Texto publicado originalmente pelo objETHOS.
Um anúncio de página dupla na edição do Globo de 22/2 dissipou
qualquer dúvida que pudesse restar a respeito dos objetivos da
intervenção no estado do Rio de Janeiro. O texto em destaque reproduz o
discurso em que o presidente anunciou a medida: o governo (federal)
estaria resolvendo o problema da economia e agora iria acabar com o
problema da violência.
Na véspera, o mesmo jornal publicava entrevista com o marqueteiro do presidente Temer,
anunciando-o como candidato. Foi logo desautorizado, ainda que
indiretamente, pelo porta-voz do Planalto, mas já havia conseguido o
efeito pretendido, e para isso usou — ainda que à revelia — um
prestigiado colunista, como costuma acontecer nesses casos.
Um governo impopular não tem nada a perder. Um presidente que sabe
dos riscos de ser preso depois de deixar o cargo, diante das inúmeras
denúncias de corrupção contra si, pode tentar qualquer manobra para se
preservar — não necessariamente como candidato, mas como alguém em
condições de influenciar a sucessão, de modo a garantir um ministério,
por exemplo, e assim manter o foro privilegiado que o livraria de
processos em primeira instância.
Jogar as Forças Armadas numa aventura irresponsável é essa espécie de
última cartada que fez um deputado da oposição comparar a intervenção
no Rio à guerra das Malvinas, nos estertores da ditadura argentina.
O anúncio que mostra o casal jovem e multiétnico sorridente com a
filhinha nos ombros do pai, na paisagem ensolarada vista do Arpoador,
contrasta com as notícias negativas sobre a violência na cidade e a
própria atuação do governo no âmbito da segurança pública. Num primeiro
momento, esse contraste pode ser visto como uma forma de desqualificar a
promessa da propaganda. Outra interpretação, porém, sugere o contrário:
as notícias expõem o quadro atual que finalmente será enfrentado com
mão firme por um governo merecedor de confiança.
Quem varou a madrugada assistindo à sessão da Câmara que aprovou a
intervenção pôde constatar o mote dos discursos demagógicos que
desfilavam a favor da medida: como ser contra uma ação que visava
preservar vidas humanas e restabelecer a tranquilidade na cidade
conflagrada?
É exatamente este o principal dano colateral — no plano discursivo,
pois no plano da vida cotidiana há outros, que ao mesmo tempo refletem
esse discurso — dessa aventura. Pois, como em toda guerra, trata-se de
silenciar o outro lado: quem não está conosco está contra nós. Quem é
contra a intervenção é contra a segurança da população ou, pior ainda, é
aliado do “crime organizado” — essa entidade que Temer, logo quem,
prometeu “desbaratar”, em recente entrevista a um apresentador de um
daqueles famosos programas policiais, e que o site Sul21 ironizou.
No caso, como vários analistas já demonstraram, o governo promove uma
mudança de pauta e parte para o ataque, por mais que a improvisação
tenha ficado evidente e, ao final, tenha sido preciso abrir mão da
reforma da Previdência — o que foi uma indiscutível e inesperada vitória
para o campo democrático, apesar de tudo – e que a pretensão de
protagonizar uma série de pautas — a “Agenda 15”, porque é sempre
preciso algum selo bombástico para valorizar ações banais ou requentar
propostas antigas – tenha provocado conflito com as lideranças da Câmara
e do Senado. Ao partir para o ataque, o governo põe a esquerda na
defensiva, pois o tema da segurança pública e do combate ao crime sempre
foi capitalizado pela direita. Mas há motivos para isso, que não dizem
respeito — ou, pelo menos, não só — à incapacidade da esquerda de
responder a essa questão.
Uma longa história
Quem estuda o noticiário sobre o que se convencionou chamar de
“violência urbana” já está careca de saber como, desde o século XIX, a
imprensa vinculada ao poder se dedicou a cultivar a imagem dos
marginalizados – inicialmente os escravos fugitivos, depois os
recém-libertos pela formalidade da lei, depois seus descendentes ou seus
equivalentes na condição social, “brancos quase pretos de tão pobres” —
como uma ameaça à “boa” sociedade. Apenas para exemplificar, o livro Um
século de favela, organizado por Alba Zaluar e Marcos Alvito (ed. FGV,
1998), reproduz trecho de carta de um delegado ao chefe de polícia do
Rio, em novembro de 1900, mencionando matéria do Jornal do Brasil “que
diz estar o morro da Providência infestado de vagabundos e criminosos
que são o sobressalto das famílias”. “Para a completa extinção dos
malfeitores apontados”, diz o delegado, “se torna necessário um grande
cerco, que, para produzir resultado, precisa pelo menos de um auxílio de
80 praças completamente armadas”.
