Mais que mera consagração do cinismo no poder, ela é fruto de um
capitalismo bruto, que rompeu a aliança com multiculturalismo,
diversidade e o politicamente correto
Por Christian Dunker | Ilustração: Yue Minjun, Execution (2013)
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MAIS:
O texto a seguir é a primeira parte do artigo Subjetividade em tempos de pós-verdade, de Christian Dunker
Compõe, com artigos de Vladimir Safatle, Christovão Tezza, Julián Fuks e Márcia Tiburi, o livro:
Ética e Pós-Verdade, da Editora Dublinense (Porto Alegre, 2017)
144 páginas, R$ 39,90 (descontos entre 25% e 60% para participantes de Outros Quinhentos)
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O texto a seguir é a primeira parte do artigo Subjetividade em tempos de pós-verdade, de Christian Dunker
Compõe, com artigos de Vladimir Safatle, Christovão Tezza, Julián Fuks e Márcia Tiburi, o livro:
Ética e Pós-Verdade, da Editora Dublinense (Porto Alegre, 2017)
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Nos
anos 1990, Woody Allen dizia que o mundo podia ser horrível, mas ainda
era o único lugar onde se poderia comer um bife decente. Nos anos 2000,
Cyfer, o personagem de Matrix que decide voltar para o mundo da
ilusão, declara: “a ignorância é uma bênção”. Portanto, não deveríamos
nos assustar quando o dicionário Oxford declara o termo “pós-verdade”
a palavra do ano de 2016. Uma longa jornada filosófica e cultural foi
necessária para que primeiro aposentássemos a noção de sujeito, depois
nos apaixonássemos pelo Real, para finalmente chegar ao estado presente
no qual a verdade é apenas mais uma participante do jogo, sem
privilégios ou prerrogativas.
O
que entender por verdade quando se lhe acrescenta este prefixo que a
aposenta: a pós-verdade? A pergunta parece ser uma reedição da
controvérsia dos anos 90 acerca da natureza do pós-modernismo.
Naquela ocasião, tratava-se de entender principalmente um fenômeno
estético, proeminente da arquitetura; ele se afigurava como uma
desestabilização da noção de gênero e das prerrogativas canônicas do
modernismo da Bauhaus e Mies Van der Rohe.
Na literatura, ele se exprimiu basicamente pela combinação de certo
niilismo com a valorização de narrativas que exprimiam posições de
minorias como em Paul Auster ou David Foster Wallace. Interpretado por teóricos da literatura, o fenômeno parecia ser uma nova maneira de criticar a forma romance.
Lido por filósofos como Lyotard, ele descrevia um novo estilo argumentativo, marcado por narrativas comprimidas e por jogos de linguagem. Harvey e Anderson
quiseram ver que tal acontecimento indicava uma nova organização do
capitalismo, que precisava justificar em termos sociais a flexibilização
de relações laborais, a redução dos vínculos formais e a deslocalização
da produção. Guidens desdobrou o problema para a necessidade de
identidades flexíveis, e Pierre Lévy
trouxe a ideia de um novo tipo de organização cognitiva trazido pela
disseminação da vida digital. Depois da morte do autor, delineada por Barthes
nos anos 60, tínhamos nos anos 80 a morte do sujeito, como crítica das
filosofias da consciência, da soberania ou da representação, que nos
apresentavam, em nome deste falso universal, variações particulares de
subjetividades específicas: branca, ocidental, masculina, acadêmica,
economicamente privilegiada.
Defenderei
aqui a ideia de que a pós-verdade, longe de ser um aprofundamento do
programa cultural e político do pós-modernismo, é uma espécie de reação
negativa a esta. A pós-verdade é o falso contrário necessário do
pós-modernismo. Como se o politicamente correto, o relativismo cultural e
a mistura estética tivessem gerado uma espécie de reação nos termos de
uma demanda de real, de um retorno aos valores orgânicos e suas pequenas
comunidades de consenso. Como nos romances policiais nos quais é
necessário existir um suspeito que não é o verdadeiro assassino. Há um
lugar necessário para o falso assassino, que torna possível toda a
investigação. Podemos pensar agora em um análogo, mas como se fosse um
oposto que não é o verdadeiro oposto, mas que se torna necessário para
descobrirmos o que verdadeiramente está sendo negado.
A
pós-verdade seria então uma espécie de segunda onda do pós-modernismo.
