O sangue ainda manchava a areia onde tinha ocorrido a execução. As pedras e o muro testemunhavam as marcas da violência e na Polis não se falava de outra coisa. “Ela fizera por merecer”, diziam os cidadãos, como que desculpando-se da ignomínia, “a lei determina e nossos valores condenam, ela sabia.”
Foi
quando veio a notícia de que entre os que atiraram as pedras havia pelo
menos seis cidadãos que praticaram o mesmo ignóbil ato. Justo eles, que
ergueram as pedras com mais raiva, gritando xingamentos e bradando loas
às nossas leis e tradições. A reprovação dos olhares sérios – pelo
menos assim parecia naquele momento – seguia-os quando foram levados à
frente de todos.
Havia, no
entanto, algo estranho. Os cidadãos se encontravam e se cumprimentavam
respeitosamente, no entanto, em seus recônditos pensamentos repetiam
como um mantra: “não me olhe assim, eu sei que tu também o fizeste,
denuncia-me que te denuncio…”
E um
denunciou o outro, que denunciou o próximo que reagiu denunciando os
demais, até que quase todos estavam denunciados pelos denunciadores, que
foram denunciados. Os magistrados, bem… os magistrados se punham
solenes ao proferirem as sentenças e a declamarem os valores sobre os
quais se fundou a gen que formou um dia nossa Polis, da vergonha, do profano e do sagrado… até que foram denunciados.
A noite que
antecedeu o dia trágico correu calada. Nem o vento nas colinas próximas
se mostrou confiante para dizer algo. As estrelas no oco do firmamento
apenas olhavam incrédulas. A lua se ausentou…
Logo pela manhã os cidadãos começaram a chegar na Ágora, rostos severos, cenhos tensos. Os gritos e as falas incompreensíveis, os ataques, as pedras… Na ástey
se ouvia tudo como um tumulto distante. Não se compreendia as palavras,
era como um alvoroço de pássaros pegos em um incêndio, uma… barbárie.
As pedras
voavam agudas até que encontravam rostos e crânios. O sangue jorrava, os
gritos foram sucedidos por gemidos, murmúrios. Até que… silêncio. Um
silêncio como nunca se ouvira. Os corpos jaziam retorcidos e as mãos
como garras portavam dedos acusadores que apontavam em todas as
direções.
Todos… cidadãos, prítanes, magistrados… arcontes epônimos, temostelas… e mesmo o arconte polemarco que deveria por função cuidar dos mortos, ali encontrava-se junto aos cadáveres. Todos… todos! Não sobrara ninguém!
A Polis estava vazia, tomada pelo cheiro ferroso de sangue e excrementos… ninguém!
Os honrados
cidadãos da Polis tinham todos se digladiado uns aos outros e não
sobrara mais nenhum dos seus membros. Restaram vivos apenas aqueles que
não pertenciam à Polis: as crianças, as mulheres, os camponeses pobres da khora, os estrangeiros e os escravos; que se reuniram, enterraram os mortos, fizeram novas leis, e governaram a si mesmos.
Na Acrópole hoje
se ergue um único monumento. Não aos deuses, nem aos magistrados, muito
menos aos reis, mas àquilo que livrou a cidade de todos eles:. uma
única e enorme… pedra.
***
Mauro Iasi é
professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do
NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e
membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
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