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sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Um Judiciário sem controle algum, por Fabio Konder Comparato.

comparato
Para o grande jurista, há uma razão para quase duzentos anos de desresponsabilização dos juízes: eles são o grande guardião do poder oligárquico. Mas existem alternativas
Fábio Konder Comparato, entrevistado por Franciele Petry Schramm*
O arquivamento do pedido de impeachmentdo Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, enquanto ainda tramitava no Senado Federal, não surpreendeu Fábio Konder Comparato, um dos integrantes do grupo de juristas que apresentou o pedido.
Segundo o professor emérito de Direito da Universidade de São Paulo (USP), é preciso levar em consideração que os senadores são julgados pelo STF nas infrações penais comuns, e que vários deles respondem a inquéritos criminais ou são réus em ações penais.  “É óbvio que o Senado Federal não é o órgão apropriado para julgar os crimes de responsabilidade cometidos pelos Ministros do Supremo Tribunal”, avalia.
Apresentado ao Senado no dia 13 de setembro e arquivado uma semana depois, o pedido de impeachment de Gilmar Mendes aponta, em seus argumentos, o comportamento partidário do ministro e a violação de princípios constitucionais e de códigos da magistratura.

Em entrevista a Articulação Justiça e Direitos Humanos, Comparato alerta para a falta de controle jurídico sobre Ministros do Supremo Tribunal Federal e aponta a necessidade de uma reforma do Poder Judiciário.
Confira:
JusDh: O pedido de impeachment de Gilmar Mendes aponta um comportamento partidário por parte de Gilmar Mendes, e acusa o ministro de ferir a Constituição, o Código de Ética e a Lei Orgânica da Magistratura. O senhor considera que a postura do Ministro é uma postura isolada dentro do STF?
Fábio Comparato: De todos os atuais Ministros do Supremo Tribunal Federal, o desempenho de Gilmar Mendes é o que mais deixa a desejar. É por isso que decidimos ingressar com o pedido de impeachment, exatamente para alertar os demais Ministros e a opinião pública quanto ao perigo de generalização desse mau procedimento. Na verdade, atualmente os Ministros de nossa Suprema Corte de Justiça não estão sujeitos a controle jurídico algum, pois não há nenhum Poder acima do tribunal e dos magistrados que o compõem. A Constituição Federal dispõe em seu artigo 102 competir precipuamente ao Supremo Tribunal Federal “a guarda da Constituição”. O Conselho Nacional de Justiça é um órgão constitucional, com competência para controlar o cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, declarados no Estatuto da Magistratura (art. 103-B, § 4º). Ninguém pode negar, nem mesmo o Ministro Gilmar Mendes, que os Ministros do Supremo Tribunal Federal fazem parte da magistratura e devem, por conseguinte, cumprir os deveres impostos pelo Estatuto da Magistratura. Ora, abusando de sua condição de instância judiciária máxima, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.367 do Distrito Federal, decidiu que “o Conselho Nacional de Justiça não tem nenhuma competência sobre o STF e seus Ministros”. Ou seja, o tribunal decidiu isentar-se do cumprimento de qualquer dever funcional, ainda que previsto na Constituição, da qual foi declarado guardião.
Esse não a primeira vez que um pedido de impeachment de um ministro do STF foi protocolado no Senado Federal. Até o momento, nenhum desses pedidos foi acatado pelo Senado. O senhor avalia que há dificuldade em colocar em questionamento as posturas e decisões do STF? Por quê?
Levando-se em conta que os Senadores são sujeitos à jurisdição do Supremo Tribunal Federal nas infrações penais comuns, e sabendo-se que vários dos atuais Senadores respondem a inquéritos criminais, ou já são réus em ações penais, é óbvio que o Senado Federal não é o órgão apropriado para julgar os crimes de responsabilidade cometidos pelos Ministros do Supremo Tribunal. Consta, aliás, que Sua Excelência, o Sr. Presidente do Senado Federal, responde a inquérito criminal no Supremo. Ora, ele, evidentemente, assim que recebeu a petição de impeachment de Gilmar Mendes, determinou o seu arquivamento. Ou seja, aplicou-se o velho costume do “dá lá, toma cá”.
De que forma a composição do Sistema de Justiça contribuiu para a manutenção de uma prática pouco democrática e que nem sempre observa a garantia dos direitos humanos?