Sua consequência é ao mesmo tempo lógica e reveladora da verdade brutal e
esquecida na qual ambos se apoiam. Assim como a pós-modernidade trouxe o
debate relevante sobre, afinal, como deveríamos entender a modernidade e
principalmente o sujeito moderno, penso que a pós-verdade inaugura uma
reflexão prática e política sobre o que devemos entender por verdade e
sobre a autoridade que lhe é suposta. O traço maior da subjetividade em
tempos de pós-verdade será exatamente esta aptidão para a inversão sem
transformação. Inversão que vai da posição “pós-moderna” para a posição
“pós-verdadeira”, sem que ambas entrem propriamente em conflito. Este
ponto de torção do sujeito define as diferentes modalidades de
subjetivação e de subjetividade, que são o efeito e o produto desse
trabalho de oposição sem contradição.
Modenidade
Um
marco fundamental desta conversa intrincada e arqueológica nos leva
para a aurora da modernidade. Lembremos que, naquele momento, Descartes
firmou certo princípio de delimitação do que veio a se chamar
subjetividade. Por mais vasto e variável que seja o emprego dessa
expressão, ela ainda pode ser longinquamente associada com a descoberta,
ainda no século 16, com Montaigne, Maquiavel e Shakespeare,
de que existe uma substância diferente de si mesma. Uma substância que
pensa algo, mas não age conforme o que pensa. Uma substância capaz de
sentir algo, mas dizer o oposto e que passa a entender a si mesma como
dividida, entre uma superfície privada e outra pública. Ora, no interior
dessa substância ontologicamente perigosa, acrescida de suspeita
antropológica generalizada, decorrente da descoberta das novas almas
ameríndias e africanas, Descartes reencontrou na razão um novo ponto de
segurança capaz de reunir evidência material e certeza psicológica. Ele
separou a relatividade cultural, histórica e epocal da subjetividade de
seu ponto arquimediano, fixo e estável, ainda que efêmero: o sujeito.
Contudo, a reinvenção da verdade, como subjetivação do pensamento, teve
um preço. Nominalmente a exclusão de duas figuras da subjetividade que
se apresentavam como cláusulas de exclusão para o pleno exercício da
razão: o sonho e a loucura.
Foucault
observou que uma segunda característica da modernidade, no que toca à
noção de verdade, é que ela se torna indiferente e inerme em termos
ético-políticos. O que ela ganha em termos de universalidade, de
desprendimento em relação à autoridade ela perde quanto à sua potência
transformativa, em termos éticos, políticos ou estéticos. Assim, quando a
verdade se tornou acessível a todos, por meio do bom uso da razão na
esfera pública, quando ela nos torna todos iguais diante da lei, quando
ela caracteriza nossos sonhos de maioridade, autonomia e emancipação,
ela ao mesmo tempo se torna inerme e neutra. Sua potência deixa de ser
produtiva e passa a ser regulativa, meramente formal ou metodológica. Schiller talvez tenha sido o primeiro a perceber isso em suas Cartas sobre a educação estética do homem; e Habermas, em O pensamento pós-metafísico, o último a se dar conta de como a verdade era um conceito meramente perspectivo ou operacional.
Por
volta de 2001, o pós-modernismo, como teoria da cultura, trilhava
alianças suspeitas com concepções econômicas ou políticas. O ambiente
acadêmico fervilhava em torno da herança das teorias feministas dos anos
70, agora revigoradas em estudos de gênero (Gender Studies), estudos gays e lesbianos e mais tarde pela teoria queer.
Independente de seus temas e autores específicos, o movimento incluía
uma espécie de retomada da presença da política nas ciências humanas.
Mas as teorias de gêneros só podiam ser compreendidas em uma paisagem
composta por outras teorias emergentes, como os estudos culturais, de Stuart Hall e Raymond Williams,
que questionavam a hierarquização entre cultura erudita e popular, e a
teoria pós-colonial, de Spivak, que criticava a presença de processos de
racialização e subalternidade em sociedades complexas que
aparentemente teriam deixado isso para trás. Essa paisagem incluía ainda
o pós-marxismo, de Zizek, Laclau e Badiou, o pós-estruturalismo, de Derrida e Deleuze, e, fechando o trem, quase saindo do comboio, a psicanálise de inspiração crítica, de Juliet Mitchel e Julia Kristeva.
