Noam Chomsky explica como as provocações militares dos EUA, e a
rápida ampliação de seu arsenal atômico, multiplicam o risco de um
conflito que dizimaria o planeta
Entrevista a George Yancy | Tradução: Inês Castilho
Nos últimos meses, à medida em a perspectiva de um governo Trump
perturbador tornou-se uma perturbadora realidade, decidi procurar Noam
Chomsky, o filósofo cuja escrita, fala e ativismo têm, por mais de 50
anos, oferecido insights e desafios sem paralelo aos sistemas políticos
norte-americano e global. Nossa conversa, como aparece aqui, aconteceu
por meio da troca de uma série de mensagens eletrônicas, nos últimos
dois meses. Embora o professor Chomsky estivesse extremamente ocupado,
em razão de nossa relação intelectual no passado ele gentilmente arrumou
tempo para essa entrevista.
Chomsky é autor de muitos best-sellers políticos, traduzidos
em inúmeras línguas. Entre eles, os mais recentes são “Hegemonia ou
Sobrevivência” (Hegemony or Survival), “Estados Fracassados” (Failed
States), “Esperanças e Perspectivas” (Hopes and Prospects), “Senhores da
Humanidade” (Masters of Mankind) e “Quem Governa o Mundo?” (Who Rules
the World?). O autor é professor emérito do MIT (Instituto de Tecnologia
de Massachusetts) desde 1976.
Dado nosso momento político de “pós-verdade” e o crescente
autoritarismo que estamos testemunhando sob o presidente Trump, que
papel os filósofos podem desempenhar, publicamente, ao abordar
criticamente essa situação?
Temos de ser um pouco cuidadosos e não querer matar um mosquito com
uma bomba atômica. O que está acontecendo é tão absolutamente absurdo,
quanto ao momento de “pós-verdade”, que a resposta mais adequada pode
ser o ridículo. Por exemplo, quando o legislativo republicano da
Carolina do Norte, em resposta a um estudo científico que previa um
aumento ameaçador no nível do mar, impediu agências federais e locais de
enfrentar o problema, Stephen Colbert
respondeu: “É uma solução brilhante. Quando a ciência dá a vocês uma
resposta de que não gostam, aprovam uma lei dizendo que o resultado é
ilegal. Problema resolvido.”
Bem genericamente, é como o governo Trump lida com uma ameaça
verdadeiramente existencial à sobrevivência da vida humana organizada:
interditar regulamentações e mesmo pesquisa e discussão sobre as ameaças
ambientais e correr em direção ao precipício tão rapidamente quanto
possível (no interesse do lucro e do poder de curto prazo).
Nesse aspecto, acho o trumpismo meio suicida.
Claro, ridículo é pouco para qualificá-lo. É necessário dirigir-se às
preocupações e valores daqueles que são capturados pela fraude ou que
não reconhecem, por outras razões, a natureza e o significado dessa
questão. Se chamamos de filosofia às análises ponderadas e conscientes,
então ela pode abordar o momento, não pelo confronto de “fatos
alternativos” mas pela análise e esclarecimento do que está em jogo,
seja o assunto que for. Além disso, o que é necessário é ação: urgente e
empenhada, nas várias maneiras que possíveis para nós.
Quanto eu estudava filosofia na Universidade de Pitssburgh,
onde fui treinado na tradição analítica, não tinha claro o que a
filosofia significava, além da definição de conceitos. No entanto,
sustentei a posição marxista de que a filosofia pode mudar o mundo.
Alguma ideia sobre a capacidade da filosofia mudar o mundo?
Não sei exatamente o que Marx tinha em mente quando escreveu que “os
filósofos até agora apenas interpretaram o mundo de várias maneiras; a
questão é transformá-lo”. Ele quis dizer que a filosofia poderia
transformar o mundo ou que os filósofos deveriam assumir como maior
prioridade mudar o mundo? Na primeira hipótese, presume-se que ele quis
referir-se à filosofia no sentido amplo do termo, que inclui a análise
da ordem social e das ideias sobre a razão pela qual ela deveria ser
mudada, e como. Nesse sentido amplo, a filosofia pode desempenhar um
papel essencial na mudança do mundo. E os filósofos, inclusive da
tradição analítica, empreenderam aquele esforço em seu trabalho
filosófico, assim como em suas vidas de ativistas – é o caso de Bertrand
Russell, para mencionar um exemplo destacado.
