Após a aprovação, na semana passada,
do projeto de lei que libera a ampla terceirização, o Brasil ficou a um
passo de ter um mercado de trabalho mais flexível. Mas quais são os
prós e contras da mudança e como isso funciona em países onde a medida
já é uma realidade?
Para buscar respostas, a BBC Brasil ouviu
especialistas e órgãos nacionais e internacionais - como a OIT
(Organização Internacional do Trabalho), o autor da proposta original da
reforma, a CUT (Central Única dos Trabalhadores), a Fiesp (Federação
das Indústrias do Estado de São Paulo) e as Nações Unidas - e consultou
estudos sobre o tema e os modelos existentes em outros lugares do mundo.
A proposta, que agora está nas mãos do presidente Michel Temer
para sanção, gerou polêmica. Críticos dizem que sua entrada em vigor
provocaria a precarização das condições de trabalho, enquanto defensores
afirmam que a nova regra poderia trazer mais segurança jurídica para as
empresas e os atuais cerca de 12 milhões de trabalhadores terceirizados
do país.
- Mais emprego ou precarização? Os possíveis impactos da lei da terceirização, que está nas mãos de Temer
- Você pode substituir carne por... linhaça?
Apesar de não haver consenso, os especialistas são unânimes em
afirmar que a economia e as relações de trabalho mudaram, e que há
necessidade de adaptação. A preocupação, segundo vários deles, é sobre
as condições nas quais essas transformações são executadas e a
vulnerabilidade dos trabalhadores diante delas.
Caso seja
sancionada, a legislação permitirá às empresas subcontratar funcionários
para realizar as chamadas atividades-fim - as tarefas centrais na
produção de bens e serviços.
Desse modo, por exemplo, uma fábrica
que monta eletrodomésticos poderá gerir toda a sua força de trabalho por
meio de contratos terceirizados, evitando o vínculo empregatício com
operários - hoje, só é permitido delegar a eles atividades-meio, ou
seja, serviços periféricos como limpeza, segurança e suporte.
Além
disso, pela regra proposta os contratos temporários poderão serão
válidos por um semestre - hoje, é permitido um trimestre -, prorrogáveis
por mais três meses, salvo acordo coletivo ou outra negociação.
O modelo no mundo
Na
opinião do diretor da divisão de Globalização e Estratégias de
Desenvolvimento da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e
Desenvolvimento, UNCTAD, Richard Kozul-Wright, o modelo proposto pelo
Brasil se mostrou pouco eficaz em outros lugares do mundo.
"Se a
ideia é flexibilizar o mercado de trabalho para baixar os custos e
fazê-lo mais competitivo, incentivando investimento estrangeiro direto, o
que observamos em outros países é que esse modelo não é tão
bem-sucedido", afirma.
"A maioria do investimento estrangeiro
direto não é atraído somente por mão de obra barata, apesar de casos
específicos. Mas não acredito que esse seja o perfil do Brasil, de
competir como uma economia de mão de obra barata como a China e outros
países do Leste Asiático."
A pedido da BBC Brasil, a Organização
Internacional do Trabalho se posicionou a respeito do tema. Segundo o
diretor do órgão para o Brasil, Peter Poschen, a terceirização é uma
"realidade", mas é necessário tomar algumas precauções.
"Há que se verificar as condições em que são executadas, para que se garantam as condições de um trabalho decente", disse.
A internacionalização do trabalho
O fenômeno da fragmentação da produção por meio de
contratos terceirizados se deve em parte à internacionalização do
trabalho que ocorreu nas últimas três décadas - por meio da qual um
produto passa por vários países desde a sua concepção até a venda. O
processo é conhecido como Global Supply Chains, GCS em inglês (cadeias
globais de valor, em tradução livre).
O iPhone é um exemplo de
produto com cadeia global de valor - é concebido na Califórnia e
manufaturado na China com componentes vindos de diversos países, para
depois ser exportado para o mundo todo. A fábrica onde o celular é
montado não pertence à Apple e os empregados que ali trabalham não têm
nenhuma associação com a empresa criada por Steve Jobs.
Mas, em
perspectiva, a participação em GCS traz prós e contras. Um estudo de
2013 da Organização Mundial do Comércio avalia o impacto positivo da
redução de custos, mas alerta que os benefícios às vezes não são
repassados aos trabalhadores.
O documento afirma que, por um
lado, é positivo por contribuir para a "expansão da produção e ganhos de
economia de escala, por meio da redução de custos, além de permitir que
empresas e nações se beneficiem da transferência de tecnologia e
práticas de administração".
Por outro lado, avalia que "enquanto a
produtividade sobe, a participação avançada em cadeias globais não está
associado com ganhos setoriais, o que sugere que os ganhos econômicos
obtidos nem sempre são necessariamente repassados aos trabalhadores".
Ou seja, o lucro resultante da otimização não se traduziria em salários maiores.
Concepção x manufatura
É
exatamente a forma como se dá a regulamentação dos processos de
terceirização, bem como a qualificação da mão de obra e o investimento
em pesquisa e desenvolvimento, que determina a posição das economias
globais entre as que agregam mais ou menos valor ao produto.
No
topo da pirâmide, estão os países ricos - responsáveis pela concepção,
design e marketing do produto -, enquanto que na base estão os países
pobres, responsáveis pelos insumos e manufatura.
Embora admita a dificuldade de comparar diferentes países, Poschen afirma que é possível fazer algumas constatações.
"Em
geral, nos países desenvolvidos o trabalho terceirizado pode ser
encontrado em todos os setores, com predominância nas ocupações de
salários mais baixos. Já nos países em desenvolvimento o emprego
terceirizado segue representando uma porção importante do emprego
assalariado."