No
Brasil, tais teorias estavam sub-representadas, com seus pioneiros
ainda com pequena visibilidade e a maior parte dos autores de referência
pouco traduzidos. Contudo, em dez anos as coisas se alteraram
substancialmente e de uma forma inusitada. Hoje não há escola que se
preze em São Paulo que não conte com um coletivo feminista. Os
movimentos LGBTTs, as organizações baseadas em identidade de gênero, de
etnia ou de raça tornaram-se uma espécie de substituto da antiga
vinculação sindical, que privilegiava a identidade de classe. Não é que a
classe desapareceu, mas agora ela se compõe com a paisagem
indeterminada de outras dimensões para as quais clamamos reconhecimento.
Perguntar pela verdade do conjunto ou da pertinência de cada um destes
traços torna-se uma falsa questão.
Ganhando visibilidade e
reconhecimento, nossos modos de pensar e praticar relações entre
gêneros, classe, raça, etnia, padrão de consumo ou religião cultivam
valores de diversidade e tolerância até o ponto em que estes se invertem
em práticas de segregação e violência identitária. Quero crer que a
grande novidade desse conjunto de movimentos está em pensar que nossas
relações mais cotidianas e nossos hábitos mais simples replicam e
atualizam relações de poder. Surgiu assim a versão nacional da aliança
entre um neoliberalismo mitigado em matéria de economia e uma nova pauta
de liberalização dos costumes.
Em nossas pequenas decisões
linguísticas ou comportamentais, de consumo e de estilo, no campo do
trabalho, do saber e do amor, há um jogo envolvendo o poder. A aliança
bífida do pós-modernismo pedia por um substrato moral que pudesse reunir
as escolhas políticas e econômicas com os progressos científicos e
cognitivos. Isso traz para cada aspecto do cotidiano a possibilidade de
uma transformação destas relações, ou seja, um caminho real e acessível
para que inventemos outros mundos e para que nos sintamos parte da
diferença, para chegar à diferença real, a diferença que faz diferença
nesse processo. Se nos anos 50 o trabalho e a nação definiam o teor
dessa diferença e nos anos 70 o lugar da transformação migrou para a
sexualidade e o desejo, os anos 2000 convidam a pensar uma encruzilhada,
ou melhor, uma intersecção, entre as diferentes formas de minorização
do outro e de si mesmo, bem como as políticas de reversão dessa
minoridade. Para tanto, a profissão e o estudo, as formas de amar e
desejar, as modalidades de governo e de família, sobretudo, o corpo e a
cultura, devem ser pensados como determinados por opções construídas e
não naturais. Nelas não há nada de essencial, compulsório ou coercitivo.
Figuras da verdade
Não
deixa de ser estranho, contudo, que a marcha de variações desse tema,
seja pela teoria de Derrida sobre a desconstrução, seja pelas variações
relativistas da filosofia da linguagem, seja pelo esgarçamento
multiculturalista da teoria literária, tenha sido suspensa abruptamente
diante do ataque às torres gêmeas de Nova Iorque em setembro de 2001. A
partir de então a flutuação benévola da verdade passou a ser tolerada na
pauta dos costumes, e sua separação com relação às políticas de Estado e
às determinações econômicas foi resolvida “na prática” e de forma
seletiva. O relativismo cultural da verdade foi subitamente invertido
pelo real da guerra ao terror. A tolerância religiosa inverte-se na
perseguição aos muçulmanos. A tolerância econômica com Grécia, Islândia
ou Portugal inverte-se em intervenção extorsiva em torno de medidas de
austeridade e ajuste.
Podemos datar aqui o nascimento da
pós-verdade, ainda que seu batismo só viesse à tona em 2016. Em 2011 a
verdade das armas químicas que justificaram o ataque ao Iraque
mostrou-se uma ficção. O fato de que presidentes e agências de Estado
pratiquem mentiras técnicas como essa, retóricas (como a “guerra
cirúrgica”), jurídicas (como a corrupção dentro da lei), apenas replica a
maquiagem de balanços (que estava por trás das bolhas imobiliárias de
2008) e o cinismo como discurso básico do espaço público e da vida
laboral.
