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quinta-feira, 30 de março de 2017

Daniel Blake encontra Antonio Gramsci, por Tarso Genro.


Tarso Genroreprodução

A centralidade do trabalho não acabará numa sociedade mais justa, mas ela deverá se transferir mais para um exercício de liberdade do que de submissão.


Li, anotada num velho livro de leitura recorrente, uma frase que me parece ser de Benjamin, que faz todo o sentido recordá-la, no momento em que as forças do conservadorismo e da reação obtém duas vitórias estratégicas sobre o mundo do trabalho. De um lado dividindo-o, mais uma vez, com a exclusão da Reforma da Previdência, de um grande grupo de servidores públicos, apostando na suas divisões corporativas e assim enfraquecendo a resistência à referida reforma. De outro lado, aprovando uma “terceirização” selvagem, que não só fragmenta as comunidades de trabalho – que são a base material da unidade de classe no contrato socialdemocrata, fazendo-o, para estimular formas de prestação de serviços que vão reduzir, brutalmente, o valor da massa salarial dos trabalhadores mais pobres: uma cunha política que divide, e uma cunha de diferença de renda, que segrega, eis as vitórias  estratégicas da contra-revolução neoliberal.

A retração do consumo vai agravar ainda mais a situação das empresas, pequenas, médias e grandes, que trabalham com os olhos postos no mercado interno, já que o reino da pobreza, com a recessão, vai se combinar, ora em diante, com o reino da intermitência, da precariedade e da meia-jornada, com uma fragmentação ainda maior na estrutura de classes. A possibilidade de redução generalizada da jornada de trabalho, com a redução das diferenças de salário e renda – posta em pauta pela evolução tecnológica e pelas novas forma de articulação produtiva – vai se transformar em jornadas maiores com salários reais mais baixos. É a contra-revolução neoliberal promovendo um novo ciclo de enriquecimento dos 1%, que preparam a sociedade dos três terços: 1\3 incluído à sombra da lei e da segurança; 1\3 de precários, intermitentes, meio-“jornadistas”; 1\3 de marginalizados, excluídos – casos de polícia – pedintes nas sinaleiras, órfãos do mercado. Na Europa foram criados os “mil-euristas” da socialdemocracia revogada, sobreviventes à margem dos empregos regulares em retração. No Brasil, são recriados os mais excluídos de todas as épocas.

Roberto Campos no seu  clássico autobiográfico “Lanterna de Popa” lembra este impasse, com a voz brilhante da direita conservadora que ele representava, na Inglaterra dos anos 70. O trabalhismo socialdemocrata, que gerara um modo de organização da sociedade e do Estado exemplares, no pós-guerra, encontrava-se num impasse: produtividade decaindo, competitividade em baixa no mercado mundial, crise fiscal em andamento, estagnação tecnológica e movimento sindical atado ao economicismo imediatista, promovendo greves que duravam meses e até anos. O trabalhismo, como representação política mais reconhecida dos trabalhadores ingleses, neste contexto de crise, ficou sem uma proposta convincente de mudança tributária e fiscal, que pudesse refinanciar o Estado, promover a inovação produtiva combinada com a socialização da renda. Foi a hora de Margaret Thatcher. Ela joga os sindicatos contra o resto da sociedade, reprime, privatiza, suprime as fábricas improdutivas, fragmenta o mundo trabalho, terceiriza e qualifica. O que poderia se tornar uma nova Noruega ou uma nova Dinamarca, torna-se um arremedo do modelo americano, consolidado, depois, como o “novo trabalhismo” de Tony Blair.

A frase a que me referi acima é a seguinte: “os animais e as máquinas não tem medo da morte, não sentem angústia diante do nada”. No filme de Ken Loach, “Meu nome é Daniel Blake”, acompanhamos um operário inglês com medo da morte e a sua “angústia diante do nada”. O “nada” é a ausência de oportunidades dignas de trabalho, de preocupação sensata do Estado com a situação dos trabalhadores; o “nada” é a ausência da classe organizada na fábrica como centro de solidariedade militante. Tudo isto forma o “nada”!  Mas, mesmo neste “nada” Daniel Blake não se deixa desumanizar e passa a buscar -não no seu nicho de trabalho redentor -, mas na solidariedade humana e de classe, a possibilidade de erguer-se como um gigante. Acima da máquina, acima do nada, acima do exílio da velhice solitária. Amanhã, os nossos trabalhadores humilhados e sem emprego formal “antigo”, ou serão novos “daniel blakes” ou, ainda mais alienados e brutalizados, sequer sentirão angústia diante do “nada”.