"Tem havido uma proliferação dessa modalidade nos
setores onde o emprego típico era mais comum, como no setor público ou
no manufatureiro", observou.
Problemas na Ásia e sucesso no Uruguai
A
vulnerabilidade dos trabalhadores é o ponto central que distingue as
situações de terceirização em experiências positivas e negativas.
"A
OIT reconhece que o trabalho pode ser visto de formas contratuais
variadas. O objetivo não é que ele se ajuste ao modelo típico, mas que
todos estejam no conceito de Trabalho Decente", disse Poschen.
Segundo
ele, para garantir esse conceito, é necessário que as tarefas sejam
"regulamentadas com o objetivo de equilibrar as necessidades dos
trabalhadores, das empresas e dos governos".
No caso de alguns
países da Ásia, não são raros os episódios de abuso, nos quais fábricas
operam em condições insalubres, fazendo uso de trabalho escravo ou mão
de obra infantil.
As marcas que comercializam esses produtos
raramente chegam a ser responsabilizadas, pois estão ocultas atrás de
diversos contratos de terceirização.
O projeto de lei brasileiro abre uma brecha para que incidentes semelhantes ocorram.
Na
versão aprovada pela Câmara foram suprimidos os artigos que tratavam da
obrigação das empresas contratantes de reportar acidentes de trabalho.
Por exemplo, se ocorrer a morte de um profissional terceirizado na
oficina de uma fábrica que produz itens de grife, essa empresa não
precisará reportar às autoridades a tragédia, permitindo que a marca se
desassocie da responsabilidade social pelo caso.
"Em alguns casos
podem ser criados acordos com múltiplas partes com o objetivo específico
de eliminar responsabilidade e contornar a regulamentação (…) A
fissuração ocorre através de uma gama de acordos contratuais, incluindo
trabalho temporário por agência, subcontratação e franchising. Podem
também aparecer através de cadeias de fornecimento, grupos empresariais,
terceirização de trabalhadores autônomos, esclareceu Poschen.
Em
contrapartida, um exemplo de regulamentação da terceirização
bem-sucedido ocorreu no Uruguai, na indústria de Tecnologia da
Informação e call centers.
Em 2002, a Tata Consultuncy Services,
líder no setor de outsourcing da Índia, se instalou no país incentivando
a construção de cadeias de valor global. A chegada de empreendimentos
estrangeiros se seguiu a políticas públicas de forte investimento em
educação.
O vizinho latino, que possui zonas francas para receber
as empresas estrangeiras, exportou US$ 500 milhões em serviços em 2015.
Cerca de 63 mil pessoas estão empregadas no setor e são profissionais
com alto nível, que ganham na média US$ 2.500 ao mês.
A lei de
subcontratação, aprovada ali em 2007, prevê que as empresas contratantes
sejam responsáveis por garantir que os terceirizados cumpram com os
pagamentos dos encargos sociais e em caso de litígio são solidários
perante a Justiça, ou seja, dividam a responsabilidade.
Já no
projeto de lei brasileiro, a responsabilidade só recairá sobre a
contratante quando tiverem sido exauridas as possibilidades de acionar a
terceirizada na Justiça.
Mas segundo Luciana Freire, advogada da
Fiesp (Federação das Indústrias de São Paulo), essa subsidiariedade não é
necessariamente ruim.
"Imagine um engenheiro que trabalhe para
uma construtora. A construtora quebra, ele não tem a quem recorrer. Na
situação terceirizada não. Ele ainda tem duas pessoas jurídicas acima
dele para recorrer."
Mão de obra ociosa
O texto da lei aprovada pela Câmara é uma adaptação
de um projeto de 1998, idealizado no governo Fernando Henrique Cardoso
(PSDB) pelo então ministro do Trabalho, Paulo Paiva.
Em
entrevista à BBC Brasil, Paiva explicou que um dos objetivos originais
era retirar trabalhadores sazonais da informalidade e dar aos
empregadores a oportunidade de cortar custos em situações de ajuste.
"Muitas
pessoas da atividade urbana pediam licença para participar de colheitas
e neste caso não existia nenhuma cobertura legal", exemplificou.
"Além
disso, se a economia está retomando, você pode estimular a empresa a
contratar um trabalhador. Se essa atividade se consolidar, a empresa
pode mudar o contrato para tempo indeterminado, mas se não fizer isso,
não terá de arcar com os custos de demissão", defendeu.
Para ele, a terceirização ainda evitaria gastos com mão de obra ociosa.
"É
exatamente para que a empresa possa minimizar o custo de ter
trabalhadores que em um determinado período ficam subutilizados. Com
isso, ela consegue reduzir os seus custos e consequentemente aumentar a
produtividade."
"Eu tenho a convicção de que o que estamos fazendo
é aumentar a possibilidade de contratação de trabalhadores em uma
economia que está passando por transformações", disse.
O secretário internacional da CUT, Antônio Lisboa, não concorda.
Segundo
ele, o projeto "acaba totalmente com as relações de trabalho que o
Brasil construiu nesses últimos cem anos". Na prática, avalia, há um
"esfacelamento", porque a prestadora de serviço passa a contratar os
trabalhadores como pessoa jurídica, um processo de "pejotização" que os
deixa desamparados.
Lisboa faz referência ao termo "PJ", ou
pessoa jurídica - amplamente utilizado para designar os trabalhadores
que são terceirizados e emitem notas fiscais aos empregadores como
empresas, ou pessoas jurídicas.
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