Crônica
de um domingo em Campinas, entre consumismo obsessivo, a bolha indie de
Barão Geraldo e 500 manifestantes em estilo fitness, porém um tanto
desconcertados
Por Ricardo Cavalcanti-Schiel
Por Ricardo Cavalcanti-Schiel
Pequenos
grupos políticos mais caracteristicamente de direita no Brasil (a
saber: o Movimento Brasil Livre, o Vem Pra Rua e o Revoltados Online)
convocaram para este domingo, 26 de março, manifestações públicas nas
cidades brasileiras. Passado um ano das massivas manifestações puxadas
pelos agentes desse espectro político, pedindo a destituição da então
presidente Dilma Rousseff, não se sabe agora exatamente a que fim essa
nova manifestação domingueira foi convocada. A suspeita sobre sua
motivação recai principalmente sobre o possível desejo de marcar posição
e mostrar a cara, principalmente agora que o governo cuja instalação
essas forças patrocinaram parece estar contra as cordas em quase todas
as frentes institucionais e políticas. Se a intenção era mostrar a cara,
então ela apareceu de forma bastante marcada, e não foi necessariamente
pela escala multitudinária das manifestações anteriores.
Campinas
é uma cidade de grande porte do eixo da indústria de alta tecnologia do
Estado de São Paulo. É uma cidade com uma portentosa classe média,
eloquentemente avessa ao cultivo cultural e fã incondicional de shopping
centers. Em Campinas vive-se fundamentalmente para consumir. A “vida
social” ― e, pode-se dizer, pública ― é toda ela marcada por esse vetor
simbólico imperativo, e mesmo as oportunidades em que as pessoas se
reúnem são irremediavelmente vincadas, seja no seu motivo geral seja no
conteúdo do diálogo entre as pessoas, pelo imperativo de consumir e,
colateralmente, de ostentar, instaurando uma gramática da distintividade
social ― na acepção que lhe deu o sociólogo francês Pierre Bourdieu ―
que obedece a uma regra matemática bastante simples (e até obsessiva):
quanto maior o poder aquisitivo, maiores as exigências de gourmetização
do consumo. É difícil encontrar, em uma cidade como Campinas, algo que
escape dessa lógica arrasadora.
Alguém
poderia eventualmente lembrar que essa é também a cidade sede da
segunda mais importante universidade do país, de modo que as coisas
podem não ser exatamente assim. Acontece que, dos tempos do cenário do Feliz Ano Velho
(final da década de 70), do Marcelo Rubens Paiva, para cá, a Unicamp se
tornou um quisto acantoado em sua própria redoma social, e seus
estudantes foram se refugiar em um distrito geograficamente isolado da
cidade, o mundo de Barão Geraldo, onde cultivam, eles também, uma
espécie de gourmetização “indie”, na sua pequena ilha de “estilo” ―
evocando a distinção consagrada pelo arquiteto Anatole Kopp, entre
“causa” e “estilo” ― alheia ao mundo ao redor e, quando muito, fustigada
pela pontual mas continuada e exasperante violência urbana (que não
distingue vítimas).
Por
todas as suas características, Campinas pode, com certa facilidade, ser
colocada no polo privilegiado do capitalismo avançado de enclave, com
suas características contradições no que respeita à lógica de
maximização da produção de necessidades ― insatisfeitas, evidentemente,
porque num mundo onde só existem necessidades (de consumo), a satisfação
é algo logicamente inalcançável ― e a manutenção de um exército (sempre
tensamente contido) de serviçais.
Neste
domingo, aqueles grupos políticos antes mencionados mais uma vez
quiseram sair às ruas, naquele que para eles parece ser o seu condomínio
natural e de direito: a Alphaville (no sentido do filme de Godard) da
classe média paulista.
Há
um ano atrás, a praça que leva o nome da mais relevante personalidade
histórica campineira (a segunda é o barão do café e presidente
oligárquico da República Velha, Manuel de Campos Sales), o compositor
oitocentista Antônio Carlos Gomes ― ironicamente um nome do mundo da
cultura ―, estava de tal forma abarrotada de gente na concentração para a
manifestação contra Dilma Rousseff que qualquer central sindical
sonharia em repetir a façanha (sem nunca ter se atrevido a isso).
Naquele momento, os carros de som dos grupos de direita pediam cuidado
com as plantas e anunciavam que a Praça Carlos Gomes tinha que ser
tratada como (seu) patrimônio histórico. Eles pareciam ébrios de
triunfo. Alguns meses depois, a mesma praça serviria de locação para as
cenas iniciais da atual novela das nove horas da Rede Globo. Neste
domingo, no entanto, em comparação com o que se passara um ano antes, o
cenário poderia ser descrito como melancólico.
Ao
deixar o ponto de concentração, a manifestação se estendia por não mais
que dois quarteirões de uma rua estreita. Provavelmente não mais que
500 pessoas. Vestidas majoritariamente em estilo fitness e casual
esportivo, elas deixavam bem marcado o ambiente relaxado de lazer
domingueiro. Esse, obviamente, não é o mundo do trabalho; muito menos o
da necessidade (e, por extensão, o do desemprego, da precariedade, do
medo e das carências infraestruturais). Esse é o mundo dos abastados e
despreocupados. Para eles, a “corrupção” é uma espécie de prurido, de
brotoeja, uma micose que deve ser curada para que eles possam usar mais
comodamente seus trajes esportivos.
