Realizado o desejo de que uma chacina ocorra a cada semana, como
um ex-secretário nacional da juventude confessou recentemente, então
começaremos a respirar
“Um animal não passa sem inquietação
ao lado de um animal morto de sua espécie”
(Rousseau, Discurso sobre a desigualdade, I)
ao lado de um animal morto de sua espécie”
(Rousseau, Discurso sobre a desigualdade, I)
Por Priscila Figueiredo | Imagem: David Powers
Pode ter havido mais de uma razão para que outros não tenham feito o
mesmo que Jean Willys, mas a verdade é que muitos inclusive que votaram
pelo impeachment poderiam ter se juntado ao deputado do PSOL para
mostrar seu repúdio àquele que, ao homenagear o ex-chefe do DOI-Codi,
acenava com uma ordem que supostamente iria além do que admitiriam
muitos do partido do “sim” à revogação do mandato presidencial.
Deputados do PSDB, do PSB, mesmo do DEM e do PTB, além, naturalmente,
dos partidos de esquerda, poderiam, todos, sem distinção, ter reagido,
para além do “decoro”, cuja manutenção, nessa altura, apenas duplicava o
horror – é verdade que a câmara televisiva, fixada no local da votação,
não permitiu ver muito. Em todo caso, o exagero retórico aqui é
necessário, pois o nome “Ustra”, pronunciado com devoção – como se
devesse adquirir características táteis, tomar corpo e grudar em outros
corpos, especialmente no corpo de Dilmai
– constituía mais propriamente uma fórmula invocatória de tudo que não
deveria jamais ser trazido à lembrança, a não ser sob uma controlada e
precisa ritualização, pois deve ser respeitado o temor de que certas
palavras acordem os mortos. Por isso, deixar essa palavra soar
livremente, como se tem feito, em debates promovidos por clubes,
programas de auditório, talk-shows, como a imprensa norte-americana fez
tanto com Trump, a quem, no entanto, repudia (mas não repudiava as
cifras trazidas pelo seu ibope), ao longo de anos e muito antes de sua
campanha eleitoral, permitindo que se tornasse familiar o mais sinistro,
ouvir o que ele tem para falar, “por sórdido que seja”, como dizem
alguns bem-pensantes, pois isso seria respeitar o “Estado Democrático de
Direito”, reduzido por alguns a uma espécie de fórmula mágica,
salva-vidas precário daqueles que já não sentem o tapete debaixo dos pés
e veem se dissolver a própria identidade política – não é ouvir, na
verdade, mas consentir que soe livremente o veredito arcaico de seu
enunciado, ávido por destruição tanto como o gesto de “não devo nada a
ninguém”, lido como ousadia por seus entusiastas – oh ele ousa dizer o que estava na ponta de nossa língua, mas não dissemos até agora porque somos covardes. Ele é que tem colhões!
E assim, na vala da covardia, vão sendo jogados decoro, respeito, senso
de limite, assim como a expressão formalizada de uma convicção íntima, a
tal opinião. Na verdade, seria interessante imaginar o que seria
a convicção do deputado se minimamente formalizada, assim como as
convicções de tantos que se expressam selvagemente em portais e redes
sociais. Por uma imposição interna da forma, esse conteúdo
mortífero teria de perder um pouco de si. Creio que nem o partido
nacional-socialista alemão ousava se expressar assim em suas campanhas
iniciais e falar tão cruamente de seu projeto de morte: ao menos na
fachada, prometiam vida, comunidade, espírito, e se expressavam de um
modo que mal se distinguiu em princípio das propostas do partido
comunista, de que tiravam impulso para sua posição, como a promessa aos
trabalhadores de que se apossariam dos meios de produção – ainda que aos
capitalistas dissesse o contrário: impedir a expropriaçãoii.
De fato, a assombrosa pobreza de linguagem do ex-sargento de polícia
deve muito ao empobrecimento geral do vocabulário da política, também à
esquerda.
