“Reforma” do ensino médio de Temer pode basear-se em Bernard de
Mandeville. Era este filósofo, inspirador de Adam Smith e Friedrich
Hayek, que propunha apartar os pobres dos desejos — e limitá-los a sua
“missão”
Por José Ruy Lozano
“O
conhecimento não só amplia como multiplica nossos desejos. Portanto, o
bem-estar e a felicidade de todo Estado ou Reino requerem que o
conhecimento dos trabalhadores pobres fique confinado dentro dos limites
de suas ocupações e jamais se estenda (…) além daquilo que se relaciona
com sua missão. Quanto mais um pastor, um arador ou qualquer outro
camponês souber sobre o mundo e sobre o que lhe é alheio ao seu trabalho
e emprego, menos capaz será de suportar as fadigas e as dificuldades de
sua vida com alegria e contentamento. ”
As palavras acima foram extraídas de um tratado de filosofia moral do século XVIII, o célebre A fábula das abelhas – vícios privados, benefícios públicos,
de Bernard de Mandeville (1670-1733). Inspiração de Adam Smith e de
toda uma geração de filósofos e economistas de linhagem liberal, suas
afirmações a respeito da educação revelam de forma cruel o que os
abastados daquele momento histórico pensavam sobre o papel da escola na
formação das novas gerações. Aos filhos das classes trabalhadoras, o
estritamente necessário ao trabalho. Disciplinas sem utilidade prática
devem ser descartadas (afinal, multiplicam desejos!), a não ser para os
rebentos mais ricos, os que hão de dirigir a nação e executar as funções
mais elevadas da sociedade.
A
lembrança de Mandeville torna-se urgente no momento em que é aprovada a
reforma do ensino médio proposta pelo governo federal, que tanto
enfatiza pretensos desejos e necessidades do jovem brasileiro. Os
discursos em sua defesa destacam a aproximação entre escolaridade e vida
prática, o diálogo com “o mundo real” e, por fim, com o mercado de
trabalho – dada a especial proeminência que o ensino técnico adquiriria a
partir de agora. Ao que parece, os estudantes não se sentem
representados por esse discurso. Sentiram no ar as ideias da fábula das
abelhas e ocuparam escolas públicas em diversos estados brasileiros, num
movimento contrário a tal tipo de mudanças.
Não
há de se negar que percursos formativos diversificados sejam
bem-vindos, o que demonstra a experiência da maioria dos países com os
currículos de nível médio. Também é impossível se desconsiderar os
números que atestam a virtual falência do segmento no Brasil: resultados
insuficientes na aquisição de competências básicas em leitura e
matemática, e evasão escolar de aproximadamente 50% dos ingressantes.
Se os indicadores impressionam, a solução nem tanto.
Primeiro,
porque não é nova. Entre as décadas de 1940 e 80, o ensino médio
brasileiro já foi organizado por áreas de concentração. Enquanto vigorou
a “Reforma Capanema” (referência a Gustavo Capanema, Ministro da
Educação de Getúlio Vargas), o chamado curso colegial tinha as
modalidades clássico (humanista), científico (ênfase à matemática e às
ciências naturais), normal (para formação de professores) e técnico.
Depois, as escolas passaram a dividir suas turmas em áreas de exatas,
humanas e biológicas, e mesmo os vestibulares eram seccionados dessa
forma – os mais velhos devem se lembrar de Cescem (para medicina e áreas
afins), Cescea (economia e administração) e Mapofei (sigla formada
pelas iniciais de três escolas de engenharia, Mauá, Politécnica e Fei).
Se assim foi um dia, por que a divisão de modalidades não continuou? Os
custos crescentes e a carência de professores em áreas técnicas foram
sepultando-a lentamente. Poderemos refazer esse caminho com todas as
restrições orçamentárias impostas pela PEC 241?
Segundo,
porque o pressuposto da livre escolha de percursos diferentes pelos
estudantes não se confirma. Ao chegar ao ensino médio, o jovem da escola
pública carrega defasagens de conteúdo de anos anteriores e esperanças
cerceadas por sua experiência social e familiar. A suposta liberdade de
decidir caminhos encontra-se restrita pelas circunstâncias de vida do
estudante, premido por necessidades e carências. Nesse sentido, muitos
poderão ser levados a optar pelo ensino técnico, na expectativa de
entrar rapidamente no mercado de trabalho, descartando a possibilidade
do ensino superior e, com ela, de superação de desníveis sociais mais
profundos. Também deve ser considerada uma bem provável fuga de áreas
voltadas à ciência e à matemática, dadas as notórias dificuldades e a
falta de base que apresentam ante elas, provenientes do ensino
fundamental.
Logo,
alguns cursos universitários seriam – ainda mais – redutos dos filhos
das famílias ricas ou de classe média. O risco que corremos, como país, é
o de perpetuar a desigualdade social por meio da educação básica,
cumprindo inadvertida e tragicamente as recomendações de Mandeville: às
crianças pobres, o estritamente necessário. Sim, os estudantes que
ocuparam as escolas no ano passado entenderam tudo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário