Moradores da
fronteira do Brasil com a Bolívia, o casal Känä́tsɨ, de 78 anos, e Híwa,
de 76, são os dois últimos falantes ativos da língua warázu, do povo
indígena Warazúkwe.
Os dois se expressam mal em castelhano e
português, e conversam entre si somente em warázu – embora seus filhos e
netos que moram com eles falem em português e espanhol.
"Aquela
casa desperta, para quem entra nela, uma sensação incômoda de
estranheza, como se o casal idoso que vive nela viesse de outro planeta,
de um mundo que eles nunca poderão ressuscitar", escrevem os
pesquisadores Henri Ramirez, Valdir Vegini e Maria Cristina Victorino de
França em um estudo publicado na revista Liames, da Unicamp.
Com ajuda do casal idoso, esses linguistas da Universidade
Federal de Rondônia descreveram pela primeira (e possivelmente a última)
vez o idioma do povo Warazúkwe.
O casal nasceu em Riozinho, em
Rondônia, mas a comunidade warazúkwe em que viviam foi abandonada nos
anos 1960, forçando os dois a se mudar diversas vezes entre Brasil e
Bolívia até se estabelecido em Pimenteiras (RO).
Segundo o estudo, além de Känä́tsɨ e Híwa, ainda
haveria três pessoas que poderiam conhecer o idioma. Um deles, o irmão
mais velho Känä́tsɨ, sumiu há anos. Os outros dois, Mercedes e Carmelo,
vivem na Bolívia, mas já não conversam mais em warázu.
"Parece que
a 'vergonha étnica' que os warazúkwe experimentaram foi tão intensa que
Mercedes não gosta de proferir palavra alguma no seu idioma e Carmelo
afirma que esqueceu tudo", diz o estudo.
País multilíngue
Da família linguística tupi-guarani, o warázu é apenas uma de dezenas de línguas brasileiras em perigo de extinção.
Segundo o Atlas das Línguas em Perigo da Unesco, são 190 idiomas em risco no Brasil.
O
mapa reúne línguas em perigo no mundo todo – e o Brasil é o segundo
país com mais idiomas que podem entrar em extinção, ficando atrás apenas
dos Estados Unidos.
Adauto Soares, coordenador do setor de
Comunicação e Informação da Unesco no Brasil, explica que o mapa foi
feito com a colaboração de pesquisadores especialistas em cada região e
entidades governamentais e não governamentais.
No Brasil, as principais entidades que colaboraram foram o Iphan, a Funai, a Unaids e o Museu do Índio.
Soares
explica que foram usados diversos critérios para definir se uma língua
está em risco: o número absoluto de falantes, a proporpoção dentro do
total da população do país, se há e como é feita a transmissão entre
gerações, a atitude dos falantes em relação à língua, mudanças no
domínio e uso da linguagem, tipo e qualidade da documentação, se ela é
usada pela mídia, se há material para educação e alfabetização no
idioma.
"Essa quadro (de línguas em perigo) pode ser revertido, e é por isso que a gente atua", diz Soares.
A
morte de uma língua não é apenas uma questão de comunicação no dia a
dia: a preservação da cultura de um povo depende da preservação do seu
idioma. "Se a língua se perde, se perde a medicina, a culinária, as
histórias, o conhecimento tradicional. No idioma estão a questão da
identidade, o conhecimento do bosque, do mato, dos bichos", explica o
linguista Angel Corbera Mori, do Instituto de Estudos da Linguagem, da
Unicamp.
Mais ainda
O
número de idiomas em risco pode ser ainda maior do que o apontado pela
Unesco, porque é possível que algumas línguas, que nunca foram
estudadas, tenham ficado de fora – o warázu, por exemplo, não está
incluso no mapa.
Além disso, é possível que existam dezenas de línguas em perigo em comunidades isoladas, que nunca foram descritas.
Estima-se
que, antes da colonização portuguesa, existissem cerca de 1,1 mil
línguas no Brasil, que foram desaparecendo ao longo dos séculos, segundo
Corbera.