A integração do trabalhador na empresa empregadora, propiciou os direitos que foram paulatinamente construídos nas lutas originárias da fábrica moderna. Este processo fez, desta empresa, não somente uma “unidade produtiva”, mas também uma comunidade de trabalho. Nela, o capital precisou reconhecer e outorgar direitos para ter trabalho produtivo, gerar consumo e alavancar lucros. Ao viabilizar relações sociais e de trabalho, que foram sustentados na ordem jurídica e oferecer “paz social” mínima, os empresários da indústria moderna transitaram para o exercício de uma dominação concertada. Derrotada a ideia socialista da emancipação do trabalho pela autogestão dos trabalhadores, esta foi a saída civilizatória construída, pelo direito e pela política, no século passado. A terceirização é o “dobre de finados” da civilidade social-democrata e da sua empresa como comunidade de trabalho e é a ruptura jurídica e política daquela unidade orgânica, com regras formais de acolhimento cidadão para os trabalhadores. A reforma da previdência  é o seu “enterro”. A República se esvai.

As mudanças nas formas de organização da produção e da sua reprodução social, não vem de rupturas que anulam as formas velhas. As novas formas nascem do ventre das formas velhas e vão se tornando, paulatinamente, dominantes. Até hoje temos resíduos de trabalho escravo no Brasil e restos feudais, no interior do império do capital. O mesmo ocorre com as mudanças qualitativas na produção capitalista, que transita, hoje, do modelo industrial clássico da fábrica moderna – com suas extensas linhas de produção automatizadas que ainda vão perdurar- para a substituição da mão-de-obra operária tradicional pela robótica. A informática, o uso da telemática, o aproveitamento dos recursos da nanotecnologia, o controle pelos resultados, a produção e o uso da inteligência artificial é a nova equação histórica da renovação capitalista. Nesta época de crise da acumulação privada devotada aos bancos, todavia, – nesta mesma época – já foram criadas todas as condições materiais e pressupostos técnicos e tecnológicos para, pela primeira vez na história da humanidade, eliminar a carência.

Com estes meios de produção e esta experiência acumulada na organização do trabalho, poderíamos ter uma sociedade humana, não só reconciliada com uma exploração racional da natureza, mas também uma organização social e estatal transparente, onde ninguém passasse fome, frio, dormisse ao relento, onde todos tivessem um sistema de proteção à velhice e à saúde à disposição, com uma boa educação pública. Normas constitucionais que previssem as máximas desigualdades aceitáveis e as condições mínimas para a reprodução da existência, devida a todos. Mas toda esta riqueza material e da inteligência humana -acumulada pela ciência e pela técnica- possibilitou, não a emancipação, mas um sistema produtivo e social gerador de mais desigualdades, que no seu próprio sócio-metabolismo gera mais riqueza concentrada, consumo suntuário, privilégios de poder e territórios arrasados pela guerra e pela morte. A vitória da contra-revolução neoliberal é uma vitória política, que soube combinar a força da espontaneidade do mercado, com  o convencimento político de que a solidariedade e a igualdade são improdutivas e opressivas.

O impulso da “terceirização”, das relações horizontais entre cadeias de empresas, entre constelação de empresas em cooperação produtiva, o impulso da redução e da intermitência da jornada, o impulso da libertação do trabalho braçal e da supressão da monotonia -nas linhas repetitivas de produção- é impulso que retira os trabalhadores do contrato subordinante, na “velha” fábrica moderna. É um impulso de liberdade oposto à rotina, ao trabalho precário, à submissão aos ritmos da automação, que suga a alma e a energia dos produtores. Este processo, porém, não lhes joga de forma espontânea no território verdadeiro da liberdade corpórea e mental para melhor viver a vida, mas despeja-o na anomia e na semi-informalidade. Joga-o -no modelo de sociedade em gestação- na disputa selvagem da sobrevivência com baixa renda e lhe individualiza para concorrer com seu igual. Não para disputar melhores condições de vida com o tomador dos seus serviços. A luta de “interesses” ou luta de “classes”, como queiram qualificar, transfere-se, nestas condições, para o mundo interno das classes trabalhadores, cuja disputa se dá entre, de um lado, os que oferecem trabalho mais barato e, de outro, os que oferecerem-no mais “caro”, aos seus tomadores de serviços.

