Do advogado e professor de Direito Penal Fernando Hideo Lacerda,
sobre a sentença com que Sérgio Moro condenou o ex-presidente Lula.
Não me proponho a exaurir o tema,
tampouco entrar num embate próprio das militâncias partidárias,
relatarei apenas as minhas impressões na tentativa de traduzir o
juridiquês sem perder a técnica processual penal.
Objeto da condenação: a “propriedade de fato” de um apartamento no Guarujá.
Diz a sentença: “o ex-Presidente Luiz
Inácio Lula da Silva e sua esposa eram PROPRIETÁRIOS DE FATO do
apartamento 164-A, triplex, no Condomínio Solaris, no Guarujá”.
Embora se reconheça que o ex-presidente e sua esposa jamais frequentaram esse apartamento, o juiz fala em “propriedade de fato”.
O que é propriedade ?
Código Civil – Art. 1.228. O proprietário
tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de
reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
Portanto, um “proprietário de fato”
(na concepção desse juiz) parece ser alguém que usasse, gozasse e/ou
dispusesse do apartamento sem ser oficialmente o seu dono.
Esse conceito “proprietário de fato”
não existe em nosso ordenamento jurídico. Justamente porque há um outro
conceito para caracterizar essa situação, que se chama posse:
Código Civil – Art. 1.196. Considera-se
possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de
algum dos poderes inerentes à propriedade.
E não foi mencionada na sentença
qualquer elemento que pudesse indicar a posse do ex-presidente ou de sua
esposa do tal triplex: tudo o que existe foi UMA visita do casal ao
local para conhecer o apartamento que Léo Pinheiro queria lhes vender.
Uma visita.
Portanto, a sentença afirma que Lula
seria o possuidor do imóvel sem nunca ter tido posse desse imóvel.
Difícil entender ? Impossível.
Tipificações penais
– corrupção (“pelo recebimento de
vantagem indevida do Grupo OAS em decorrência do contrato do Consórcio
CONEST/RNEST com a Petrobrás”)
– lavagem de dinheiro (“envolvendo a
ocultação e dissimulação da titularidade do apartamento 164-A, triplex, e
do beneficiário das reformas realizadas”).
Provas Documentais
Um monte de documento sobre
tratativas para compra de um apartamento no condomínio do Guarujá
(nenhum registro de propriedade, nada que indique que o casal tenha
obtido sequer a posse do tal triplex) e uma matéria do jornal o globo
(sim, acreditem se quiser: há nove passagens na sentença que fazem remissão a uma matéria do jornal O Globo como se prova documental fosse).
Esse conjunto de “provas documentais” comprovaria que o ex-presidente Lula era o “proprietário de fato” do apartamento.
Mas ainda faltava ligar o caso à
Petrobras (a tarefa não era assim tão simples, porque a própria denúncia
do Ministério Público do Estado de São Paulo — aquela mesmo que citava
Marx e “Hegel” — refutava essa tese)…
Prova Testemunhal
Aí entra a palavra dos projetos de
delatores Léo Pinheiro e um ex-diretor da OAS para “comprovar” que o
apartamento e a reforma seriam fruto de negociatas envolvendo a
Petrobras.
Não há nenhuma prova documental para
comprovar essas alegações, apenas as declarações extorquidas mediante
constante negociação de acordo de delação premiada (veremos adiante que
foi um “acordo informal”).
A Corrupção
Eis o tipo penal de corrupção:
Art. 317 – Solicitar ou receber, para
si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou
antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar
promessa de tal vantagem
Portanto, deve-se comprovar basicamente:
– solicitação, aceitação da promessa ou efetivo recebimento de vantagem indevida; e
– Contrapartida do funcionário público.
– Contrapartida do funcionário público.
No caso, o ex-presidente foi
condenado “pelo recebimento de vantagem indevida do Grupo OAS em
decorrência do contrato do Consórcio CONEST/RNEST com a Petrobrás”.
O pressuposto mínimo para essa condenação seria a comprovação:
– do recebimento da vantagem (a tal “propriedade de fato” do apartamento); e
– da contrapartida sobre o contrato do Consórcio CONEST/RNEST com a Petrobras.
– da contrapartida sobre o contrato do Consórcio CONEST/RNEST com a Petrobras.
Correto ?
Não.
Como não houve qualquer prova sobre a
contrapartida (salvo declarações extorquidas de delatores), o juiz se
saiu com essa pérola:
“Basta para a configuração que os
pagamentos sejam realizadas em razão do cargo ainda que em troca de atos
de ofício indeterminados, a serem praticados assim que as oportunidades
apareçam.”
E prossegue, praticamente
reconhecendo o equívoco da sua tese: “Na jurisprudência brasileira, a
questão é ainda objeto de debates, mas os julgados mais recentes
inclinam-se no sentido de que a configuração do crime de corrupção não
depende da prática do ato de ofício e que não há necessidade de uma
determinação precisa dele”.
Ou seja, como não dá pra saber em
troca de que a oas teria lhe concedido a “propriedade de fato” do
triplex, a gente diz que foi em troca do cargo pra que as vantagens
fossem cobradas “assim que as oportunidades apareçam” e está tudo certo
pra condenação !