Na falta de requisitos como forma e senso de limite, não há a menor
perspectiva de discussão esclarecida. Pois se se tratasse de debate
republicano ou qualquer instituição iluminista, “o que ele tem para
falar” talvez nem chegasse à consciência e buscasse outras soluções, não
racionais, como um sintoma, um tique nervoso, mas jamais a expressão
articulada. “O que ele tem para falar” só teria lugar no divã de um
analista ou em convescotes subterrâneos com seus camaradas, jamais na
esfera pública que se quer democrática. O que chamam, mesmo os que o
desprezam, “ouvir a opinião de Bolsonaro”, que em pesquisa recente
atinge 20% de intenções de voto entre os mais escolarizados, é permitir
que se escoe a água mole do elogio da tortura, do estupro e do
extermínio, sobre cabeças não tão duras assim, é permitir a
relativização de máximas universais e a consideração de mil casos
particulares em que cabe o assassinato, avulso ou de massa: em vista do
momento, de certos grupos, em vista disso, daquilo – no fim de tudo
chamado, conforme a expressão local e grosseira de seu fascismo, de bandidos…
Por que então não houve mais manifestações como as de Willys, que
solitariamente reagiu ao que no entanto deveria ter feito tremer boa
parte daquele coletivo? Cuspir não seria a única reação possível –o
corpo poderia exprimir, espontaneamente, sua repulsa de várias formas:
gritando, desmaiando, vomitando, abandonando a sala, se enrugando numa
careta. Em suma, haveria muitas maneiras, e, claro, também cuspindo, não
necessariamente no deputado – alguém já o fazia –, mas no chão. Por que
não cuspiram todos no chão em sinal de repulsa e em defesa da
humanidade? Sim, o corpo poderia exprimir, só ele, na sua inteligência
própria, formada ao custo de inúmeras lutas e perigos, que antecedem a
própria história humana. O corpo tem memória – sim, ele tem, ele deve
ter! Em quantos braços ali a linha dos pelos se eriçou? Em quantos dos
presentes o pulso cardíaco se acelerou? Se fossem gambás, teriam
certamente desprendido um cheiro ruim, que isolasse o agressor. Como já
disse, não é possível saber pelas imagens se soou um sinal de alerta
mais geral na Câmara. Mas o fato é que se buscou mais tarde advertir e
punir o único que reagiu, mediante a sentença, tão cara, mas tão cara,
aliás, ao espírito do capitalismo de forma geral e, na versão última,
neoliberal, reduzida à única máxima geral que entre os homens da cidade
ainda faria sentido: isso não é profissional – não é assim que se
age com colegas, isso fere o decoro parlamentar, eles estavam em
ambiente de trabalho e outras patacoadas. Quando era de supor que a
Câmara devesse pertencer a uma esfera mais alta e mais livre de negócios
e interesses humanos que o mundo do trabalho… Buscou se salvar por uma
particularíssima ética o que afrontava o âmbito mais amplo da moral e da
dignidade humana. O “profissional” só pôde entrar no lugar do humano
por uma dessensibilização pelo sofrimento para o qual qual acenava a
palavra nefanda – nessa dessensibilização, ou descolamento do corpo vivo, toda razoabilidade é rematada burrice e tão cega como criaturas de um olho sóiii.
A sensibilidade para as dores alheias o filósofo Schopenhauer
chamaria de compaixão, a propensão em diminuir o sofrimento do outro, a
qual, apesar de seu pessimismo, ele considerava universal. Mas a
compaixão como ato moral puro se revelaria especialmente no momento em
que um corpo, em movimento espontâneo, sai em auxílio de alguém que vê
sofrer ou está em perigo. Trata-se de “uma participação imediata, sem
nenhum pensamento de fundo, em princípio nas dores do outro e em seguida
na supressão desse mal”, o que supõe por um momento “que seja destruída
a diferença entre mim e o outro”. Mais inimigo da piedade era para ele
não o egoísmo, que tinha por um afeto antimoral embora humano, mas o
sadismo, que chamava de crueldade, o interesse e o prazer no sofrimento
alheio e mesmo em sua produção – interesse que considerava “diabólico”, e
não mais humano. Por isso, apesar de emprestar da moral cristã alguns
termos, era uma oração de antigos hindus a que mais admirava: “Não sei
de oração mais bela que aquela de que os antigos hindus se servem para
fechar seus espetáculos (…). Eles dizem: ‘Possa tudo o que tem vida ser
libertado do sofrimento!’iv.
