POR EUGÊNIO ARAGÃO, ex-ministro da Justiça
“Terror? Niemals.
Es ist Sozialhygiene. Wir nehmen diese Individuen aus dem Umlauf, wie
ein Mediziner einen Bazillus aus dem Umlauf nimmt.”
[Trad. “Terror?
Jamais! Isso é higiene social. Nos retiramos esses indivíduos de
circulação, como um médico retira um bacilo de circulação.”] – Benito
Mussolini, apud Joseph Goebbels, citado no artigo “Der Jude”, in Der
Angriff, 21.1.1929.
Segunda
feira estive no Rio de Janeiro para um debate sobre a intervenção
militar. Entre os debatedores estava Buba, moradora de Acari e ativista
comunitária. Seu relato sobre a situação dos moradores de favelas e da
periferia me deixou sem palavras. Não tinha nada a dizer diante do
descalabro do drama vivido por essa enorme maioria de brasileiras e
brasileiros, espremidos entre as balas da polícia-bandida e do tráfico
opressor.
Buba vive perto de
um beco que exala fedor de sangue coagulado, suor e fezes. Lá é
frequente serem “desovados” cadáveres de moradores sumariamente
executados pela criminosa repressão e pela repressão dos criminosos. A
morte a tiros ali é rotina e, como disse Buba, não sabem os moradores
diferenciar entre o que é uma ditadura e a tal “democracia” por que
clama a burguesia da Zona Sul, ávida por consumir e viajar a Miami e
Europa. Em Acari não há democracia e nunca houve, seja com Lula, com
Dilma ou com os golpistas de hoje.
A execução da
vereadora Marielle Franco causou-nos comoção. Figura pública, lutadora
contra a violência e pelos direitos LGBT, tinha muito a contribuir para o
Brasil e para o Rio de Janeiro em especial. Foi assassinada
covardemente por quem certamente não estava gostando de sua atuação à
frente de comissão de monitoramento da intervenção militar no Rio.
Denunciou com veemência a violência letal em Acari e por isso morreu a
tiros. Os moradores do bairro de certo a pranteiam, mas encaram sua
morte como apenas mais um triste sinistro da rotina de execuções que
experimentam cotidianamente.
O que o povo do
asfalto não consegue assimilar da sua redoma de bem-estar é que Acari
constitui a maior parte do Brasil. É como vive a grande massa de nossas
patrícias e nossos patrícios no entorno de Brasília, na Baixada
Santista, nos Alagados de Salvador; é na Zona Sul de São Paulo, em Santa
Rita ao lado de João Pessoa, no Complexo do Curado em Recife… e por aí
vai.
Brasileiras e
brasileiros, em sua maioria, vivem com o reto na mão, não sabendo se
hoje será, ele ou ela, escolhida para morrer a bala. E entre um tiroteio
e outro têm que trabalhar, cuidar da família, pagar impostos e cumprir
com suas obrigações cívicas. Tempo para fazer política, se instruir,
para participar de debates não têm. Acordam cedo, se espremem suados em
péssimas conduções públicas, se alimentam mal e chegam a altas horas da
noite da labuta diária, para, depois, serem chamados de vagabundos por
escravocratas endinheirados, meganhas, bandidos ou governantes que não
lhes permitem aposentar. Alguns preferem, até, dormir na sarjeta, perto
do local de seu trabalho, não porque não tenham teto ou sejam moradores
de rua, mas porque o transporte para casa é tão caro, que subtrairia
parte significativa do sustento familiar. Em São Paulo, são acordados
com jatos de água gelada a mando do prefeito milionário que acha que
pobreza ofende a estética urbana.
A violência urbana,
entre nós, é fruto e instrumento do apartheid social a que nossa
paleo-escravocracia cultiva. No asfalto, acostumamo-nos à indiferença
pela pobreza, dividimos a sociedade entre ganhadores e perdedores sem
qualquer remorso. Os mais aquinhoados se cercam de muros e arame
eletrificado, andam em carros blindados, para que os que supõem
perdedores não os vejam e neles não se encostem.
A justiça de classe
enche as cadeias de miseráveis, vistos como perigo em potencial para a
manutenção do status quo. As penitenciárias e os presídios são
verdadeiros aterros sanitários de gente, lixeiras da sociedade. Pouco
interessa se onde cabem dez venham a se espremer sessenta ou setenta
baratas humanas. Os juízes e promotores que os pilam ali estão mais
preocupados com seus auxílios-moradia, seus carrões e as viagens duas ou
três vezes ao ano para o exterior.
É, o povo do
asfalto, um amontoado de limpinhos e cheirosos cercados de lixo e
excremento. E vivem felizes com esse descaso, de dedo em riste contra
qualquer político de esquerda que coloque essa realidade em cheque.
Presidentes da República, então, que fazem um mínimo de esforço para
diminuir o peso nos lombos da massa, são destituídos e perseguidos,
acusados de corruptos pelos operadores do direito mais decaídos da
história do Brasil.
E così la nave va.
Por que tem-se a
certeza de que isso não mudará nunca? Será que os de cima da carne seca
estão tão certos de sua impunidade, como poderosos que são? Afinal,
quando a plebe for muito atrevida e se mexer mais do que seria
“razoável” tolerar, decreta-se intervenção com uso das forças armadas,
outra instituição que aceita bem seu papel da ditadura de classe. O
pobre então recebe o tratamento de inimigo e seu bairro é chamado de
terreno hostil. O resto é só mandar bala para acabar com os topetudos.
Para isso, o comandante exige regras de engajamento robustas que nem em
operação de uso de força imposta pelo Conselho de Segurança da ONU –
triscou na repressão, morre!
É da natureza de
forças armadas se apegarem ao direito de matar. Assim, além da polícia
bandida e do tráfico opressor, a população marginalizada tem que aturar a
tropa do exército apoiada por ar, a transformar sua vida num campo de
batalha sem lei.
O que não pode
deixar de estranhar é o fato de haver atores sedizentes de esquerda que,
talvez por medo de perderem votos ao irem contra a maré midiática,
apoiam a intervenção militar como uma “necessidade” para acalmar o Rio
de Janeiro. Isso é conversa tão velha quanto a repressão dos desvalidos
no Brasil. E nunca funcionou para controlar a violência urbana.
Vale a frase
atribuída a Lafayette, “com baionetas pode-se fazer quase tudo, menos
sentar-se em cima delas”. O que é preciso para “acalmar” não é mais
tiro, não é mais bala. É política social urgente para devolver a
humanidade às comunidades escolhidas para serem o lixo de nossa
escravocracia. É preciso médico, professor, lazer, saneamento e
urbanização que recupere a autoestima dos marginalizados. É imperioso
abolir a escravidão na prática e em definitivo.
Pois, se assim não
for, bala chama bala, violência chama violência. Os oprimidos são a
maioria e se não quiserem mais continuar nessa condição, vão ter que se
aprumar e reagir. O ódio que neles foi cultivado por séculos a fio
sairá, então, de uma vez só, como um grito de “basta!”, com um vulcão em
erupção a tragar com sua lava tudo que encontra pela frente. Que se
cuidem nossos garbosos cheirosos, as instituições da ditadura de classe
que os apoiam, pois Ruanda será fichinha diante do que nos espera. E não
haverá Conselho de Segurança capaz de editar regras de engajamento para
garantir o poder dos ricos.
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