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segunda-feira, 26 de março de 2018

Na hora que isto aqui explodir, Ruanda vai ser pouco, por Eugênio Aragão.



POR EUGÊNIO ARAGÃO, ex-ministro da Justiça
Terror? Niemals. Es ist Sozialhygiene. Wir nehmen diese Individuen aus dem Umlauf, wie ein Mediziner einen Bazillus aus dem Umlauf nimmt.”
[Trad. “Terror? Jamais! Isso é higiene social. Nos retiramos esses indivíduos de circulação, como um médico retira um bacilo de circulação.”] – Benito Mussolini, apud Joseph Goebbels, citado no artigo “Der Jude”, in Der Angriff, 21.1.1929.
Segunda feira estive no Rio de Janeiro para um debate sobre a intervenção militar. Entre os debatedores estava Buba, moradora de Acari e ativista comunitária. Seu relato sobre a situação dos moradores de favelas e da periferia me deixou sem palavras. Não tinha nada a dizer diante do descalabro do drama vivido por essa enorme maioria de brasileiras e brasileiros, espremidos entre as balas da polícia-bandida e do tráfico opressor.
Buba vive perto de um beco que exala fedor de sangue coagulado, suor e fezes. Lá é frequente serem “desovados” cadáveres de moradores sumariamente executados pela criminosa repressão e pela repressão dos criminosos. A morte a tiros ali é rotina e, como disse Buba, não sabem os moradores diferenciar entre o que é uma ditadura e a tal “democracia” por que clama a burguesia da Zona Sul, ávida por consumir e viajar a Miami e Europa. Em Acari não há democracia e nunca houve, seja com Lula, com Dilma ou com os golpistas de hoje.
A execução da vereadora Marielle Franco causou-nos comoção. Figura pública, lutadora contra a violência e pelos direitos LGBT, tinha muito a contribuir para o Brasil e para o Rio de Janeiro em especial. Foi assassinada covardemente por quem certamente não estava gostando de sua atuação à frente de comissão de monitoramento da intervenção militar no Rio. Denunciou com veemência a violência letal em Acari e por isso morreu a tiros. Os moradores do bairro de certo a pranteiam, mas encaram sua morte como apenas mais um triste sinistro da rotina de execuções que experimentam cotidianamente.
O que o povo do asfalto não consegue assimilar da sua redoma de bem-estar é que Acari constitui a maior parte do Brasil. É como vive a grande massa de nossas patrícias e nossos patrícios no entorno de Brasília, na Baixada Santista, nos Alagados de Salvador; é na Zona Sul de São Paulo, em Santa Rita ao lado de João Pessoa, no Complexo do Curado em Recife… e por aí vai.
Brasileiras e brasileiros, em sua maioria, vivem com o reto na mão, não sabendo se hoje será, ele ou ela, escolhida para morrer a bala. E entre um tiroteio e outro têm que trabalhar, cuidar da família, pagar impostos e cumprir com suas obrigações cívicas. Tempo para fazer política, se instruir, para participar de debates não têm. Acordam cedo, se espremem suados em péssimas conduções públicas, se alimentam mal e chegam a altas horas da noite da labuta diária, para, depois, serem chamados de vagabundos por escravocratas endinheirados, meganhas, bandidos ou governantes que não lhes permitem aposentar. Alguns preferem, até, dormir na sarjeta, perto do local de seu trabalho, não porque não tenham teto ou sejam moradores de rua, mas porque o transporte para casa é tão caro, que subtrairia parte significativa do sustento familiar. Em São Paulo, são acordados com jatos de água gelada a mando do prefeito milionário que acha que pobreza ofende a estética urbana.
A violência urbana, entre nós, é fruto e instrumento do apartheid social a que nossa paleo-escravocracia cultiva. No asfalto, acostumamo-nos à indiferença pela pobreza, dividimos a sociedade entre ganhadores e perdedores sem qualquer remorso. Os mais aquinhoados se cercam de muros e arame eletrificado, andam em carros blindados, para que os que supõem perdedores não os vejam e neles não se encostem.
A justiça de classe enche as cadeias de miseráveis, vistos como perigo em potencial para a manutenção do status quo. As penitenciárias e os presídios são verdadeiros aterros sanitários de gente, lixeiras da sociedade. Pouco interessa se onde cabem dez venham a se espremer sessenta ou setenta baratas humanas. Os juízes e promotores que os pilam ali estão mais preocupados com seus auxílios-moradia, seus carrões e as viagens duas ou três vezes ao ano para o exterior.
É, o povo do asfalto, um amontoado de limpinhos e cheirosos cercados de lixo e excremento. E vivem felizes com esse descaso, de dedo em riste contra qualquer político de esquerda que coloque essa realidade em cheque. Presidentes da República, então, que fazem um mínimo de esforço para diminuir o peso nos lombos da massa, são destituídos e perseguidos, acusados de corruptos pelos operadores do direito mais decaídos da história do Brasil.
E così la nave va.
Por que tem-se a certeza de que isso não mudará nunca? Será que os de cima da carne seca estão tão certos de sua impunidade, como poderosos que são? Afinal, quando a plebe for muito atrevida e se mexer mais do que seria “razoável” tolerar, decreta-se intervenção com uso das forças armadas, outra instituição que aceita bem seu papel da ditadura de classe. O pobre então recebe o tratamento de inimigo e seu bairro é chamado de terreno hostil. O resto é só mandar bala para acabar com os topetudos. Para isso, o comandante exige regras de engajamento robustas que nem em operação de uso de força imposta pelo Conselho de Segurança da ONU – triscou na repressão, morre!
É da natureza de forças armadas se apegarem ao direito de matar. Assim, além da polícia bandida e do tráfico opressor, a população marginalizada tem que aturar a tropa do exército apoiada por ar, a transformar sua vida num campo de batalha sem lei.
O que não pode deixar de estranhar é o fato de haver atores sedizentes de esquerda que, talvez por medo de perderem votos ao irem contra a maré midiática, apoiam a intervenção militar como uma “necessidade” para acalmar o Rio de Janeiro. Isso é conversa tão velha quanto a repressão dos desvalidos no Brasil. E nunca funcionou para controlar a violência urbana.
Vale a frase atribuída a Lafayette, “com baionetas pode-se fazer quase tudo, menos sentar-se em cima delas”. O que é preciso para “acalmar” não é mais tiro, não é mais bala. É política social urgente para devolver a humanidade às comunidades escolhidas para serem o lixo de nossa escravocracia. É preciso médico, professor, lazer, saneamento e urbanização que recupere a autoestima dos marginalizados. É imperioso abolir a escravidão na prática e em definitivo.
Pois, se assim não for, bala chama bala, violência chama violência. Os oprimidos são a maioria e se não quiserem mais continuar nessa condição, vão ter que se aprumar e reagir. O ódio que neles foi cultivado por séculos a fio sairá, então, de uma vez só, como um grito de “basta!”, com um vulcão em erupção a tragar com sua lava tudo que encontra pela frente. Que se cuidem nossos garbosos cheirosos, as instituições da ditadura de classe que os apoiam, pois Ruanda será fichinha diante do que nos espera. E não haverá Conselho de Segurança capaz de editar regras de engajamento para garantir o poder dos ricos.

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