É inequívoca a base somática da virtude que elege como anterior à
justiça, a qual é tanto mais verdadeira quanto mais provém daquela. Por
razões semelhantes é que Eduardo Pavlovski, grande dramaturgo argentino,
psicanalista de formação e nome de referência do psicodrama na América
Latina, escreveu num de seus artigos na imprensa: “A cumplicidade civil é
um conglomerado de corpos imóveis e aterrados. Quando falo de corpos me
refiro a um regime de afecção, ao regime de conexão com outros corpos”v.
No centro de muitas de suas peças e reflexões está o problema, muito
reichiano, aliás (sua fonte teórica mais citada a esse respeito, porém, é
Deleuze), do fascismo como uma forma de relação com o mundo e com o
homem, de uma atitude diante da vida, para ele plenamente endossada pelo
neoliberalismo: é essa a atitude do médico de Potestad, que vistoriava, com frieza profissional e a serviço do governo ditatorial, o estado clínico de recém-torturadosvi.
Não se trata em princípio de um homen cruel, mas antes de um patético e
atribulado pai de família. Um homem banal – “O mal é banal”, como se
espantou Hannah Arendt na análise que fez de Eichman, que, submetido,
durante o processo de seu julgamento em Jerusalém, a diversas perícias
com equipes de psicólogos e psiquiatras, foi julgado “normal”. Seria
preciso então, diz ela, questionar esse conceito de normalidade.
São normais afinal os que não acodem quando se grita socorro, não
desmaiam, não se enrugam, não se contraem num espasmo, mas apenas
assistem impassíveis, quando não filmam, o espetáculo do sofrimento do
outro se desenrolando diante dos seus olhos e ao vivo, ou tranquilamente
jogam futebol ao lado de um corpo desovado na praia durante a
madrugada? A atonia somática, que parece aumentar à proporção do
incremento de estímulos e choques da mais variada natureza, inclusive
midiática, precisaria ser investigada, mas em conexão com a barbárie já
própria a uma sociedade de origem escravista, que criou condições
especialmente propícias para a formação de indivíduos sádicos,
perfeitamente frios, ao menos quando se trata de certa “classe” de
gente. Quantos olhos não se envisgaram e pararam, absortos no espetáculo
oferecido diariamente pelos nossos pelourinhos? – mas a compaixão, diz
Schopenhauer, não reconhece classe (nem mesmo espécie). Ela é uma
capacidade natural de retratibilidade como uma acusação mimética da dor
do outro, seguida de uma ação com vista a impedi-la, mesmo que se corram
riscos. Mais enigmáticos ainda que os que, tomados de fúria irracional,
lincham – são os que assistem ao linchamento.
Numa entrevista à TV Câmara do Rio, sob a complacente escuta do
jornalista, que tinha começado a conversa com Bolsonaro avisando se
tratar de um “querido amigo”, o ex-policial afirmava, depois de dizer
que um colega parlamentar deveria ser submetido ao pau-de-arara: “Você
sabe que defendo a tortura…”. O programa está tranquila e espantosamente
disponível na internet, e não devem ter chovido críticas e mensagens
furiosas – não devem ter se viralizado – o suficiente para fazer
que seu diretor e a emissora o retirassem com um devido “mea culpa” e o
próprio entrevistado voltasse a colocar o rabo entre as pernas, pois não
seria tempo de fazê-lo passear à luz do dia. Mas este tempo, passado ou
futuro, chegou, e multiplicam-se as hipóteses e versões para isso ter
acontecido – o mais importante de tudo é que ele chegou, não percamos
isto de vista em nenhum momento nem adiemos mais essa constatação.