O grande problema que se coloca para a esquerda “pensante” e para o movimento sindical, que não quer perder as suas raízes de classe, é que este processo não é novo. A direita começou a pensar num projeto político estratégico, para responder a estas mudanças objetivas, na produção e no trabalho, desde os anos 70, compondo um projeto político para apropriar-se destas energias liberadas, com vistas a promover um consumismo manipulado, num novo ciclo de  enriquecimento dos 1% que controlam os mecanismos do poder mundial. Neste mesmo período, a esquerda ficou atada nas análises da contradição clássica da sociedade industrial, entre uma “burguesia”, que não é mais a mesma – pois é mera caudatária do capital financeiro globalizado – e o “proletariado”, que não mais o mesmo, pois foi levado a ser indiferente à “escória” desempregada, que se marginalizou ou veio de “fora”, disputar seus empregos.

Há mais de trinta anos, cabeças como a de Andre Gorz vem discutindo estes temas. No seu “Metamorfoses do Trabalho”, em cuja introdução explicita que no livro não vai discutir a “crise da modernidade”, mas a necessidade de modernizar os “pressupostos sobre os quais está fundada a modernidade” e dizer que não é preciso deixar de sermos utópicos, mas devemos mudar o sentido da nossa utopia, explicita: “O tempo da vida já não tem mais que ser administrado em função do tempo de trabalho, é o trabalho que deve encontrar seu lugar, subordinado, num projeto de vida.”

A centralidade do trabalho não acabará numa sociedade mais evoluída e justa, mas ela deverá se transferir mais para um exercício de liberdade do que de submissão a contratos subordinados. A utopia de uma sociedade “regulada”, como dizia Gramsci – pautada pela igualdade que faz o reconhecimento das diferenças – começa em cada reforma que controle o sociometabolismo espontâneo do capital e ordene as suas energias, para melhorar a vida cotidiana. Responder às terceirizações com novas tutelas sobre a prestação de serviços dos trabalhadores fora do emprego tradicional e regular, que vai ser cada vez mais escasso, e responder à reforma da previdência com um projeto claro, para proteger os trabalhadores públicos e privados de renda média e baixa – independentemente dos interesses das altas corporações do próprio serviço público –  pode ser um bom começo. Um Fundo Público, composto pelos impostos dos mais ricos e pelo uso do trabalho robotizado, para equalizar o rendimento dos intermitentes e precários pode ser um elemento importante do novo projeto socialdemocrata.


Não é de pasmar que os debates internos e os Congressos dos partidos políticos do campo da esquerda, despertem pouca atenção, fora de um círculo restrito dos seus militantes e dirigentes e se tornem, mais ajustes entre já convencidos, do que propriamente respostas amplas a questões políticas e econômicas de fundo, que já estão no cotidiano das classes populares. É que as propostas políticas para o “hoje” conservam, quase sempre, a visão de um passado idílico, que não existiu, e o gosto de uma utopia perfeita, que não se realizou. Falam, em regra,  para trabalhadores que não escutam e para cidadãos, em geral, cujas subjetividades vinculam-se mais aos sabores do rentismo, do que à jornada comum da sobrevivência do povo.

No dia em que foi preso pelos fascistas Antonio Gramsci, como Daniel Blake, não submetia à contemplação do “nada e tinha no bolso um bilhete endereçado à redação do “L’Unitá”, no qual afirmava “a necessidade de se habituar a pensar e a estudar também nas condições mais difíceis”. A situação que nós, da esquerda, vivemos hoje, recomenda atenção a este alerta do mais célebre prisioneiro do fascismo. Com a diferença que o nosso “pensar” e “estudar”, deve ser integrado aos movimentos de resistência concretos, contra as reformas em curso, porque quanto mais elas forem aplicadas integralmente, mais “insolidária” e insegura será a sociedade que vivemos e, em consequência, mais difícil será achar um caminho comum, que recupere o desejo da utopia e o gosto pela democracia.

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Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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