Sim, Russell era um filósofo e um intelectual público. Nesses termos, como você descreve a si mesmo?
Na verdade não penso nisso, francamente. Eu me engajo nos tipos de
trabalho e atividade que me parecem importantes e desafiadores. Alguns
deles cabem nessas categorias, como são vistas em geral.
Há épocas em que a atrocidade do sofrimento humano parece insuportável. Como alguém, como você, que fala sobre tal sofrimento no mundo, suporta testemunhá-lo e ainda ter força para seguir adiante?
Testemunhar é suficiente para obter motivação e seguir adiante. E
nada é mais inspirador do que ver como pessoas pobres e sofredoras,
vivendo sob condições incomparavelmente piores do que as nossas,
continuam anônima e despretensiosamente comprometidas com a luta
corajosa por justiça e dignidade.
Se você tivesse de listar duas ou três formas de ação
política que são necessárias sob o regime Trump, quais seriam? Pergunto
porque nosso momento parece incrivelmente repressivo e sem esperança.
Não acho que as coisas estão tão sombrias. Veja o sucesso da campanha
de Bernie Sanders, o fato mais extraordinário da eleição de 2016. Não é
uma grande surpresa, afinal, que um showman bilionário com amplo apoio
da mídia (inclusive da mídia liberal, fascinada por suas farsas e as
receitas publicitárias que proporcionava) vencesse a disputa do
ultrarreacionário Partido Republicano.
Contudo, a campanha Sanders rompeu dramaticamente com mais de um
século de história política nos EUA. Amplas pesquisas de ciência
política, em especial o trabalho de Thomas Ferguson, demonstraram
de forma convincente que as eleições são praticamente compradas. Por
exemplo, só os gastos de campanha são um indicador excepcionalmente bom
de sucesso eleitoral, e o apoio do poder corporativo e das fortunas
privadas é um pré-requisito virtual até mesmo para participar da arena
política.
A campanha de Sanders mostrou que um candidato com programas suavemente progressistas (basicamente o New Deal)
poderia vencer a indicação, e talvez a eleição, mesmo sem o apoio dos
grandes financiadores ou qualquer simpatia da mídia. Há uma boa razão
para supor que Sanders teria vencido a indicação pelo Partido Democrata
se não fossem as trapaças dos burocratas ligados a Obama e aos Clinton.
Ele é agora, por ampla margem, a figura política mais popular do país.
O ativismo gerado pela campanha está começando a fazer incursões na
política eleitoral. Sob Barack Obama, o Partido Democrata praticamente
sucumbiu nos planos local e estadual, de fundamental importância, mas
ele pode ser reconstruído e tornar-se uma força progressista. Isso
significaria reviver o legado do New Deal e avançar bem além, ao invés
de abandonar a classe trabalhadora e tornar-se Novos Democratas
Clintonianos, que mais ou menos se parecem com o que costumava ser
chamado de republicanos moderados, uma categoria que em grande parte
desapareceu com a mudança de ambos os partidos para a direita, durante o
período neoliberal.
Essas previsões podem não estar fora de nosso alcance, e os esforços
para atingi-las podem ser combinados com ativismo direto, urgentemente
necessário para combater as ações legislativas e executivas do governo
republicano, com frequência escondidas por trás da fanfarronice da
figura que é o responsável nominal.
Há vários caminhos para combater o projeto Trump de criar um país
pequeno, isolado do mundo, acovardado de medo atrás de muros enquanto
persegue políticas domésticas representam os interesses da ala mais
selvagem do establishment republicano.
Quais as questões mais graves a ser enfrentadas?
As questões mais importantes para abordar são verdadeiras ameaças à
existência que temos diante de nós: as mudanças climáticas e a guerra
nuclear. No primeiro tema, a liderança republicana, numa esplêndia
alienação do mundo, está quase que unanimemente dedicada a destruir as
possibilidades de uma sobrevivência decente. São palavras fortes, mas
não exageradas. Há um grande acordo que pode ser feito em nível local e
regional para combater seu projeto maligno.
Sobre a guerra nuclear, as ações na Síria e na fronteira da Rússia
provocaram ameaças muito sérias de confronto, que podem detonar a guerra
– com resultados inimagináveis. Além disso a continuidade, pelo governo
Trump, dos programas de modernização das forças nucleares lançados por
Obama suscita riscos extraordinários. A modernização da força nuclear
dos EUA está de fato desgastando o fino fio sobre o qual a sobrevivência
está suspensa. A matéria está discutida em detalhes num artigo
extremamente importante do Boletim dos Cientistas Atômicos de
março que deveria ter sido notícia de primeira página por longo tempo.