Aquilo que jamais deveria ter acontecido aconteceu. Quanto à emissão (de
2009), vê-la é penetrar numa zona que toda civilização que merecesse
esse nome deveria tratar como santuário, acessível a poucos e apenas
mediante certas provas –porque também o horrendo precisa de santuários:
“Não vai falar de ditadura militar aqui. Só desapareceram 282. A
maioria marginais, assaltantes de bancos, sequestradores. (…) E fazemos
um trabalho que a ditadura ainda não fez: matamos uns 30.000, começando
com o FHC (…). Se vão morrer alguns inocentes, tudo bem”. Talvez o mais
grave de tudo seja: parte da multidão não se importa e outra parte está
entusiasmada (“ele é muito querido”, como disse esta semana o diretor do
Clube Hebraica do Rio de Janeiro). Enunciados de conteúdo tão grave
podem ser proferidos antes mesmo que o candidato seja eleito, ou a
“batalha” comece. O governo de Bolsonaro provavelmente seria muito mais…
do mesmo. Como ele já avisou, terão mais pulso firme em fazer que só um
lado da batalha vá para o cemitério, como se isso já não fosse o mais
comum… “O que falta neste Brasil, Sr. Presidente? Falta um Presidente da
República que assuma, que diga o seguinte: ‘Em combate, soldado meu vivo não senta em banco de réu’. E ponto final. Estamos em combate!”vii. A escala em que o horror ocorre ainda não é suficiente…
Mas deixemos o entrevistado de lado, e contemplemos mais, já que nos é
tão facilmente acessível, aqueles que o olham e ouvem, impassíveis, ou
quase. Essa complacência – ela talvez seja mais assombrosa. A partir de
que momento ela começou a existir? A partir de que momento se começou a
defender publicamente a tortura, prática no entanto jamais extinta entre
nós, da senzala à periferia, presídios e morros, e irradiada para
corpos de outras classes em períodos de exceção mais generalizada?viii A sua defesa pública e continuada, nem sempre seguida de tremores e contemporizada por muitos (oh, ele é polêmico, chega a ser engraçado!),
me parece inédita no país e pertence, ao mesmo tempo, a um contexto
mais amplo, em que a justificativa de sua prática começou há muito a
tomar espaço. A propósito da invasão do plenário da Assembleia Nacional
em novembro de 2016 por 40 pessoas exigindo a volta da ditadura militar,
bem foi lembrado que não se tratava de mera opiniãox. É verdade, sob a capa de “opinião” e, eu acrescentaria também, liberdade de imprensa,
o mais bárbaro vem à tona na dita esfera pública, se replica e
viraliza, com risadinhas nervosas ou não, condescendentes ou não, de
quem lhe deu toda a corda pra falar, com toda a “liberdade”. Com esta
palavra, muitas vezes se amordaça aquele que diz “basta, não suporto
mais, piedade, senhores, piedade! Meus ouvidos e meus olhos não suportam
tanto estímulo letal! Vocês não têm o direito que imaginam ter, a liberdade de me matar um pouco a cada dia”.
Dando costas quentes para o criminoso e o cúmplice na incitação ao
crime, ela garante que circule a última mercadoria de um mercado
exausto, que alimentou de todas as formas e imagens que pôde a fome de
mortex.
Escutar um louco com sede de tortura e acenando com um futuro em que
poderia ser presidente – sentimos um frisson, a morte de raspão, talvez
no vizinho – consegue ser ainda mais emocionante do que assistir ao
elogio ou a franca incitação ao crime, à tortura e ao linchamento da
parte de alguns jornalistas ou âncoras. Trafegando numa zona entre
política, policial e midiática, ela constitui valor de uso para o
telespectador, acrescido, assim, de mais-emoção – o enunciado de um
provável presidenciável acalentando crimes contra a humanidade! Dêem-me o
voto, e vocês verão. Por enquanto, nos excitamos, acumulamos sensações.
Uma brisa passa, o leite se enruga numa nata – muitos não se enrugam,
não se retraem, não parecem afetados pela descarga de forças mortíferas
a seu lado. Estamos diariamente submetidos ao nefando, olhando o que
jamais deve ser olhado sem nenhuma proteção, como o rosto de Medusa, que
nos deveria petrificar, e continuamos –mas só deus sabe de que forma é
que estamos continuando. De que forma afinal estamos continuando? Isso só é possível com partes vitais queimadas.
