Desde antes de formado, sempre andei com a minha câmera para cima e
para baixo com a expectativa de que a qualquer momento poderia aparecer a
chance para a "foto da minha vida". Mas essa antecipação toda nunca me
preparou para o momento em que isso de fato iria acontecer, e menos
ainda para ter meu nome atrelado a ele para o resto da minha vida.
Apesar de ter feito, nos mais de 20 anos de carreira, algumas fotos
boas e outras tantas significativas, as minhas fotos mais famosas ainda
são as dos pedaços dos corpos dos Mamonas Assassinas espalhados no mato ao redor dos destroços do avião em que a banda viajava em 2 de março de 1996.
Cobrir na madrugada a folga do lendário fotojornalista Zé Maria, do Notícias Populares,
exercia uma atração mórbida sobre os fotógrafos da equipe. Era a chance
de produzir grande imagens, mas também nos obrigava a conviver com um
mundo soturno, triste e rico em sofrimento. As histórias eram todas
invariavelmente horrorosas e dessa miséria saíam chances para imagens
fortes, algumas suficientemente fortes para não serem publicadas.
Assim, nesse dia estava eu no banco de trás do táxi branco a serviço da Folha da Manhã,
fazendo a ronda das delegacias e escaneando a frequência da Polícia
Civil num rádio especial que um tipo tinha me preparado. Eu acompanhava o
folclórico repórter Seu Hélio Santos, titular absoluto das madrugadas
do NP desde sempre. Seu Hélio tinha uma ligeira cor esverdeada de quem
não via o sol fazia muito tempo, vivia de (e) para a madrugada. Conhecia
todo delegado e escrivão em São Paulo, também as prostitutas, os travestis e os picaretas que orbitavam na noite do Centro da cidade.
No meio da ronda, caiu na frequência da Charlie (Polícia Civil) uma
notícia sobre uma tentativa de rebelião num DP qualquer. Ao telefone, o
policial do outro lado da linha desmentia a informação e perguntava se
sabíamos da queda do avião que seria dos Mamonas. Assim, fomos do tédio
absoluto de uma madrugada monótona à ansiedade incontrolável, enquanto o
táxi seguia a toda velocidade para Guarulhos.
O avião havia caído na mata nas proximidades de uma pedreira próxima
ao aeroporto, naquele momento era tudo que sabíamos. Chegando lá, pela
quantidade de colegas que já se amontoavam no topo da pedreira, deu para
perceber que a coisa era grande. No breu da noite, as buscas não tinham
surtido nenhum efeito e tinham sido suspensas à espera da manhã, quando
o helicóptero da PM viria localizar os destroços e orientar as equipes
de terra.
Quando amanheceu, quem chegou primeiro foi o helicóptero da Globo,
e rapidamente foi costurando um acordo: exclusividade para a Globo e o
helicóptero auxiliaria nas buscas. Assim, o helicóptero pousou, embarcou
alguém da equipe de buscas e a polícia começou a cercar os jornalistas
num canto. Então, percebi a movimentação, tirei meu colete, embrulhei a
câmera numa camisa de flanela, deixei minha mochila com o repórter e me
escondi no mato.
Pouco tempo depois, o helicóptero parou e piscou as luzes sinalizando
o local do acidente, que era surpreendentemente perto de onde
estávamos. A equipe de resgate entrou no mato em fila indiana escalando
um barranco íngreme. Eu segui a equipe à meia distância barranco acima,
sob os protestos dos colegas que estavam rodeados pela polícia e nada
podiam fazer. Pouco depois, já começavam a aparecer os primeiros
fragmentos do avião e ficou claro pelo estado do metal retorcido que
ninguém tinha escapado.
Mais preocupados em chegar logo ao corpos, a equipe de resgate não se
importou muito com a minha presença nem com as fotos que eu ia fazendo a
cada novo pedaço de avião que aparecia. Depois veio o primeiro corpo e
um desespero profundo. Não pelos corpos, mas sim por me dar conta de que
tinha um filme de 36 poses e nada mais. O resto tinha ficado na mala.
Isso porque, de tragédia em tragédia, nós da equipe tínhamos
aprendido a lidar com as cenas horrorosas da morte. E hoje quando me
perguntam sobre as coisas mais dolorosas que vivi, penso que elas foram
todas cenas de gente sofrendo. Um corpo largado numa viela qualquer era
apenas um corpo inanimado de alguém que não estava mais lá. Já se a mãe
do morto estivesse ajoelhada, chorando ao seu lado, a coisa era bem
diferente. No caso do corpo sozinho, não era incomum que deitássemos ao
lado dele para fazer um ângulo baixo. Eu cheguei a carregar plástico e
máscara de médico justamente para poder ter essa proximidade.
Também não era incomum uma tentativa de agressão por parte de
parentes dos mortos, ou que, ao fotografar uma mãe desesperada, nos
emocionássemos e enchêssemos os olhos de lágrimas. Mas tudo sempre
ocorria com a câmera colada ao rosto, um escudo poderoso que nos
defendia da realidade e que, quando preciso, não deixava ninguém ver o
que se passava conosco. Uma reintegração de posse com a PM, derrubando
barracos de miseráveis na favela, era mil vezes mais doída do que um
acidente como aquele. Economizando cada clique do meu único filme, fui
acompanhando a descoberta dos corpos, sempre à meia distância, com medo
de ser preso ou expulso de lá.
Saciada a voracidade da Globo, finalmente o restante da
imprensa foi liberada para trabalhar atrás de uma corda que isolava a
área mais central do acidente. Foi então que me juntei ao restante dos
colegas para poder ter acesso a mais filmes. Pedaços de corpos foram
passando e, mais ao longe, era possível ver o helicóptero da PM, que
agora sim estava no ar, içando sacos de lona que embalavam os cadáveres.
