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quarta-feira, 7 de março de 2018

Soluções simples para questões complexas, um dano colateral da nossa guerra das Malvinas, por Sylvia Debossan.

Texto publicado originalmente pelo objETHOS.
Um anúncio de página dupla na edição do Globo de 22/2 dissipou qualquer dúvida que pudesse restar a respeito dos objetivos da intervenção no estado do Rio de Janeiro. O texto em destaque reproduz o discurso em que o presidente anunciou a medida: o governo (federal) estaria resolvendo o problema da economia e agora iria acabar com o problema da violência.
Na véspera, o mesmo jornal publicava entrevista com o marqueteiro do presidente Temer, anunciando-o como candidato. Foi logo desautorizado, ainda que indiretamente, pelo porta-voz do Planalto, mas já havia conseguido o efeito pretendido, e para isso usou — ainda que à revelia — um prestigiado colunista, como costuma acontecer nesses casos.
Um governo impopular não tem nada a perder. Um presidente que sabe dos riscos de ser preso depois de deixar o cargo, diante das inúmeras denúncias de corrupção contra si, pode tentar qualquer manobra para se preservar — não necessariamente como candidato, mas como alguém em condições de influenciar a sucessão, de modo a garantir um ministério, por exemplo, e assim manter o foro privilegiado que o livraria de processos em primeira instância.
Jogar as Forças Armadas numa aventura irresponsável é essa espécie de última cartada que fez um deputado da oposição comparar a intervenção no Rio à guerra das Malvinas, nos estertores da ditadura argentina.
No anúncio veiculado em O Globo em 22/02, a salvação de todos os males…
O anúncio que mostra o casal jovem e multiétnico sorridente com a filhinha nos ombros do pai, na paisagem ensolarada vista do Arpoador, contrasta com as notícias negativas sobre a violência na cidade e a própria atuação do governo no âmbito da segurança pública. Num primeiro momento, esse contraste pode ser visto como uma forma de desqualificar a promessa da propaganda. Outra interpretação, porém, sugere o contrário: as notícias expõem o quadro atual que finalmente será enfrentado com mão firme por um governo merecedor de confiança.
Quem varou a madrugada assistindo à sessão da Câmara que aprovou a intervenção pôde constatar o mote dos discursos demagógicos que desfilavam a favor da medida: como ser contra uma ação que visava preservar vidas humanas e restabelecer a tranquilidade na cidade conflagrada?
É exatamente este o principal dano colateral — no plano discursivo, pois no plano da vida cotidiana há outros, que ao mesmo tempo refletem esse discurso — dessa aventura. Pois, como em toda guerra, trata-se de silenciar o outro lado: quem não está conosco está contra nós. Quem é contra a intervenção é contra a segurança da população ou, pior ainda, é aliado do “crime organizado” — essa entidade que Temer, logo quem, prometeu “desbaratar”, em recente entrevista a um apresentador de um daqueles famosos programas policiais, e que o site Sul21 ironizou. No caso, como vários analistas já demonstraram, o governo promove uma mudança de pauta e parte para o ataque, por mais que a improvisação tenha ficado evidente e, ao final, tenha sido preciso abrir mão da reforma da Previdência — o que foi uma indiscutível e inesperada vitória para o campo democrático, apesar de tudo – e que a pretensão de protagonizar uma série de pautas — a “Agenda 15”, porque é sempre preciso algum selo bombástico para valorizar ações banais ou requentar propostas antigas – tenha provocado conflito com as lideranças da Câmara e do Senado. Ao partir para o ataque, o governo põe a esquerda na defensiva, pois o tema da segurança pública e do combate ao crime sempre foi capitalizado pela direita. Mas há motivos para isso, que não dizem respeito — ou, pelo menos, não só — à incapacidade da esquerda de responder a essa questão.