A diferença, mais de um século depois, é o número de praças e a
qualidade das armas. O cerco de agora, nos primeiros dias da intervenção
decretada pelo governo federal na segurança pública do Rio, produziu
imagens-síntese do alvo da operação. A proposta de um mandado coletivo
de busca e apreensão, já tentada outras vezes apesar de sua flagrante
ilegalidade, foi outro elemento a revelar o alcance da população sob
suspeita: toda a massa de moradores desses lugares onde os procurados
podem se esconder, como tentou justificar o ministro da Defesa — como se
nos condomínios de classe média e alta não se cogitasse da
possibilidade de fuga, na remota hipótese de alguma incursão policial
nessas áreas.
Há certamente um exagero em se dizer que certas fotos capturam a alma
das pessoas, mas essas, sem qualquer dúvida, expõem o profundo
sentimento de humilhação desses moradores diante de tal constrangimento.
Da mesma forma, o olhar da menina em uniforme escolar, ao lado dos
colegas, diante de soldados que se preparavam para revistá-los, é muito
expressiva do sentimento de medo que essa ação provoca, e que repete as
cenas da Operação Rio, em 94, ressuscitadas nas redes sociais.
(É claro que não faltaram reações ao repúdio que essas cenas
despertaram: sim, a ação dos soldados é uma violência contra as
crianças, mas afinal elas não servem de mula para traficantes? Nem passa
pela cabeça dessas pessoas que, se o comércio de drogas fosse legal,
nada disso — nem o abuso da infância, nem a ocupação policial-militar,
nem a repetição trágica de tantas mortes — estaria acontecendo. Mas é
claro que isso não está na pauta. Pelo contrário, O Globo anuncia em
manchete deste domingo, 25/2, a entrada em ação da “tropa de elite”,
comparada aos Navy Seals norte-americanos que atuaram na eliminação de
Bin Laden. Como se vê, o festival de mistificação segue de vento em
popa).
Uma boa revisão das pesquisas que articulam mídia, criminologia e
políticas de segurança pública permitiria demonstrar quantas vezes o Rio
já esteve à beira do caos, nessa situação alegadamente insustentável de
hoje, embora sem qualquer evento especialmente chocante que pudesse
justificar a intervenção. Um bom exemplo relativamente recente é o da
primeira página do Globo de 3 de maio do ano passado, e não é preciso
uma análise muito sofisticada para relacionar manchete e foto e perceber
quem precisa ser “controlado”.
Seria muito útil, também, contabilizar quantas vezes a palavra
“guerra” foi usada pela imprensa carioca para se referir aos conflitos
urbanos na cidade, seja em manchetes, seja em séries de reportagem com o
selo, por exemplo, de “a guerra do Rio”.
Recordemos, a propósito, que em agosto do ano passado o jornal Extra
decretou que estávamos em guerra. A novidade não era o discurso
alarmista — afinal, o próprio jornal, em fevereiro, já havia publicado
manchete em tintas vermelhas fazendo trocadilho com o nome do governador
sobre o “Rio em pezão de guerra”. A novidade era a decisão de dedicar
uma editoria especialmente para esse fim. A dúvida era escolher os casos
classificáveis nessa rubrica, mas não é isso que importa, e sim a
reiteração de um discurso cultivado há tanto tempo, que vai sedimentando
a ideia de que existe uma entidade chamada “crime”, que a “cidade” ou a
“sociedade” precisa combater, e que não há alternativa, a situação
chegou a tal ponto que exige uma medida de força. O velho discurso
binário que sempre opõe o organismo sadio à doença que, de fora, vem
atacá-lo, ou o vírus que já penetrou nele e precisa ser extirpado. Só
com intervenções cirúrgicas, com a aplicação de um remédio amargo, para
ficarmos nas surradas metáforas de sempre.