Nós sabíamos que aquilo tinha sido grande, mas não fazíamos ideia de
quão grande.
Horas depois, terminado o trabalho e o turno, moído de cansaço, fui
para o tradicional almoço de domingo na casa dos meus pais. E só lá,
vendo meus primos chorando em frente à TV, comecei a sentir o baque. A
imagem dos meninos da banda começou a casar com a dos corpos que eu
tinha fotografado.
Provando que a realidade é sempre mais poderosa que a ficção,
descobri, percebi que estava usando por baixo da blusa que vestia, a
camiseta preta de manga comprida que o próprio Dinho me dera algum tempo
antes, quando fui fazer uma matéria com os Mamonas. Eu não era um
grande fã, mas gostava bastante das músicas e achava tudo o que eles
faziam bem divertido.
O jornal bateu seu recorde de tiragem, imprimiu três ou quatro
clichês e na terça-feira publicou um pedido de desculpas ao seus
leitores por não ter conseguido suprir a demanda. O exemplar original,
do arquivo de publicações, foi roubado e se formou uma fila que subia
desde o térreo pela escada de incêndio para ver no mural da redação uma
pequena exposição das melhores fotos, que havia sido montada pelo
editor. A balbúrdia foi tanta que, a certa altura, a segurança da Folha da Manhã encerrou a visitação.
Teve até um jornalista que me propôs fazer cópias das fotos para ele
vender e dividir o lucro. Dias depois do acidente, um cidadão aparece na
redação com uma mão, já em estado de decomposição, embrulhada num saco
plástico. Ele foi à caça de souvenirs do acidente e acabou encontrando a
mão. O NP ficou tão marcado pela cobertura do acidente que ele, em vez
de levar a mão para a polícia, levou para a redação do jornal. E,
coitado do Rogerinho (um dos fotógrafos da equipe), ainda teve que
registrar aquilo.
Não muito tempo depois, também ligaram para o jornal me ameaçando.
Nada que ninguém tenha levado muito a sério, mas isso ajuda a dar a
dimensão da insanidade que rodeou a cobertura do acidente. Até hoje
quando alguém descobre que fui eu quem fez as fotos dos Mamonas para o
NP eu escuto um: “Nossa, foi você!” Logo depois disso, saí do jornal
onde eu trabalhava como frila fixo, já que mesmo com aquela tremenda
bola dentro, eles não me contrataram. Fui fazer frila fixo na Folha de S.Paulo e em menos de um ano me mudei para Londres.
Nunca deixei de pensar sobre os meus dias de NP e nem sobre a
cobertura da morte dos Mamonas. O NP era um lugar muito divertido e, ao
mesmo tempo, sofrido de se trabalhar. Trabalhávamos muito, ganhávamos
mal e comíamos no pior bandejão do mundo. Mas éramos, na nossa grande
maioria, jovens, muito empolgados e acreditávamos que chocando as
pessoas poderíamos levar a sociedade a alguma reflexão.
Apesar do lema do jornal de ser “nada mais que a verdade”, a maior
parte do conteúdo que produzíamos era entretenimento e não jornalismo.
Um dia meu editor Flavio Florido me disse: “você pode achar que isso é
uma grande piada, mas não se esqueça de que o porteiro do prédio que
compra o jornal tem certeza de que isso é verdade. Muito cuidado”.
Todos os dias publicávamos mortos, quase sempre pobres, na capa.
Também mulheres peladas e toda sorte de histórias bizarras. Algumas
vezes havia uma denúncia a fazer quando estampávamos aqueles corpos
ensanguentados.
Naquela época, a violência nas periferias da cidade corria solta,
todo final de semana tínhamos uma nova chacina. Outras vezes não havia
denúncia alguma e as fotos dos mortos só serviam para saciar a
curiosidade mórbida dos nossos leitores e, claro, para vender mais e
mais jornais. Isso nunca pareceu incomodar a direção da Folha da Manhã, que naquela época publicava a Folha de S Paulo, Folha da Tarde e o Notícias Populares.
Obviamente que depois da publicação das fotos dos Mamonas houve uma
certa grita, naqueles dias vivíamos uma corrida desenfreada pela
audiência a qualquer custo, que viria a render a cobertura criminosa do
caso da Escola Base, o caso da gangue do palhaço, aparições de toda
sorte de absurdos na guerra entre os dominicais de Gugu e o Faustão
pelas audiência aos domingos.
Tempos depois, de Londres, participei por telefone de uma mesa
redonda no programa do Serginho Groissman sobre jornalismo, que abordou o
caso da cobertura dos Mamonas, com a presença ilustre de Alberto Corda
(autor da icônica foto do Che Guevara)
no estúdio. Lá me questionaram se eu não me sentia responsável pela
publicação de fotos tão grotescas quanto as do corpo do Dinho sem a sua
cabeça. Respondi que a decisão de publicar isso ou aquilo nunca foi de
nenhum fotógrafo, porque nunca nos deixaram influir na decisão do que
publicar. Que o nosso poder termina no momento em que enviamos as fotos.
Eu nunca me culpei por ter feito aquelas fotos e já mudei de opinião
várias vezes a respeito da sua publicação. Hoje, vivendo o ocaso de uma
profissão moribunda, tenho a certeza de que jornalismo e entretenimento
são duas coisas completamente distintas, que devem ser separadas por uma
grossa linha vermelha. E que aquelas fotos que fiz do acidente dos
Mamonas, ao contrário de tantas outras fotos de mortos que encerram
alguma denúncia relevante, pertencem ao outro lado dessa linha.
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