Uma longa história
Quem estuda o noticiário sobre o que se convencionou chamar de “violência urbana” já está careca de saber como, desde o século XIX, a imprensa vinculada ao poder se dedicou a cultivar a imagem dos marginalizados – inicialmente os escravos fugitivos, depois os recém-libertos pela formalidade da lei, depois seus descendentes ou seus equivalentes na condição social, “brancos quase pretos de tão pobres” — como uma ameaça à “boa” sociedade. Apenas para exemplificar, o livro Um século de favela, organizado por Alba Zaluar e Marcos Alvito (ed. FGV, 1998), reproduz trecho de carta de um delegado ao chefe de polícia do Rio, em novembro de 1900, mencionando matéria do Jornal do Brasil “que diz estar o morro da Providência infestado de vagabundos e criminosos que são o sobressalto das famílias”. “Para a completa extinção dos malfeitores apontados”, diz o delegado, “se torna necessário um grande cerco, que, para produzir resultado, precisa pelo menos de um auxílio de 80 praças completamente armadas”.
A diferença, mais de um século depois, é o número de praças e a qualidade das armas. O cerco de agora, nos primeiros dias da intervenção decretada pelo governo federal na segurança pública do Rio, produziu imagens-síntese do alvo da operação. A proposta de um mandado coletivo de busca e apreensão, já tentada outras vezes apesar de sua flagrante ilegalidade, foi outro elemento a revelar o alcance da população sob suspeita: toda a massa de moradores desses lugares onde os procurados podem se esconder, como tentou justificar o ministro da Defesa — como se nos condomínios de classe média e alta não se cogitasse da possibilidade de fuga, na remota hipótese de alguma incursão policial nessas áreas.
Há certamente um exagero em se dizer que certas fotos capturam a alma das pessoas, mas essas, sem qualquer dúvida, expõem o profundo sentimento de humilhação desses moradores diante de tal constrangimento. Da mesma forma, o olhar da menina em uniforme escolar, ao lado dos colegas, diante de soldados que se preparavam para revistá-los, é muito expressiva do sentimento de medo que essa ação provoca, e que repete as cenas da Operação Rio, em 94, ressuscitadas nas redes sociais.
(É claro que não faltaram reações ao repúdio que essas cenas despertaram: sim, a ação dos soldados é uma violência contra as crianças, mas afinal elas não servem de mula para traficantes? Nem passa pela cabeça dessas pessoas que, se o comércio de drogas fosse legal, nada disso — nem o abuso da infância, nem a ocupação policial-militar, nem a repetição trágica de tantas mortes — estaria acontecendo. Mas é claro que isso não está na pauta. Pelo contrário, O Globo anuncia em manchete deste domingo, 25/2, a entrada em ação da “tropa de elite”, comparada aos Navy Seals norte-americanos que atuaram na eliminação de Bin Laden. Como se vê, o festival de mistificação segue de vento em popa).
Uma boa revisão das pesquisas que articulam mídia, criminologia e políticas de segurança pública permitiria demonstrar quantas vezes o Rio já esteve à beira do caos, nessa situação alegadamente insustentável de hoje, embora sem qualquer evento especialmente chocante que pudesse justificar a intervenção. Um bom exemplo relativamente recente é o da primeira página do Globo de 3 de maio do ano passado, e não é preciso uma análise muito sofisticada para relacionar manchete e foto e perceber quem precisa ser “controlado”.
Primeira página de O Globo de 3 de maio de 2017.
Seria muito útil, também, contabilizar quantas vezes a palavra “guerra” foi usada pela imprensa carioca para se referir aos conflitos urbanos na cidade, seja em manchetes, seja em séries de reportagem com o selo, por exemplo, de “a guerra do Rio”.
Recordemos, a propósito, que em agosto do ano passado o jornal Extra decretou que estávamos em guerra. A novidade não era o discurso alarmista — afinal, o próprio jornal, em fevereiro, já havia publicado manchete em tintas vermelhas fazendo trocadilho com o nome do governador sobre o “Rio em pezão de guerra”. A novidade era a decisão de dedicar uma editoria especialmente para esse fim. A dúvida era escolher os casos classificáveis nessa rubrica, mas não é isso que importa, e sim a reiteração de um discurso cultivado há tanto tempo, que vai sedimentando a ideia de que existe uma entidade chamada “crime”, que a “cidade” ou a “sociedade” precisa combater, e que não há alternativa, a situação chegou a tal ponto que exige uma medida de força. O velho discurso binário que sempre opõe o organismo sadio à doença que, de fora, vem atacá-lo, ou o vírus que já penetrou nele e precisa ser extirpado. Só com intervenções cirúrgicas, com a aplicação de um remédio amargo, para ficarmos nas surradas metáforas de sempre.