Até a promulgação da Lei Orgânica da Magistratura (Lei Complementar nº 35, de 14/03/1979), não eram definidos os deveres funcionais dos magistrados. E até a promulgação da Emenda Constitucional nº 45, de 8/12/2004, que instituiu o Conselho Nacional de Justiça, não havia nenhum órgão de controle da atuação dos magistrados, incumbido de julgar o cumprimento de tais deveres. Verificamos, portanto, que durante um século e meio após a Independência, os nossos magistrados atuaram isentos de qualquer controle, a não ser o mui esporadicamente exercido por eles mesmos.
Dois exemplos históricos são ilustrativos dessa tradição de irresponsabilidade.
Em sua viagem ao redor do mundo, pela qual comprovou sua teoria da evolução das espécies, Charles Darwin fez uma estadia de vários meses no Brasil em 1832. Pôde então verificar o seguinte, conforme reportado em seu diário de viagem:
“Não importa o tamanho das acusações que possam existir contra um homem de posses, é seguro que em pouco tempo ele estará livre. Todos aqui podem ser subornados. Um homem pode tornar-se marujo ou médico, ou assumir qualquer outra profissão, se puder pagar o suficiente. Foi asseverado com gravidade por brasileiros que a única falha que eles encontraram nas leis inglesas foi a de não poderem perceber que as pessoas ricas e respeitáveis tivessem qualquer vantagem sobre os miseráveis e os pobres”.
O segundo exemplo diz respeito ao Supremo Tribunal de Justiça, o mais alto órgão judiciário no tempo do Império. Ao final do seu reinado,em declaração ao Visconde de Sinimbu, D. Pedro II não pôde conter-se e desabafou:
“A primeira necessidade da magistratura é a responsabilidade eficaz; e enquanto alguns magistrados não forem para a cadeia, como, por exemplo, certos prevaricadores muito conhecidos do Supremo Tribunal de Justiça, não se conseguirá esse fim”.
Quais caminhos e possibilidades o senhor considera necessário para tornar o Sistema de Justiça menos intangível, no que se refere à sua composição e na avaliação de suas próprias ações?
Desde sempre a magistratura brasileira, com raras e mui honrosas exceções, fez parte integrante do poder oligárquico, que predominou em nosso país desde o início da colonização portuguesa. Ora, um costume multissecular, entranhado na mentalidade coletiva e preservado pelas instituições políticas, não desaparece em pouco tempo. O processo de reforma em profundidade do Poder Judiciário será, portanto, concomitante ao processo de extinção do regime oligárquico; ou seja, não se fará da noite para o dia e, uma vez iniciado (o que ainda não aconteceu), irá durar várias gerações. O que se pode fazer hoje para provocar o início desse processo é propor algumas medidas específicas, as quais, como o pedido de impeachment de Gilmar Mendes, serão no começo certamente denegadas, mas, sendo reiteradas, acabarão por abalar a opinião pública, abrindo os olhos da maioria do povo, que não faz parte da oligarquia. Uma dessas medidas é a transformação do Supremo Tribunal Federal em Alta Corte Constitucional, reduzindo a sua competência e determinando que a nomeação de seus Ministros seja feita pelo Congresso Nacional, dentre candidatos escolhidos preliminarmente pelo Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Superior do Ministério Público e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. É o que consta da Proposta de Emenda Constitucional nº 275/2013, por mim redigida e apresentada à Câmara dos Deputados pela Deputada Luiza Erundina. A segunda medida é a reorganização do Conselho Nacional de Justiça, a fim de que ele não seja composto por uma maioria de magistrados, como agora, e passe a ter explicitamente jurisdição sobre os Ministros do Supremo Tribunal Federal. A terceira medida seria, simplesmente, reintroduzir em nossa Constituição a ação popular contra magistrados, como determinavam os artigos 156 e 157 da Constituição de 1824:
Art. 156 – Todos os Juízes de Direito e os Oficiais de Justiça são responsáveis pelos abusos de poder e prevaricações que cometerem no exercício de seus Empregos; esta responsabilidade se fará efetiva por Lei regulamentar.
Art. 157 – Por suborno, peita, peculato e concussão, haverá contra eles ação popular, que poderá ser intentada dentro de ano e dia pelo próprio queixoso, ou por qualquer do Povo, guardada a ordem do Processo obedecida na Lei.

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