Seria
possível, a partir da notável experiência portuguesa, frear a
devastação neoliberal e viabilizar governos democráticos e avanços
sociais? Importante: o “centro” não existe mais
Por Boaventura de Sousa Santos | Ilustração: mural do coletivo mexicano Lapiztolarte
O
atual governo português, no poder desde o final de 2015, é pioneiro em
termos da articulação entre vários partidos de esquerda. É ainda pouco
conhecido internacionalmente porque Portugal é um país pequeno, cujos
processos políticos raramente fazem parte da agenda política
internacional, e porque representa uma solução política que vai contra
os interesses dos dois grandes inimigos globais do aprofundamento da
democracia que hoje dominam as mídias – o neoliberalismo e o capital
financeiro global.
Convém recapitular. Desde a Revolução de 25 de
Abril de 1974, os portugueses votaram frequentemente na sua maioria em
partidos de esquerda, mas foram governados por partidos de direita ou
pelo Partido Socialista sozinho ou coligado com partidos de direita. Os
partidos de direita apresentavam-se às eleições sozinhos ou em
coligação, enquanto os partidos de esquerda, na lógica de uma longa
trajetória histórica, apresentavam-se divididos por diferenças
aparentemente inultrapassáveis. O mesmo aconteceu em outubro de 2015.
Só
que nessa ocasião, num gesto de inovação política que ficará nos anais
da democracia europeia, os três partidos de esquerda resolveram entrar
em negociações para buscarem uma articulação de incidência parlamentar
que viabilizasse um governo de esquerda liderado por um desses partidos —
o que teve mais votos, o Partido Socialista.
A inovação destes
acordos consistiu em várias premissas: os acordos eram limitados e
pragmáticos, estavam centrados em menores denominadores comuns com o
objetivo de possibilitar uma governança que travasse a continuação das
políticas de empobrecimento dos portugueses que os partidos de direita
neoliberal tinham aplicado no país; os partidos mantinham ciosamente a
sua identidade programática, as suas bandeiras, e tornavam claro que os
acordos não as punham em risco, porque a resposta à conjuntura política
não exigia que fossem consideradas, e muito menos abandonadas; o governo
deveria ter coerência e, para isso, deveria ser da responsabilidade de
um só partido, e o apoio parlamentar garantiria a sua estabilidade; os
acordos seriam celebrados de boa-fé e seriam acompanhados e verificados
regularmente pelas partes.
Os textos dos acordos constituem
modelos de contenção política e detalham até ao pormenor os termos
acordados. Basicamente, as medidas acordadas tinham dois grandes
objetivos políticos: parar o empobrecimento dos portugueses, repondo
rendimentos dos trabalhadores e dos pensionistas na base da escala de
rendimentos, e travar as privatizações que, como todas as que ocorrem
sobre a égide do neoliberalismo e do capital financeiro global, são atos
de privataria. Os acordos foram negociados com êxito e o governo tomou
posse num ambiente politicamente hostil, por parte do Presidente da
República de então, da Comissão Europeia e das agências financeiras.
Pouco
e pouco a política executada em cumprimento dos acordos foi dando
resultados, para muitos, surpreendentes, e ao fim de algum tempo muitos
dos detratores do governo tinham de ser vergar perante os números do
crescimento da economia, da queda da taxa de desemprego, da melhoria
geral da imagem do país, finalmente ratificada pelas agências de
crédito. O significado de tudo isto pode resumir-se no seguinte:
realizando políticas opostas às receitas neoliberais obtêm-se os
resultados que tais receitas sempre anunciam e nunca conseguem e isso é
possível sem aumentar o sofrimento e o empobrecimento dos portugueses.
Antes, pelo contrário, reduzindo-os. De uma maneira mais direta, o
significado desta inovação política é mostrar que o neoliberalismo é uma
mentira, e que o seu único e verdadeiro objetivo é acelerar a todo o
custo a concentração da riqueza sob a égide do capital financeiro
global.
Dada a curiosidade que a solução portuguesa começa
finalmente a suscitar a nível internacional, parece-me oportuno definir
alguns dos parâmetros para que as articulações entre forças políticas de
esquerda tenham êxito qualquer que seja o futuro da solução portuguesa.
Primeiro:
as articulações entre partidos de esquerda podem ser de vários tipos,
podem resultar de acordos pré-eleitorais ou acordos pós-eleitorais;
podem envolver participação no governo ou apenas apoio parlamentar.
Sempre que os partidos partem de posições ideológicas muito diferentes, e
se não houver outros fatores que recomendem o contrário, é preferível
optar por acordos pós-eleitorais (porque ocorrem depois de medir pesos
relativos) e acordos de incidência parlamentar (porque minimizam os
riscos dos parceiros minoritários e permitem que as divergências sejam
mais visíveis e disponham de sistemas de alerta conhecidos dos
cidadãos).