Ele explica que durante o período colonial, os jesuítas
começam a usar o tupi como uma espécie de língua geral – o que foi
visto pela Coroa portuguesa como uma ameaça. O tupi – e posteriormente
outras línguas indígenas – foram proibidos. E quem desobedecesse era
castigado.
A perseguição continuou por séculos. Na era Vargas,
por exemplo, o português era obrigatório nas escolas, e quem
desrespeitasse também estava sujeito a punição.
"A situação só melhorou a partir da Constituição de 1988", diz Corbera.
Segundo
ele, uma das principais ameaças à língua hoje é a invasão dos
territórios indígenas. "Políticas de preservação e registro da língua
são importantes, mas não adiantam nada se eles não têm território, se
são expulsos de suas terras", diz Corbera.
Alguns grupos que
foram perseguidos têm o único registro escrito de suas línguas em
trabalhos em naturalistas que visitam o país nos séculos passados. É o
caso da língua dos povos do grupo Panará - nomeados pelos colonizadores
de Caiapós do Sul – do aldeamento de São José de Mossâmedes, em Goiás,
no século 18.
A única descrição linguística dos povos que
ocupavam esse aldeia é encontrada em listas de palavras dos europeus
Emmanuel Pohl (1782-1834) e Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), como
descreve o linguista Eduardo Alves Vasconcelos em um artigo publicado no
ano passado.
Os últimos
Uma
das línguas que sobreviveram, ainda que em estado crítico, é o guató. O
idioma tinha, em 2006, apenas cinco falantes, de acordo com a Unesco.
Os
Guatô ocupavam praticamente toda a região sudoeste do Mato Grosso, na
fronteira com a Bolívia, até começaram a ser expulsos de suas terras
entre 1940 e 1950, segundo o Intituto Sócio Ambiental (ISA), por causa
do avanço da agropecuária.
Chegaram a ser considerados extintos
pelo governo, por isso foram excluídos de programas de ajuda e políticas
públicas, até meados dos anos 1970, quando missionários identificaram
índios Guatô e o grupo começou a se reorganizar e lutar por
reconhecimento.
Há línguas tidas como vulneráveis - possuem um
número maior de falantes, mas ainda são consideradas em perigo. É o caso
da língua guajajara, falada por um dos povos mais numerosos.
Há
mais de 27 mil guajajaras no Brasil, segundo o sistema de informações do
Ministério da Saúde. O guajajara é usado como primeira língua em muitas
aldeias, mas nem todos os índios Guajajara falam o idioma. A língua
guajajara pertence à família tupi-guarani e é subdividida em quatro
dialetos.
Extintas
Das 190 línguas citadas pela Unesco, 12 já são consideradas extintas, ou seja, não têm mais nenhum falante vivo.
Uma das que foram extintas mais recentemente foi língua dos Umutina, povo indígena que vive no Mato Grosso.
Quando
o Museu do Índio iniciou um trabalho de documentação de línguas, em
2009, ela ainda tinha falantes. Hoje está extinta, segundo a Unesco.
Os
Umutina tiveram seu território invadido violentamente no início do
século passado, segundo o ISA. Por isso acabaram perdendo sua terra
tradicional e sua língua, que era do tronco lingüístico Macro-Jê, da
família Bororo.
Além disso, centenas de umutinas morreram devido a doenças levadas pelos brancos.
Os
que sobreviveram às epidemias tiveram contato com o antigo SPI (Serviço
de Proteção ao Índio, antecessor da Funai extinto em 1967). Eles foram
educados em uma escola para índios que os proibia de falarem sua língua
materna e de praticar qualquer tipo de atividade relacionada à sua
cultura, segundo o ISA.
Hoje são 515 pessoas, de acordo com a
Secretaria Especial de Saúde Indígena, que falam predominantemente
português e tentam recuperar a língua com ajuda de idosos e
universitários indígenas. Segundo Corbera, o muitas vezes não se
consegue recuperar a língua toda, às vezes só o léxico.
"Mas é muito importante, até por questões de identidade", conta ele.
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