Para coroar, as pérola máxima da sentença sobre o crime de corrupção:
– “Foi, portanto, um crime de corrupção
complexo e que envolveu a prática de diversos atos em momentos temporais
distintos de outubro de 2009 a junho de 2014, aproximadamente”.
Haja triplex pra tanta vantagem…
“Não importa que o acerto de corrupção
tenha se ultimado somente em 2014, quando Luiz Inácio Lula da Silva já
não exercia o mandato presidencial, uma vez que as vantagens lhe foram
pagas em decorrência de atos do período em que era Presidente da
República”.
Haja crédito pra receber as vantagens até 4 anos depois do fim do mandato…
Lavagem de Dinheiro
A condenação por corrupção se baseia
em provas inexistentes, mas a pior parte da sentença é a condenação pelo
crime de lavagem de dinheiro.
Hipótese condenatória: lavagem de
dinheiro “envolvendo a ocultação e dissimulação da titularidade do
apartamento 164-A, triplex, e do beneficiário das reformas realizadas”.
Ou seja, o ex-presidente Lula teria
recebido uma grana da oas na forma de um apartamento reformado e, como
não estava no nome dele, então isso seria lavagem pela “dissimulação e
ocultação” de patrimônio.
Isso é juridicamente ridículo.
Lavagem é dar aparência de licitude a
um capital ilícito com objetivo de reintroduzir um dinheiro sujo no
mercado. Isso é “esquentar o dinheiro”. Exemplo clássico: o cara monta
um posto de gasolina ou pizzaria e nem se preocupa com lucro, só joga
dinheiro sujo ali e esquenta a grana como se fosse lucro do negócio.
Então não faz o menor sentido falar em lavagem nesses casos de suposta “ocultação” da grana. Do contrário, o exaurimento de qualquer crime que envolva dinheiro seria lavagem, percebem ?
Não só corrupção, mas sonegação,
roubo a banco, receptação, furto… Nenhum crime patrimonial escaparia da
lavagem segundo esse raciocínio, pq obviamente ninguém bota essa grana
no banco !
Delação Informal (ilegal) de Léo Pinheiro
Nesse mesmo processo, Léo Pinheiro foi
condenado a 10 anos e 8 meses (só nesse processo, pois há outras
condenações que levariam sua pena a mais de 30 anos).
Mas de todas as penas a
que Léo Pinheiro foi condenado (mais de 30 anos) ele deve cumprir
apenas dois anos de cadeia (já descontado o período de prisão
preventiva) porque “colaborou informalmente” (ou seja, falou o que
queriam ouvir) mesmo sem ter feito delação premiada oficialmente.
Ou seja, em um inédito
acordo de “delação premiada informal”, ganhou o benefício de não
reparar o dano e ficar em regime fechado somente dois anos
(independentemente das demais condenações).
Detalhes da sentença:
“O problema maior em reconhecer a colaboração é a falta de acordo de
colaboração com o MPF. A celebração de um acordo de colaboração envolve
um aspecto discricionário que compete ao MPF, pois não serve à
persecução realizar acordos com todos os envolvidos no crime, o que
seria sinônimo de impunidade.” –> delação informal
“Ainda que tardia e sem o acordo de colaboração,
é forçoso reconhecer que o condenado José Adelmário Pinheiro Filho
contribuiu, nesta ação penal, para o esclarecimento da verdade,
prestando depoimento e fornecendo documentos” –> benefícios informais
“é o caso de não impor ao condenado,
como condição para progressão de regime, a completa reparação dos danos
decorrentes do crime, e admitir a progressão de regime de cumprimento de
pena depois do cumprimento de dois anos e seis meses de reclusão no
regime fechado, isso independentemente do total de pena somada, o que
exigiria mais tempo de cumprimento de pena” –> vai cumprir apenas dois anos
“O período de pena cumprido em prisão cautelar deverá ser considerado para detração” –> desses dois anos vai subtrair o tempo de prisão preventiva
“O benefício deverá ser estendido, pelo Juízo de Execução, às penas unificadas nos demais processos julgados por este Juízo” –> ou seja, de todas as penas (mais de 30 anos) ele irá cumprir apenas dois anos em regime fechado…
Traumas e prudência
Cereja do bolo: o juiz diz que “até caberia cogitar a decretação da prisão
preventiva do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva”, mas “considerando que a prisão cautelar de um ex-Presidente da República não deixa de envolver certos traumas, a prudência recomenda que se aguarde o julgamento pela Corte de Apelação antes de se extrair as consequências próprias da condenação”.
preventiva do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva”, mas “considerando que a prisão cautelar de um ex-Presidente da República não deixa de envolver certos traumas, a prudência recomenda que se aguarde o julgamento pela Corte de Apelação antes de se extrair as consequências próprias da condenação”.
É a prova (agora sim, uma prova !) de que não se julga mais de acordo com a lei, mas pensando nos traumas e na (im)prudência…
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Independentemente da sua simpatia ideológico-partidária, pense bem antes de aplaudir condenações dessa natureza.
Eis o processo penal de exceção: tem a
forma de processo judicial, mas o conteúdo é de uma indisfarçável
perseguição ao inimigo !
Muito cuidado para que não se cumpra
na pele a profecia de Bertolt Brecht e apenas se dê conta quando
estiverem lhe levando, mas já seja tarde e como não se importou com
ninguém…
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