Nas manchetes do Extra do dia 16 de agosto de 2017, uma guerra já estava em curso.
Durante muito tempo, entretanto, o Extra buscou um enfoque “social” para a questão da violência urbana, como demonstrou, entre tantas outras, na cobertura do assassinato de um médico na Lagoa e na notícia do linchamento de um ladrão no Maranhão, que deu ao jornal o Prêmio Esso de 2015 na categoria “primeira página”.
Só a continuidade desse tipo de enfoque poderia abrir caminho para a formação, ainda que lenta, de um novo senso comum em relação à questão criminal. Entretanto, o que prevalece é a reiteração da concepção sobre quem é o inimigo e a cobertura alarmista que reivindica soluções imediatas para uma situação aparentemente fora de controle.
Como explica o jurista Luigi Ferrajoli, eleger o inimigo facilita a coesão em torno do direito penal visto como elemento de defesa social da maioria “não desviada” contra os atentados à segurança promovidos pela minoria dos “desviados”. Este é “o ponto de vista da maioria”, comumente adotado pela mídia, que assim apaga o seu próprio papel na consolidação desse mesmo ponto de vista. O apelo a soluções imediatas, no dizer do sociólogo Jock Young, decorre desse processo de demonização do outro, que faz supor a possibilidade de respostas simples para problemas complexos:
“Ocorre aqui uma inversão costumeira da realidade causal: em vez de reconhecer que temos problemas na sociedade por causa do núcleo básico de contradições na ordem social, afirma-se que todos os problemas da sociedade são devidos aos próprios problemas. Basta livrar-se dos problemas e a sociedade estará, ipso facto, livre deles! Assim, em vez de sugerir, por exemplo, que grande parte do uso deletério de alto risco de drogas é causado por problemas de desigualdade e exclusão, sugere-se que, se nos livramos deste uso de drogas (‘diga não’, trancafiem os traficantes), não teremos mais nenhum problema”.
Não é por acaso, portanto, que a esquerda tenha dificuldade de enfrentar uma situação como a que foi posta com essa intervenção, e não só porque essa medida acenou com a questão da segurança pública para desviar a atenção do problema político decisivo neste ano eleitoral. Não é porque não tenha propostas para enfrentar a questão da criminalidade, mas porque suas propostas não são compatíveis com os apelos imediatistas de uma mídia que não colabora para alargar as concepções sobre as questões estruturais que produzem os conflitos noticiados cotidianamente. Porém, como disse certa vez o sociólogo Loïc Wacquant, “tudo aquilo que rompe com o ronron dessa politologia flácida que serve [aos jornalistas] de instrumento de apreensão da sociedade tem todas as chances de ser percebido como uma agressão ou de simplesmente não ser percebido”.
Políticas de segurança que respeitem os direitos humanos exigem uma continuidade difícil de se obter diante da pressão contrária sistemática dessa mídia aliada ao discurso das forças que disputam o poder e defendem, pelo contrário, a radicalização da punição. Não é casual que, na cobertura da intervenção, âncoras de programas da Rede Globo tenham lamentado a inexistência de investimento em educação e outras medidas sociais elementares e ignorem as realizações dos governos Brizola, impiedosamente combatidos por essa mesma corporação de mídia. Tampouco é casual, e não deixa de ser irônico, que o governador que derrotou o candidato de Brizola em 1986 prometendo acabar com a violência em seis meses apareça agora, tanto tempo depois, como um dos principais articuladores dessa intervenção.
Acabar com a violência — agora já não em seis meses, porque a intervenção está prevista para durar até o fim do ano e, como disse O Globo em editorial, “talvez seja pouco” — é o que promete o anúncio de página dupla no jornal.
Em extensa reportagem no The Intercept, o jornalista Mário Magalhães mostra que essa intervenção “reencena e radicaliza” a Operação Rio de 1994. Conclui com um desabafo: “Cazuza cantou que ‘o tempo não para’. Às vezes, eu acho que o tempo não passa — ou tudo se repete demais”.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é professora de jornalismo aposentada da UFF, pesquisadora do ObjETHOS.

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