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quarta-feira, 26 de julho de 2017

Quando se trata de matar jovens negros e pobres, o Rio nunca entra em crise, por Leonardo Sakamoto.


Enterro de morto na chacina de Costa Barros, no Rio, em 2015, quando policiais dispararam 111 tiros contra cinco jovens e, depois, tentaram plantar armas no carro das vítimas. Foto: AFP
Nove entre cada dez pessoas mortas pela polícia no Estado do Rio de Janeiro são negras e pardas. O dado foi obtido pelo UOL através da Lei de Acesso à Informação e reforça o racismo institucional do Estado brasileiro.
Organizadas com base em boletins de ocorrência da Polícia Civil, as informações mostram que, ao menos, 1227 pessoas foram mortas pela força policial entre janeiro de 2016 e março de 2017. Metade delas tinham até 29 anos. A maioria na periferia.
O dado é triste, mas não surpreende. Pode ser espantoso para quem vive em um bairro nobre, protegido por câmeras, muros altos e um batalhão de seguranças que o principal alvo da violência no Rio não seja homens e mulheres brancos e ricos. Contudo, a pesquisa não traz novidade para quem sente na pele um genocídio em curso.
O que assusta de verdade é que muitos desses homens, brancos e ricos, moradores de regiões nobres, não consigam entender por que muita gente no país teme a polícia tanto quanto ou mais do que teme os próprios bandidos.
O Atlas da Violência 2017, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) junto com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e divulgado em junho passado, havia mostrado que o homem, jovem, negro e com baixa escolaridade é o principal perfil das vítimas fatais dos 59.080 homicídios foram registrados no país em 2015 (contra 48.136, dez anos antes).
A taxa de mortes entre 15 e 29 anos para cada grupo de 100 mil jovens foi de 60,9 em 2015, último ano analisado pela pesquisa. Contando apenas homens jovens, o indicador aumenta para 113,6 – a taxa geral por 100 mil habitantes no Brasil foi de 28,9. Ao mesmo tempo, a violência avançou contra negros entre 2005 e 2015: houve um crescimento de 18,2% na taxa de homicídios de negros, enquanto a de não negros diminuiu 12,2%. Neste caso, os números são de óbitos causados por vários autores, não apenas a polícia.
O relatório mostra que a violência também aumentou contra mulheres negras: Enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras diminuiu 7,4%, entre 2005 e 2015, o indicador equivalente para as mulheres negras aumentou 22%.
Não raro, essas mortes permanecem sem solução. Não é que a nossa sociedade não consegue apontar e condenar culpados por todas elas como deveria. Parece que ela simplesmente não faz questão. E quem está enclausurado nas regiões encasteladas das grandes cidades, preocupa-se com as mortes daqueles que reconhece como ''cidadãos'', ou seja, dos que reconhece como seus semelhantes. Não de negros e pobres. Pelo contrário, não raro apoiam formas de ''limpeza social'' do que chamam de ''pessoal perigoso''. E que ameaçam, com sua existência, os ''pagadores de impostos''.
Nas redes sociais, a filosofia de botequim joga na vala comum os mortos ''culpados'' – que são assim tachados sem terem direito a um julgamento justo, recebendo pena de morte – e ''inocentes'' – que podem não ter cometido aquele crime em questão, mas ''se levaram bala da polícia é porque estavam em lugar que gente honesta não frequenta''. Muitos dos autointitulados ''cidadãos de bem'' desejam que essa limpeza social seja rápida, para garantir tranquilidade, e não faça muito barulho. Porque, pasmem, ele tem horror a cenas de violência.
Sem demérito para outras pautas sociais e políticas, isso seria razão mais do que suficiente para ocuparmos as ruas do país em protesto. Mas, como já disse aqui antes, a verdade é que a morte de jovem negro e pobre não vale o arranhão deixado na caçarola por uma bateção de panelas.
É claro que não há ordens diretas para metralhar todos os jovens negros e pobres da periferia dados pelo comando do poder público. Mas nem precisaria. As forças de segurança em grandes metrópoles, como o Rio ou São Paulo, são treinadas para, primeiro, garantir a qualidade de vida e o patrimônio de quem vive na parte ''cartão postal'' das cidades e, só depois, o mesmo para outras camadas sociais.
As batalhas do tráfico sempre aconteceram longe dos olhos da classe alta, uma vez que a imensa maioria dos corpos contabilizados sempre é desses jovens, negros, pobres, que se matam na conquista de territórios para venda de drogas, pelas leis do tráfico e pelas mãos da polícia e das milícias. Os mais ricos sentem a violência, mas o que chega neles não é nem de perto o que os mais pobres são obrigados a viver no dia a dia. Mesmo no pau que está comendo hoje no Rio, sabemos que a maioria dos mortos não é de moradores da orla, da Lagoa, da Barra ou do Cosme Velho.
Considerando que policiais, comunidade e traficantes são de uma mesma origem social e, não raro, da mesma cor de pele, é uma batalha interna. Mortos pelos quais pouca gente fora das comunidades irá prantear.
A forma como o tráfico de drogas se organizou e a política estúpida adotada pelo poder público para combatê-lo estão entre as principais razões desse conflito armado organizado. A questão é que, se o Brasil conseguir entender que a ''guerra às drogas'' joga combustível no fogo ao invés de controlá-lo e mudar sua política, as classes mais altas perderão um excelente instrumento de controle das classes mais baixas. Se assim for, qual seria a justificativa para entrar e botar ordem na comunidade? De limpar tudo para garantir a alegria da especulação imobiliária, que sobe o morro no Rio?
Já faz tempo que o Rio optou pelo caminho mais fácil do terrorismo de Estado ao invés de buscar mudanças estruturais – como garantir qualidade de vida à população e essas perspectivas para os mais jovens, para além de despejar força policial dia e noite. Foi assim para viabilizar os Jogos Panamericanos, a Copa do Mundo e as Olimpíadas. A crise de governabilidade pela qual passa o Estado, aliado à crise econômica, apenas aprofunda esse quadro.
Policiais não são monstros alterados por radiação para serem insensíveis ao ser humano. Não é da natureza da maioria das pessoas que decide vestir farda (por opção ou falta dela) tornar-se violenta. Elas aprendem a agir assim. No cotidiano da instituição a que pertencem (e sua natureza mal resolvida), na formação profissional que tiveram, na exploração diária como trabalhadores e na internalização de sua principal missão: manter a ordem (e o status quo) a qualquer preço. Esse problema não se resolve apenas com aulas de direitos humanos e sim com uma revisão sobre o papel e os métodos da polícia em nossa sociedade.
Desde o início do ano, em meio à crise econômica, mais de 90 policiais foram assassinados no Estado, a maior parte deles fora do horário de serviço. Aliás, policiais honestos também são vítimas da situação.
E, apesar de haver uma maioria honesta de policiais, há setores das corporações que estão impregnados com a ideia de que nada acontecerá com eles caso não cumpram regras. É preciso avançar no debate sobre a desmilitarização da polícia dos administradores públicos e responsabilizá-los por cada ato de violência estatal oriundo dessa inação. Não é possível que a polícia atue como se estivesse em guerra contra seu próprio povo, aquele que ela deveria proteger.
Ao se criticar essas mortes pelas mãos do Estado, não defendemos ''bandido'', mas sim o pacto que os membros da sociedade fizeram entre si para poderem conviver (minimamente) em harmonia. Não entregamos para o Estado o poder de usar a violência como último recurso a fim de proteger os cidadãos para que ele a use como padrão de solução de conflitos.
Se for para isso, não precisamos de um Estado, muito menos de governantes.

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