Durante muito tempo, entretanto, o Extra buscou um enfoque “social”
para a questão da violência urbana, como demonstrou, entre tantas
outras, na cobertura do assassinato de um médico na Lagoa e na notícia
do linchamento de um ladrão no Maranhão, que deu ao jornal o Prêmio Esso
de 2015 na categoria “primeira página”.
Só a continuidade desse tipo de enfoque poderia abrir caminho para a
formação, ainda que lenta, de um novo senso comum em relação à questão
criminal. Entretanto, o que prevalece é a reiteração da concepção sobre
quem é o inimigo e a cobertura alarmista que reivindica soluções
imediatas para uma situação aparentemente fora de controle.
Como explica o jurista Luigi Ferrajoli, eleger o inimigo facilita a
coesão em torno do direito penal visto como elemento de defesa social da
maioria “não desviada” contra os atentados à segurança promovidos pela
minoria dos “desviados”. Este é “o ponto de vista da maioria”, comumente
adotado pela mídia, que assim apaga o seu próprio papel na consolidação
desse mesmo ponto de vista. O apelo a soluções imediatas, no dizer do
sociólogo Jock Young, decorre desse processo de demonização do outro,
que faz supor a possibilidade de respostas simples para problemas
complexos:
“Ocorre aqui uma inversão costumeira da realidade causal: em vez de
reconhecer que temos problemas na sociedade por causa do núcleo básico
de contradições na ordem social, afirma-se que todos os problemas da
sociedade são devidos aos próprios problemas. Basta livrar-se dos
problemas e a sociedade estará, ipso facto, livre deles! Assim, em vez
de sugerir, por exemplo, que grande parte do uso deletério de alto risco
de drogas é causado por problemas de desigualdade e exclusão, sugere-se
que, se nos livramos deste uso de drogas (‘diga não’, trancafiem os
traficantes), não teremos mais nenhum problema”.
Não é por acaso, portanto, que a esquerda tenha dificuldade de
enfrentar uma situação como a que foi posta com essa intervenção, e não
só porque essa medida acenou com a questão da segurança pública para
desviar a atenção do problema político decisivo neste ano eleitoral. Não
é porque não tenha propostas para enfrentar a questão da criminalidade,
mas porque suas propostas não são compatíveis com os apelos
imediatistas de uma mídia que não colabora para alargar as concepções
sobre as questões estruturais que produzem os conflitos noticiados
cotidianamente. Porém, como disse certa vez o sociólogo Loïc Wacquant,
“tudo aquilo que rompe com o ronron dessa politologia flácida que serve
[aos jornalistas] de instrumento de apreensão da sociedade tem todas as
chances de ser percebido como uma agressão ou de simplesmente não ser
percebido”.
Políticas de segurança que respeitem os direitos humanos exigem uma
continuidade difícil de se obter diante da pressão contrária sistemática
dessa mídia aliada ao discurso das forças que disputam o poder e
defendem, pelo contrário, a radicalização da punição. Não é casual que,
na cobertura da intervenção, âncoras de programas da Rede Globo tenham
lamentado a inexistência de investimento em educação e outras medidas
sociais elementares e ignorem as realizações dos governos Brizola,
impiedosamente combatidos por essa mesma corporação de mídia. Tampouco é
casual, e não deixa de ser irônico, que o governador que derrotou o
candidato de Brizola em 1986 prometendo acabar com a violência em seis
meses apareça agora, tanto tempo depois, como um dos principais
articuladores dessa intervenção.
Acabar com a violência — agora já não em seis meses, porque a
intervenção está prevista para durar até o fim do ano e, como disse O
Globo em editorial, “talvez seja pouco” — é o que promete o anúncio de
página dupla no jornal.
Em extensa reportagem no The Intercept,
o jornalista Mário Magalhães mostra que essa intervenção “reencena e
radicaliza” a Operação Rio de 1994. Conclui com um desabafo: “Cazuza
cantou que ‘o tempo não para’. Às vezes, eu acho que o tempo não passa —
ou tudo se repete demais”.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é professora de jornalismo aposentada da UFF, pesquisadora do ObjETHOS.
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