Os autores, analistas extremamente respeitados, observam que o programa
de modernização das armas nucleares aumentou “o poder mortífero total
das forças de mísseis balísticos existentes nos EUA por um fator de
aproximadamente três – e isso cria exatamente o que se poderia esperar
se um Estado dotado de armas nucleares estivesse planejando ter
capacidade para lutar e vencer uma guerra nuclear desarmando os inimigos
com um primeiro ataque de surpresa”.
O significado é claro. Quer dizer que num momento de crise, e há
tantos, os estrategistas militares russos podem concluir que, na
ausência da dissuasão, a única esperança de sobrevivência é um primeiro
ataque – o que significa o fim para todos nós.
Apavorante.
Nesses casos, a ação cidadã pode reverter programas extremamente
perigosos. Pode também pressionar Washington para explorar opções
diplomáticas – que estão disponíveis –, ao invés do recurso quase
reflexo da força e da coerção em outras regiões, incluindo a Coreia do
Norte e o Irã.
Mas o que motiva esse senso de justiça social, Noam, para
mantê-lo engajado no combate a um amplo leque de injustiças? Há alguma
motivação religiosa sustentando seu trabalho por justiça social? Se não,
por que?
Sem motivações religiosas, e por razões sólidas. Pode-se inventar uma
motivação religiosa para praticamente qualquer tipo de ação, desde o
compromisso com a justiça até o apoio às atrocidades mais terríveis. Nos
textos sagrados podemos encontrar apelos inspiradores por paz, justiça e
piedade, juntamente com as passagens mais genocidas do cânone
literário. A consciência é nosso guia, não importa que camiseta de
campanha a gente vista.
Voltando ao fato de suportar ser testemunha de tanto
sofrimento, o que você recomenda aos mais jovens? Muitos dos meus alunos
estão preocupados somente em se formar, e frequentemente parecem
distraídos com relação ao sofrimento no mundo.
Minha suspeita é de que aqueles que parecem desatentos ao sofrimento,
próximos de nós ou em partes remotas do mundo, estão em sua maioria
inconscientes, talvez cegos por doutrina e ideologia. A resposta para
eles é desenvolver uma atitude crítica em relação a questões de fé,
seculares ou religiosas; incentivar sua capacidade de questionar,
explorar, enxergar o mundo do ponto de vista dos outros. E a exposição
direta ao sofrimento nunca está muito longe, onde quer que se viva –
talvez um sem teto encolhido de frio ou pedindo esmola para comer.
Agradeço, e concordo com você sobre a exposição ao sofrimento
não estar tão longe. Voltando ao Trump, entendo que o considera
fundamentalmente imprevisível. Deveríamos temer o uso de armas
nucleares, de algum modo, em nosso tempo?
Eu temo, e não sou a única pessoa a ter esse medo. Talvez a figura
mais proeminente a expressar essa preocupação é William Perry, um dos
principais estrategistas nucleares contemporâneos, com vários anos de
experiência no mais alto nível do planejamento de guerra. Ele é
cauteloso e reservado, não é dado a exageros. Deixou uma quase
aposentadoria para declarar, intensa e repetidamente, que está
aterrorizado, tanto pelas crescentes e extremas ameaças como pela falta
de preocupação com elas. Em suas palavras: “Hoje, o perigo de algum tipo
de catástrofe nuclear é maior do que era durante a Guerra Fria, e a
maioria das pessoas vive em completa ignorância desse perigo”.
Em 1947, o Boletim dos Cientistas Atômicos criou seu famoso Relógio Apocalíptico,
estimando o quanto falta para chegarmos à meia-noite. Em 1953, depois
de os EUA e a União Soviética explodirem bombas de hidrogênio, moveram
os ponteiros para três minutos antes da meia-noite. Desde então o
relógio oscilou, e nunca mais atingiu esse ponto de perigo. Em janeiro,
logo depois da posse de Trump, o ponteiro foi mudado para dois minutos e
meio antes da meia-noite, o mais próximo do desastre terminal desde
1953. Os analistas consideraram não apenas o aumento da ameaça de guerra
nuclear, mas também o firme propósito do governo republicano em
acelerar a corrida para a catástrofe ambiental.
