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domingo, 12 de março de 2017

Em pleno século XXI, “história” insiste em apagar a produção das mulheres negras, por Ana Maria Gonçalves.


Já não me lembro como cheguei à tese “Os Segredos de Virgínia: Estudo de Atitudes Raciais em São Paulo (1945-1955)”, de Janaína Damaceno Gomes. Janaína é professora da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense, doutora em Antropologia Social pela USP e Mestre em Educação e Bacharel em Filosofia pela Unicamp. Virgínia foi normalista, educadora sanitária, visitadora psiquiátrica, psicologista, socióloga e psicanalista, desafiando não apenas o lugar que se propunha ou se esperava para uma mulher – principalmente uma mulher negra – na primeira metade do século passado, mas também o pensamento dominante em relação a temas como educação e relações raciais.

O trabalho de Virgínia quase foi mantido em segredo, como nos conta Janaína, “pelo roubo de arquivos, pelo mofar literal da tese da autora, por entrevistas não publicadas, por citações não feitas, por textos extirpados de compêndios, pela eleição de uma bibliografia canônica que se perpetua e muito pouco é revisada…”. Qualquer semelhança com algumas situações atuais não é mera coincidência.
Virgínia Leone Bicudo nasceu em São Paulo, em 1910, filha de Giovanna Leone, imigrante italiana, e de Theofilo Júlio Bicudo. Giovanna trabalhava como criada na casa do Coronel Bento Bicudo, em Campinas, onde conheceu o jovem Theofilo, nascido do ventre livre da escrava Virgínia Júlio. Apadrinhado pelo coronel, Theofilo foi bastante ambicioso para um jovem negro, e seu sonho era cursar a Faculdade de Medicina de São Paulo, onde foi barrado por um professor que acreditava que aquele não era lugar para negros. O casal teve seis filhos e resolveu investir na educação deles.
Virgínia gostava de estudar e seguia a recomendação dos pais de ser bastante aplicada, “para evitar ser prejudicada e dominada pela expectativa de rejeição… por causa da cor da pele”. “Olha, a ideia de meu pai era que as pessoas valem pelo estudo, pelo preparo que têm, estudando, isso era meu pai. Então, meu pai pôs todos na escola”, disse, em entrevista a Marcos Maio, em 1995. Mas logo veria que isto não era verdade, pois era seguida pelos colegas aos gritos de “negrinha, negrinha, negrinha”.
Em 1930, Virgínia Leone se formou na Escola Normal e, em 1932, depois de concluir o curso de Educação Sanitária, começou a trabalhar como educadora sanitária e depois como visitadora psiquiátrica, chegando ao cargo de supervisora das visitadoras na Clínica de Orientação Infantil de São Paulo. Durante esse tempo, circulou bastante pela cidade, conhecendo a realidade de várias crianças que eram tratadas como “problemáticas” pela campanha higienista e as ideias eugênicas que tomavam conta da política de implantação da escola pública brasileira. Talvez tenha se reconhecido nelas.
Em 1936, foi a única mulher a ingressar no curso de Ciências Políticas e Sociais da recém fundada Escola Livre de Sociologia e Política, onde em formou em 1938. “Eu fui para a escola de sociologia porque eu tinha sofrimento, tinha dor, e eu queria saber o que me causava tanto sofrimento. E eu colocava que eram condições exteriores a mim. Então eu pensei que a Sociologia iria me esclarecer sobre os motivos do meu sofrimento.”
Durante o curso, Virgínia tomará contato com ideias novas que, mais tarde, darão um novo rumo à sua carreira: “…pela primeira vez em minha vida, eu ouvi falar de Freud, em sublimação e fatores internos. Então eu disse, bem, não é sociologia que eu tenho que estudar, eu tenho que estudar é psicanálise e Freud.”
Menos do que “embranquecer”, a ascensão social cria consciência da cor.
Seu interesse pela psicanálise vai levá-la a ser a primeira mulher a fazer análise na América Latina, em 1937. E é bastante interessante pensarmos que uma mulher negra, querendo entender as dores causadas pelo racismo, tenha sido a primeira a se deitar no divã de uma mulher alemã judia que veio para o Brasil a convite da recém fundada Sociedade Brasileira de Psicanálise, a Dra. Adelheid Koch, que também fugia do nazismo.
