte-americanos tentam compreender o propósito das criaturas interplanetárias.
Em tempos atuais, certamente
a NSA ou CIA teriam hackeado a comunicação alienígena para descobrir nas “conchas”
alguma super-tecnologia que garantisse a supremacia dos EUA por todo o planeta.
Se é que isso já não aconteceu...
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