Conforme um juízo que Bolsonaro exprimiu em 2014: “A única coisa boa
do Maranhão é o presídio de Pedrinhas”. Não está em jogo apenas um
pronunciamento “polêmico”, adjetivo, aliás, com que o ex-sargento é
frequentemente apresentado em programas televisivos e radiofônicos, como
se se tratasse de uma “diferença” a mais no mercado identitário: há os
gays, os negros, as mulheres etc. e os excêntricos hostis a gays,
mulheres e negros. De novo, chamá-lo de “polêmico” é nos deixar
engambelar pelo uso inapropriado, embora provavelmente não ingênuo, de
um vocabulário iluminista, pelo qual se trataria de apenas “uma opinião”
entre outras, a ser ouvida, apesar de horrenda. Na verdade, não estamos
apenas diante de um de juízo de gosto, opinião ou qualquer outro termo
que se poderia retirar de um vocabulário tão decrépito como o do mundo
que este secundava e estertora. No enunciado conforme o qual o melhor de
um Estado – aliás, dos mais pobres do país – é o lugar onde rolam
cabeças dos que não tiveram lugar nele, há desejo e projeto, pois mal se oculta
que o melhor que se poderia fazer ao Maranhão é transformar Pedrinhas
em totem e princípio de organização de toda a sociedade, o que aliás já
está em andamento. Mas o edifício de uma verdadeira nação precisará de
muito mais pedrinhas… O melhor não é o que se pode apontar para a vida
da sociedade, mas o que se pode propor de morte – assim como alguns
pastores neopentecostais preferem falar mais em Satã que em Deus – ,
separando-se o vasto joio de um trigo cada vez mais restrito. Para o
joio imprestável se retira a universalidade dos direitos, cuja lei que
os determina já vai sendo modificada a toque de caixa e em muitas
madrugadas de modo que esta não venha rigorosamente a prometer mais
nada. O que está sendo pavimentado é o caminho para a política meramente
como extermínio, pois, acredita-se, depois de todos os indesejáveis
terem sido abolidos, depois de os violentos (e não importa se sob essa categoria se “subsumem” também inúmeros pobres ladrões de galinha) terem sido violentados até a morte pelas milícias e grupos informais semelhantes a Einsatzgruppen e tribunais de exceção e, claro, pela polícia, a vida
então poderá começar. Para isso, deixe-se, aliás, que a polícia, ainda
mais desumanizada pelas condições de trabalho e formação, aja a seu
bel-prazer, sem precisar de ordens de cima, como em parte já ocorre,
autônoma ou anárquica, “pró-ativa”, pois há muito trabalho pela frente.
Realizado o desejo de que uma chacina como a de Amazonas ou Roraima
ocorra a cada semana, como um ex-secretário nacional de juventude confessou recentemente, então começaremos a respirarxi.
—
i O que o uso do aposto e seguida confirma plenamente: “O alcance do aposto invocado por Bolsonaro não se limita ao passado. Como não tem marcado um tempo verbal, seu sentido alcança o presente. ‘O pavor de Dilma Rousseff’ pode ser, em tese, um pavor ainda existente. Nesse ponto, o aposto pode soar como intimidação física — no presente” (Eugenio Bucci, http://oglobo.globo.com/brasil/artigo-tortura-que-permanece-por-eugenio-bucci-19256811#ixzz4aIpscvlA
i O que o uso do aposto e seguida confirma plenamente: “O alcance do aposto invocado por Bolsonaro não se limita ao passado. Como não tem marcado um tempo verbal, seu sentido alcança o presente. ‘O pavor de Dilma Rousseff’ pode ser, em tese, um pavor ainda existente. Nesse ponto, o aposto pode soar como intimidação física — no presente” (Eugenio Bucci, http://oglobo.globo.com/brasil/artigo-tortura-que-permanece-por-eugenio-bucci-19256811#ixzz4aIpscvlA
ii Cf. Wilhelm Reich, Psicologia de massas do fascismo (trad. Maria da Graça Macedo), São Paulo, Martins Fontes, 2015, p. 33. Mas
um dos aspectos mais importantes do fascismo para Reich é que não se
tratava de um movimento exclusivamente reacionário, e sim “de um
amálgama de sentimentos de revolta e ideias sociais reacionárias”, uma
compreensão que pode ser útil para pensar a situação brasileira atual,
que coloca a difícil tarefa para a esquerda de desvincular conteúdos
regressivos e sentimentos de revolta, apropriando-se destes. Reich,
embora tenha criticado bastante o partido comunista alemão pela
não-compreensão das mudanças operadas no trabalhador (inclusive com o
que colegas seus chamariam depois de “indústria cultural”), concordava,
no entanto, com o diagnóstico do partido conforme o qual “a desilusão
com a social-democracia, aliada à contradição entre a miséria econômica e
uma maneira de pensar conservadora, leva ao fascismo se não houver
organizações revolucionárias” (op. cit., pp.VIII e 63). Minha
impressão é que, além das diferenças que comporta com o contexto alemão
dos anos 30, a situação brasileira atual é mais graduada ou mesmo mais
intrincada: como estamos cansados de saber, a decepção sobretudo da
parte de setores da classe média com a manutenção de velhas práticas de
clientelismo e corrupção durante o governo petista foi um elemento
potencial de revolta, embora não o único, que a direita explorou e fez
crescer, especialmente quando já se faziam sentir os efeitos da crise
econômica, estes mais decisivos, ao que parece, para desiludir parcelas
do”povão”. Parte dos que se revoltaram com a esquerda, porém, parecem
entrar em outra etapa. Aí a figura supostamente neutra de Bolsonaro
pode crescer, como o “homem que não tem parte com nada disso” (a
corrupção à esquerda e à direita), não porque seja um perfil técnico ou
gestor, mas porque seja o “homem moral”, mais interessado em “fazer
justiça” que em fazer dinheiro.