O batismo veio com o discurso vencedor em campanhas
políticas que deram uma nova face conservadora ao mundo. As perdas
geradas pelas práticas neoliberais foram invertidas em uma ruptura da
aliança entre relativismo cultural e dogmatismo econômico. Doravante é
preciso prescindir da verdade. Uma nova expressão cognitiva ascende com
um novo tipo de irracionalismo que conseguiu recolocar na pauta temas
como: o criacionismo contra o darwiniano, a relatividade da “hipótese”
do aquecimento global, a suspeita sobre a indução e o autismo por
vacinas e tantas outras teorias mais ou menos conspiratórias diluídas
por um novo estado da conversa em escala global, facultado de modo
inédito pelas redes sociais. Neste novo suporte, as crenças mais
estranhas e regressivas adquiriram uma espécie de backing vocal garantido.
Por
meio desta montagem, a versão contemporânea da pós-verdade retoma, de
maneira modificada, vários aspectos pré-modernos da verdade, ou seja,
uma verdade inflacionada de subjetividade, mas sem nenhum sujeito. Uma
verdade que é moralmente potente, mas que não produz transformações
éticas relevantes. Uma verdade que se confunde com os processos
sociológicos de individualização, com as prerrogativas estéticas do
gosto e com a força política das religiões.
Para os antigos, a verdade tinha três conotações. Ela era tanto a revelação grega (alethéia) de uma lembrança esquecida quanto a precisão latina do testemunho (veritas) e ainda a confiança judaico-cristã da promessa (emunah).
Por isso a verdade tem três opostos diferentes: a ilusão, a falsidade e
a mentira. A pós-verdade é algo distinto do mero relativismo, e sua
dispersão de pontos de vista, todos igualmente válidos, ou do
pragmatismo, com sua regra maior de que a eficácia e a eficiência
impõem-se às nossas melhores representações do mundo. Ela também não é
apenas a consagração do cinismo no poder, com sua moral provisória,
capaz de gerenciar o pessimismo, no atacado da tragédia humana, em
proveito de vantagens obtidas no varejo narcísico. A pós-verdade
depende, mas não se resume a isso, porque ela acrescenta uma ruptura
entre os três regimes de verdade e seus contrários. Ela ataca a
estrutura de ficção da verdade. Este fio de ficção possui dois ramos de
alimentação, que são precisamente as duas condições excluídas por Descartes no século 17 e retomadas por Freud no século 20: o sonho e a loucura.
Se
temos que pensar a subjetividade como uma espécie de retorno da verdade
negada na aurora da modernidade, se temos que pensá-la de novo como
filha do desejo e irmã do gozo, seria preciso pensar sua dimensão
temporal. Afinal a pós-verdade é antes de tudo uma verdade contextual,
que não pode ser escrita, posta no bolso e reapresentada amanhã, como
garantia de fidelidade, compromisso ou esperança gerada pela palavra.
Contraste curioso para um sistema marcado pela impossibilidade de
esquecer, incapacidade de dormir e pelo esquecimento do sexo. Contraste
definido por condições materiais pelas quais nossa escrita jamais será
apagada do mundo digital, nosso trabalho pode se desdobrar por jornadas
infinitas ou ausentes e pelas relações que prescindem do sexo, agora
desligado da narrativa reprodutiva.
Freud argumentava que a
fantasia parte de um desejo presente que retoma traços mnêmicos do
passado e se lança ao futuro como realizado. Talvez seja por isso que
Lacan associava a fantasia com uma determinada ligação entre o real e a
verdade. Para Lacan, a verdade possui estrutura de ficção. Ela é o que liga a emunah, como confiança na realização futura, trabalho de reapresentação da alethéia no presente, mas também certeza presente da palavra testemunhada como veritas, memória com legitimidade e exatidão.
É
porque as três faces da verdade não se ligam senão por uma ficção que
se pode contar um monte de mentiras dizendo só a verdade, mas também
criar muitos fatos sem sentido algum e ainda fazer de conta que o que
dizemos agora, neste contexto e segundo estas circunstâncias não tem
nenhuma consequência para o momento vindouro.
A pós-verdade tem
muitas implicações políticas, morais e institucionais. Ela afeta
cotidianamente nossos laços amorosos e nossas formas de sofrimento,
principalmente na medida em que estas dependem de descrições, nomeações e
narrativas. Podemos descrever a subjetividade em tempos de pós-verdade
como um conjunto de negações tanto da ligação entre as três faces da
verdade como corrupção de sua potência ficcional, mas também como
degradação da experiência da verdade do desejo que produz certa unidade
entre alethéia, como emunah e como veritas.
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