Segundo: as soluções políticas de risco pressupõem
lideranças com visão política e capacidade para negociar. É o caso do
atual Primeiro Ministro e dos lideres dos outros partidos de esquerda.
Não podemos esquecer que o fundador do PS, o Dr. Mário Soares, na fase
final da sua vida política, tinha advogado este tipo de políticas, ao
contrário, por exemplo, do fundador do PS espanhol, Felipe Gonzalez, que
se virou à direita com o passar dos anos e se manifestou sempre contra
quaisquer entendimentos à esquerda.
Terceiro: as soluções
inovadoras e de risco não podem sair apenas das cabeças dos líderes
políticos. É necessário consultar as “bases” do partido e deixar-se
mobilizar pelas inquietações e aspirações que manifestam.
Quarto:
a articulação entre forças de esquerda só é possível quando é
partilhada a vontade de não articular com outras forças, de direita ou
centro-direita. Sem uma forte identidade de esquerda, o partido ou força
de esquerda em que tal identidade for fraca será sempre um parceiro
relutante, disponível para abandonar a coligação. A ideia de centro é
hoje particularmente perigosa para a esquerda porque o espectro político
se tem deslocado no seu todo para a direita por pressão do
neoliberalismo e do capital financeiro. O centro tende a ser
centro-direita, mesmo quando afirma ser centro-esquerda. É crucial
distinguir entre uma política moderada de esquerda e uma política de
centro-esquerda. A primeira pode resultar de um acordo conjuntural entre
forças de esquerda, enquanto a segunda é o resultado de articulações
com a direita que pressupõem cumplicidades maiores que a descaracterizam
como política de esquerda. Neste domínio, a solução portuguesa, embora
constitua uma articulação entre forças de esquerda e eu considere que
configura uma política moderada de esquerda, a verdade é que contém, por
ação ou por omissão, algumas opções que implicam concessões graves aos
interesses que normalmente são defendidos pela direita. Por exemplo, no
domínio do direito do trabalho e da saúde. Tudo leva a crer que o teste à
vontade real em garantir a sustentabilidade da unidade das esquerdas
está no que for decidido nestas áreas no futuro próximo.
Quinto:
não há articulação ou unidade sem programa e sem sistemas de consulta e
de alerta que avaliem regularmente o seu cumprimento. Passar cheques em
branco a um qualquer líder político no seio de uma coligação de esquerda
é um convite ao desastre.
Sexto: a articulação é tanto mais
viável quanto mais partilhado for o diagnóstico de que estamos num
período de lutas defensivas, um período em que a democracia, mesmo a de
baixa intensidade, corre um sério risco de ser duradouramente
sequestrada por forças anti-democráticas e fascistizantes.
Sétimo:
a disputa eleitoral tem de ter mínima credibilidade. Para isso deve
assentar num sistema eleitoral que garanta a certeza dos processos
eleitorais de modo a que os resultados da disputa eleitoral sejam
incertos.
Oitavo: a vontade de convergir nunca pode neutralizar a
possibilidade de divergir. Consoante os contextos e as condições, pode
ser tão fundamental convergir como divergir. Mesmo durante a vigência
das coligações, as diferentes forças de esquerda devem manter canais de
divergência construtiva. Quando ela deixar de ser construtiva
significará que o fim da coligação está próximo.
Nono: num
contexto midiático e comunicacional hostil às políticas de esquerda é
decisivo que haja canais de comunicação constantes e eficazes entre os
parceiros da coligação e que prontamente sejam esclarecidos equívocos.
Décimo:
nunca esquecer os limites dos acordos, quer para não criar expectativas
exageradas, quer para saber avançar para outros acordos ou para romper
os existentes quando as condições permitirem políticas mais avançadas.
No caso português, os detalhados acordos entre os três partidos revelam
bem o carácter defensivo e limitado das políticas acordadas. A solução
portuguesa visou criar um espaço de manobra mínimo num contexto que
prefigurava uma janela de oportunidade. Recorrendo a uma metáfora, a
solução portuguesa permitiu à sociedade portuguesa respirar. Ora,
respirar não é o mesmo que florescer; é tão-só o mesmo que sobreviver.
Décimo-primeiro:
no contexto atual de asfixiante doutrinação neoliberal, a construção e
implementação de alternativas, por mais limitadas, têm, quando
realizadas com êxito, além do impacto concreto e benéfico na vida dos
cidadãos, um efeito simbólico decisivo que consiste em desfazer o mito
que os partidos de esquerda-esquerda só servem para protestar e não
sabem negociar e muito menos assumir as complexas responsabilidades da
governação.
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