Perry está certo de estar aterrorizado. E todos nós também deveríamos
estar, principalmente em razão da pessoa que está com o dedo no botão e
seu entorno surreial.
No entanto, apesar de sua imprevisibilidade, Trump tem uma base forte. O que leva a esse tipo de deferência servil?
Não tenho certeza de que “deferência servil” seja a expressão
correta, por várias razões. Por exemplo, quem forma essa base? A maioria
é relativamente abastada. Três quartos tinham renda superior à média.
Cerca de um terço tinha renda de mais de 100 mil dólares ao ano, e
portanto estava nos top 15% de renda pessoal, e nos top 6% daqueles que
têm apenas o ensino médio. Eles são esmagadoramente brancos, em especial
mais velhos — logo, de setores historicamente mais privilegiados.
Como informa Anthony DiMaggio em cuidadoso estudo sobre a riqueza,
cujas informações estão agora disponíveis, os eleitores de Trump tendem a
ser tipicamente republicanos, com “agenda social elitista,
pró-corporações e reacionária”, e “um setor afluente e privilegiado do
país em termos de rendimento, mas relativamente menos privilegiado do
que foi no passado, antes do colapso econômico de 2008”. Por isso, vivem
um estresse econômico. A renda média caiu quase 10% desde 2007. Isso
sem falar no grande segmento evangélico e os fatores de supremacia
branca – profundamente enraizada nos Estados Unidos –, racismo e
sexismo.
Para a maioria de sua base, Trump e a ala mais selvagem do establishment
republicano não estão longe de suas atitudes padrão, ainda que, quando
nos voltamos para preferências políticas específicas, entrem em jogo
questões mais complexas.
Um setor da base de Trump vem do operariado, abandonado durante
décadas por ambos os partidos, e com frequência de áreas rurais onde a
indústria e os empregos estáveis chegaram ao fim. Muitos votaram em
Obama, acreditando em sua mensagem de esperança e transformação, mas
rapidamente se desiludiram e voltaram-se em desespero para seu amargo
inimigo de classe, agarrando-se à crença de que, de alguma maneira, seu
líder formal virá salvá-los.
Outra consideração é o sistema de informação atual, se é que é
possível usar essa frase. Para grande parte da base, as fontes de
informação são a Fox News, conversas de rádio e outras mídias que adotam
fatos “alternativos”. A exposição das maldades e absurdos de Trump, que
indignaram a opinião liberal, é facilmente interpretada como ataque
pela elite corrupta.
Como opera aqui a ausência de inteligência crítica, ou seja, a
figura considerada pelo filósofo John Dewey como essencial para a
cidadania democrática?
Podemos fazer outras perguntas sobre inteligência crítica. Para a
opinião liberal, o crime político do século, como é chamado por alguns, é
a interferência russa nas eleições norte-americanas. Os efeitos do
crime são imperceptíveis, ao contrário dos efeitos maciços da
interferência do poder corporativo e da riqueza privada, que não são
considerados crimes, mas práticas normais numa democracia. Isso, mesmo
deixando de lado o registro de “interferências” dos Estados Unidos em
eleições estrangeiras, inclusive na Rússia; a palavra “interferência”
vai entre aspas porque é ridiculamente inadequada, como sabe qualquer
pessoa com a mínima familiaridade com a história recente.
Isso certamente fala algo sobre as contradições dos Estados Unidos.
Seria o hackeamento russo realmente mais significativo do que aquilo
que discutimos – por exemplo, a campanha republicana para destruir as
condições de existência social organizada, desafiando o mundo inteiro?
Ou aumentar a já grave ameaça de guerra nuclear terminal? Ou mesmo
crimes reais, mas menores, como a iniciativa republicana de privar
dezenas de milhões de pessoas de serviço de saúde e expulsar pessoas
indefensas de lares de idosos para enriquecer ainda mais o seu círculo
eleitoral de riqueza e poder corporativo? Ou desmantelar o já limitado
sistema regulatório para mitigar o impacto de uma crise financeira, que
provavelmente será novamente provocada por seus aliados favoritos? E
assim por diante.
É fácil condenar aqueles que colocamos do outro lado da linha
divisória, mas mais importante, em geral, é explorar o que consideramos
estar próximo de nós.
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