iii Como já advertiram Adorno e Horkheimer em Dialética do esclarecimento e, antes deles, Wilhelm Reich, na obra já referida.
iv Le fondement de la morale (Trad. Auguste Burdeau). Librairie Genérale Française, 1991 (e-book, 340,9 / 454).
v “Teatro, derechos y micropolítica”, in Cultura y política em el capitalismo. Buenos Aires, Topia Editorial, 2006, p.43.
vi Vim a conhecer esse autor pela empolgante montagem de Potestad
que fizeram, em 2015, Pedro Mantovani e Celso Frateschi. A escolha da
peça fora motivada, como explicaram o diretor e atriz argentina, Laura
Brauer, pelas passeatas organizadas por movimentos de direita contra o
governo Dilma.
vii
Fala em 7/08/2016 a propósito da tramitação na Câmara Federal da Lei
5768-2016, de autoria de Espiridião Amin, para mudança de artigo no
código penal militar de 1969 relativo a crimes dolosos de militares
contra civis em tempos de paz. O deputado Ivan Valente, um dos poucos
presentes na sessão durante a madrugada e que votou contra o projeto,
disse em certa altura que se estava concedendo “uma espécie de licença
para matar” (http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2090691).
viii Como
bem lembrou o amigo e sociólogo Henrique Monteiro numa correspondência
sobre o presente texto e que reproduzo com sua autorização: “Desde o
início da década passada – pelo menos, para não falar do Homo Sacer, do
Agamben – que as boas cabeças acenderam o sinal de alerta. Coisas de
que eu me lembrei: o Zizek tentando levar a sério o famoso artigo da Newsweek,
“Time to think about torture”, o qual sugeria a tortura para evitar
novos 11-9; a Judith Butler refletindo sobre Guantánamo e o fato de a
Guerra do Iraque não ter gerado a resistência de massa e a repulsa moral
da Guerra do Vietnã; o Didier Fassin mostrando como a nova “razão
humanitária” do imperialismo contemporâneo sanciona de fato uma divisão
da humanidade em dois e por aí afora. A condição de possibilidade dos
Bolsonaros da vida deve ter a ver com esse aprofundamento das divisões
entre “gente” e “sub-gente” que se reproduzem nos mais diversos
contextos. No Brasil, um bom pesquisador da questão social, Gabriel
Feltran, levantou recentemente (ao menos alguém me contou), a hipótese
da situação aqui desembocar numa dinâmica genocida parecida com a de
Ruanda, por exemplo. Conforme as “clivagens” se alinham, as distâncias
sociais aumentam, as desigualdades se naturalizam… vai saber. Para
completar, lembrei do Sale Boulot, do Paulo Arantes, que aponta,
guiado pelas pesquisas do Cristophe Dejours, como a fascistização da
sociedade contemporânea se enraíza na recentralização negativa do
trabalho promovida pela fase atual do capitalismo, com a exploração
planejada das fragilidades e defesas sociais que ela gera”.
x “Não
nos enganemos. Essas pessoas que estão a vociferar por mais um golpe de
Estado não estão ‘expressando uma opinião’. Clamar por golpe militar
não é uma opinião. É um crime, o pior de todos os crimes em uma
democracia” (Vladimir Safatle, Folha de São Paulo, 18/11/2016).
xi Precisaríamos voltar a Videologias, de Maria Rita Kehl e Eugenio Bucci.
xii Não, o verbo confessar não é apropriado, pois supõe conflito moral prévio e estrutura ao menos dúplice.
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