Continuando seus estudos, integrante da primeira turma de pós-graduação em Ciências Sociais no Brasil, sob a orientação de Donald Pierson, Virgínia Leone Bicudo é a primeira pessoa a defender uma tese sobre relações raciais no Brasil, em 1945, “Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo”. Neste mesmo ano, é contratada como professora da faculdade de Higiene e Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Em 1949, foi convidada a integrar a projeto de pesquisa sobre relações raciais da UNESCO, sob coordenação de Roger Bastide e Florestan Fernandes. Seu trabalho, que depois será mantido fora da publicação dos resultados de tal projeto, em 1957, é o único a concluir que o Brasil não é a democracia racial que todos gostariam que fosse, contrariando, inclusive, as conclusões de seu orientador, Donald Pierson. Segundo ele, existia preconceito no Brasil, mas ele era mais de classe do que de raça.
Ao estudar negros e mulatos que tinham conseguido alguma ascensão social em São Paulo, Virgínia conclui que, menos do que “embranquecer”, a ascensão social cria consciência da cor, porque mesmo tendo condições financeiras para frequentar certos locais, como clubes e hotéis, os negros que podiam pagar eram rejeitados por causa de sua cor.
Aprofundando seus estudos em psicanálise, Virgínia Leone Bicudo se torna a primeira psicanalista não médica no Brasil, sendo acusada de charlatã. Indignada com o tratamento recebido, parte para Londres em 1955, onde tem contato e estuda com os analistas mais importantes de sua época, como Melanie Klein, Ernest Jones, Winnicott, Bion e Anna Freud. A partir de Londres, para divulgar a psicanálise, Virgínia transmite várias palestras para o Brasil, através da BBC.
Quando retorna, em 1959, já está com um nome consolidado para retornar a atividade clínica, atendendo a elite paulistana, como o atual senador Eduardo Suplicy. É uma das fundadoras do Instituto de Psicanálise da SBPSB, em Brasília, teve um dos programas mais ouvidos e comentados da Rádio Excelsior, onde comentava e dramatizava casos enviados para ela via carta, o “Nosso Mundo Mental”. Com o mesmo nome, que também batizou seu livro, tinha uma coluna no jornal Folha da Manhã. Virgínia ficou rica com a psicanálise, sendo uma das primeiras mulheres a dirigir o próprio carro pelas ruas de São Paulo, na década de 1950, e adquirindo vários imóveis pela cidade. Mas, de acordo com Janaína Damaceno, teve uma morte negra, em 2003, aos 93 anos de idade: esquecida, enlouquecida, abandonada em uma instituição para doentes mentais.
A tese de Virgínia somente foi resgatada e publicada em 2010, no centenário de seu nascimento. Virgínia estava certa em relação ao racismo quando a escreveu e foi silenciada por seus pares, que não concordavam com ela. Janaína Damaceno nos conta que encontrou sua tese, a primeira sobre questões raciais no Brasil, úmida e mofada, nos arquivos da Escola de Sociologia e Política da USP.
Ainda é bastante atual este processo de apagamento da produção intelectual de mulheres negras, e ilustro com um caso narrado pela própria Janaína na tese: “Enquanto realizava o doutoramento, prestei a seleção para uma bolsa de doutorado sanduiche de uma fundação americana. Quando fui entrevistada, um dos membros da banca, um cientista social, me interpelou acerca da veracidade de haver brasileiros estudando psicanálise e sendo psicanalisados no Brasil já nos anos 1940, e observou que isso deveria ser um erro crasso de minha pesquisa visto que os argentinos tinham uma tradição em psicanálise anterior à nossa, e pelo fato de que, sendo gaúcho, ficava óbvia essa tradição. Contestou também a existência de Virgínia Bicudo enquanto mulher negra, já que havia trabalhado com Florestan Fernandes e conhecia bem do assunto. Não recebi a bolsa.”
Ao longo dos tempos, é exatamente o que continuamos a ver: nosso conhecimento e trabalho sendo contestados por quem não os conhece. Racismo e machismo trabalhando juntos para nos manter na posição de meros objetos de estudo, como gostaria o sociólogo Luiz Aguiar Costa Pinto, ao ser acusado de distorção de fatos e plágio por Abdias do Nascimento e Alberto Guerreiro Ramos. Autor do livro “O negro no Rio de Janeiro”, Costa Pinto não gostou de ser interpelado pelos seus “objetos de estudo”, e que era uma ameaça às ciências sociais que um pesquisador pudesse. 
Resposta dada por Costa Pinto a um jornal carioca da época, em trecho do livro “O sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no Brasil”
Resposta dada por Costa Pinto a um jornal carioca da época, em trecho do livro “O sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no Brasil”
Para quem desafiou e continua desafiando este lugar de “material de laboratório”, meus profundos agradecimentos. Em honra a todas as mulheres negras que lutam por respeito, espaço e reconhecimento, deixo o meu muito obrigado a Dona Virgínia Leone Bicudo e a Dra. Janaina Damaceno Gomes. Elas nos representam!

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