A exceção tem se incorporado ao direito e à democracia no Brasil,
subvertendo a ambos e convertendo-os à regressão, à imagem e semelhança
do regime institucional apropriado ao conservadorismo neoliberal, cuja
origem está no golpe parlamentar. Já mencionei aqui (em 27 set. 2016)
que, para a Corte Especial do TRF4, “uma situação excepcional exige
condutas excepcionais”. Essa pérola da racionalidade autoritária (usada e
abusada nos regimes fascistas) foi proferida em resposta à
representação que um conjunto de advogados interpuseram contra a
revelação, pelo juiz Sergio Moro, do conteúdo da interceptação
telefônica entre os ex-presidentes Lula e Dilma, em março de 2016,
obtido ilegalmente. Na semana passada, esse mesmo juiz condenou Lula,
motivado pela necessidade de lançar mão da exceção, uma vez que só ela,
deformando a Constituição, é capaz de servir de instrumento farsesco
para a condenação política da maior liderança do PT, muito baseada em
delação premiada.
Vários juristas e advogados têm se oposto
veementemente à sentença condenatória de Sergio Moro contra Lula.
Segundo a Frente Brasil de Juristas pela Democracia, a sentença “expõe
de forma clara a opção do julgador pelo uso do Direito com fins
políticos, demonstrando nítida adoção do processo penal de exceção,
próprio dos regimes autoritários. Para Dalmo de Abreu Dallari, “o Juiz
Moro dá muitas voltas, citando fatos e desenvolvendo argumentos que não
contêm qualquer comprovação da prática de um crime que teria sido
cometido por Lula”. Os argumentos críticos são variados e abrangem
diversos aspectos da sentença. Um elemento estrutural foi mencionado
pelo cientista político Leonardo Avritzer: “É direito dedutivo com
descarte de provas contrárias à opinião do juízo”.
Mais de uma
centena de juristas nacionais e internacionais escreverão um livro para
argumentar que o julgamento de Moro foi uma farsa. E toda essa encenação
vem sendo erguida pelo populismo jurídico, que se dirige às massas
visando agradá-las, para o que necessita da grande mídia, cuja
influência sobre a opinião pública pode ser decisiva, como a longa
conjuntura da crise brasileira tem evidenciado.
O combate à
corrupção promovido pela Lava Jato tem sido encarado como uma bandeira
política mais importante que o compromisso com o Estado Democrático de
Direito. Sendo Lula visto como o comandante máximo de uma organização
criminosa, conforme expresso no famoso episódio do Power Point de
Dallagnol, há que se condená-lo, prendê-lo e excluí-lo das eleições de
2018, para que uma nova política purificada passe a vigorar no país.
Lembre-se que a Lava Jato foi também peça fundamental na construção do
ambiente político e social que levou ao controverso impedimento da
presidenta Dilma Roussef, abrindo uma fissura institucional muito séria
no regime, propensa a induzir à instabilidade política e à perseverança
temporal da crise de legitimidade do sistema representativo. O
impeachment foi também visto por alguns atores que o apoiaram como um
momento da idealizada e ingênua purificação política.
Obviamente,
há opiniões de profissionais do meio jurídico favoráveis à decisão de
condenação de Lula. A régua para avaliar certos fatos depende de
valores, ideologias etc. Mas o relativismo tem limites. A margem de
liberdade de interpretação valorativa de fatos do direito está sujeita
ao crivo social. E o homem público tende a se ajustar à ética da
responsabilidade, que é consequencialista. O país está dividido em
relação a vários temas e a condenação de Lula é uma questão-chave. Ele é
a maior liderança política do Brasil atual, dirigente do partido
político cuja legenda, apesar do desgaste recente, ainda ocupa o
primeiro lugar nas preferências partidárias dos eleitores e, sobretudo,
Lula está posicionado no topo das pesquisas de intenção de voto
presidencial para as eleições de 2018. O maior objetivo da condenação de
Lula, segundo várias opiniões, inclusive a minha, é impedi-lo de
concorrer às eleições do ano que vem. A decisão de Moro expressa a
consumação da forte tendência da República de Curitiba e de seus aliados
midiáticos, observada desde 2014, no sentido de condenar Lula de
antemão, por motivo político-ideológico.
Uma breve digressão.
Várias vozes, como a do cientista político Bruno Wanderley Reis, avaliam
que a delação premiada deveria ser utilizada exclusivamente para
combater o crime organizado, não a corrupção, devido à destruição
imediata que esse instrumento provoca no sistema político, ao mesmo
tempo em que tal caminho não aponta para um ponto final melhor que o
ponto de partida. Ele sugere um “processo de ajustamentos sucessivos de
conduta”. Ademais, a questão fundamental do financiamento privado das
campanhas eleitorais tem sido pouco abordada pelo partido da
moralização, a começar pela grande mídia.
Note-se que a não
aprovação, pela CCJ da Câmara, da autorização para que Temer seja
processado pelo STF por crime de corrupção é apenas uma evidência da
ruptura entre o “partido da delação premiada” e o “partido do
presidencialismo de coalizão”. Essa blindagem seletiva do sistema
político à corrupção governista é uma evidência de que o projeto
político policialesco de combate à corrupção está divorciado da classe
política. Essa tensão é contraproducente, seja para a perspectiva do
combate à corrupção, seja para a perspectiva de se avançar rumo a uma
institucionalidade política e a uma classe política mais próximas do
denominado interesse público. O resultado atual é que o país é uma nau à
deriva.
A absolvição pelo TRF4 de João Vaccari, ex-tesoureiro do
PT, após ter sido condenado por Moro, abre uma fresta de esperança em
alguma retomada do garantismo jurídico perdido no ambiente de euforia
criado com a aplicação do método das delações premiadas para investigar
crimes de corrupção, ou seja, crimes que envolvem duas partes, por um
lado, políticos e funcionários públicos e, por outro, o setor privado.
Se o PT não conseguiu escapar do modus operandi irregular envolvido no
financiamento político pelas grandes empresas, ao qual se seguiam
contrapartidas em obras, serviços públicos, leis e decisões
administrativas pró-financiadores, não é por isso que se pode aceitar
uma condenação forçada, com caráter de exceção, na qual parte-se de um
pressuposto inaceitável: a presunção de culpa, ainda por cima,
politicamente motivada. A absolvição de Lula pelo TRF4 é indispensável.
Sem isso, a barbárie do sistema político brasileiro e o retrocesso no
Estado de direito tendem a aumentar, levando o conjunto do país a
reboque. O partido da esquerda não vai aceitar que o partido da direita
faça isso com o maior líder da democracia brasileira. A crise política
tende a dificultar a superação da crise econômica, embora essa última
diga respeito também às escolhas de políticas públicas, o que é outra
estória...
* Marcus Ianoni é cientista político, professor do
Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense
(UFF), realizou estágio de pós-doutorado na Universidade de Oxford e
estuda as relações entre Política e Economia
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