Nesse
domingo, ao menos em Campinas, os manifestantes também deixaram de
lado, em certa medida, o amarelo CBF das camisetas de outrora para dar
lugar a um inusitado e massivo verde-bandeira, como se tivesse sido
minuciosamente planejado por um carnavalesco; a mesma cor, aliás, de uma
multidão de cartazes impecavelmente bem impressos com o dizer “fim do
foro privilegiado”. Em termos visuais, esse se tornava, portanto, o mote
central da manifestação. Algum desavisado poderia concluir que se
tratava de uma manifestação contra o velho e oligárquico establishment
político (o mesmo a quem essas mesmas forças alçaram ao monopólio
completo do governo, para que fizesse o “serviço” que dele se esperava);
establishment este, teoricamente em conluio com as cortes para
livrar-se da punibilidade judicial que o assombra. Não fosse contra ele,
essa agora não seria mais que uma manifestação movida por razões
estritamente… “processuais”. É difícil concluir se esse apego à picuinha
foi o fator determinante do esvaziamento da manifestação. (Atenção!
Isto pode ser uma ironia!). Mas o fato bastante óbvio é que não havia
uma mensagem contundente. Pela primeira vez, talvez, uma manifestação
política evocava mais silêncios que consignas. No fim das contas, os
manifestantes pareciam marchar para esconder aquilo que eles não diziam ―
ou que tinham vergonha de dizer.
Evidentemente,
não se marchou pelo “fim do foro privilegiado” (muito menos pelo fim
dos privilégios…). Os dois carros de som (um ao início e outro ao final
do grupo de manifestantes) tonitruavam as invectivas espumantes que vêm
caracterizando o estilo discursivo da direita desde o advento da
Internet. Nesse quesito, a palavra de ordem era mais direta, pragmática e
sedutora para os seus partidários: “Lula na cadeia!”. Ao que parece, o
zelo “processual” dos nossos manifestantes lhes faz se sentir no direito
de ocupar o lugar (ao menos de consciência transcendente) do
Judiciário. Pérolas de adolescência política como essas eram
pronunciadas por “puxadores” de óculos escuros, com pinta de garotões de
academia, fazendo uso de uma prosódia anabolizada pelo estilo de um
Galvão Bueno. Parecia até que por pouco, por muito pouco mesmo, não
havia garotas do layout “panicat” no alto dos carros de som.
Além
do mote visual do “fim do foro privilegiado”, os carros de som puxavam
também os motes auditivos do “não ao voto em lista fechada” e do “em
defesa da Lava Jato”. O primeiro parecia mais uma dessas picuinhas
esvazia-manifestação. O segundo apelava para a força de um ícone
messiânico que cada vez mais parece ter pés de barro e que, com as águas
de outros marços que virão, pode definitivamente vir a se conformar a
seu destino de pantomima.
A
vacuidade das mensagens políticas deliberadas produziu, assim, um
efeito curioso: a verdadeira mensagem política passou a ser aquela que
estava implícita, que não era outra que simplesmente a presença visível
dos manifestantes domingueiros em trajes esportivos: a presença dos
abastados e despreocupados. Nesse sentido, não parece ter sido tanto uma
manifestação, mas antes um desfile; um desfile, talvez, para mostrar
uma cara mais verdadeira e expressiva da direita. Se é verdade que nos
últimos anos a direita vem cada vez mais ocupando o lugar da especificidade
no cenário político brasileiro, por oposição ao lugar da generalidade,
da “normalidade”, que antes ocupava, parece que agora, cada vez mais,
ela tem uma cara bem delineada.
O
caso pontual de uma manifestação como esta de domingo, tomado aqui a
partir de uma cidade como Campinas, pérola do pujante interior paulista,
parece ter escancarado esse regime de visibilidade. Qualquer um que se
detivesse em assistir à manifestação poderia estimar com relativa
facilidade que a idade média dos manifestantes ficava na casa dos 50
anos. Havia um certo número de pessoas mais jovens, mas havia sobretudo
uma grande massa de pessoas acima dos 60 anos. Um desses senhores trazia
no peito um papel impresso com o dizer “intervenção militar já!”. A
aritmética do aspecto etário com o reconhecimento de certas visões de
mundo pode oferecer uma conclusão singela: não eram apenas idosos em uma
manifestação como essa; eram efetivamente as viúvas da ditadura.
Outro
elemento visual impactante, mesmo para um lugar do interior de São
Paulo (talvez não o fosse no interior de Santa Catarina), é que
raramente uma manifestação parece ter reunido tanta gente loira. Não
deixa de ser um recorte fisionômico bastante inusitado da população
brasileira, para que compareça em tal grandeza de amostragem numa
manifestação política. Já foi o tempo em que a direita pintava o cabelo
de acaju. Sem querer ensejar preconceitos ou estereótipos, mas apenas
pelo intrigante do impacto visual: o que teria tornado a direita tão
loira?
Em
número reduzido, decepcionante para eles mesmos talvez (sobretudo
depois das gloriosas manifestações massivas do ano passado), muitos
manifestantes pareciam, desta feita, movidos por certa exasperação.
Vendo um transeunte caminhar no sentido contrário da marcha, um dos
manifestantes fez-lhe gestos incisivos de que era para o outro lado que
se deveria caminhar. O manifestante parecia notavelmente contrariado.
Mais atrás, alguns porteiros saíam dos prédios em que trabalhavam, em
pleno domingo tão ciosamente (por outros) destinado ao lazer. Um deles,
não se sabe por que impulso, chegou a comentar com algumas pessoas
alheias ao acontecimento: “O Lula vai ganhar no primeiro turno!”
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