A razão em transe
por Fernando Horta
Há mais de 400 anos fundava-se a chamada “ciência moderna”. O nome
pomposo nada mais significa que um método para conhecer as coisas que
buscava se afastar das formas medievais de construção das verdades. Na
“ciência moderna” o intelecto humano tomava parte, mas não sozinho. Era
necessário que o intelecto tivesse “amarras”, “ferramentas” no que se
sustentar. Reconhecia-se que a mente pouco consegue diferenciar
imaginação de realidade. O autoconvencimento é, enfim, entendido como o
maior problema do ato de “conhecer”. Crianças, por exemplo, levam alguns
anos para perceberem que são diferentes do mundo externo. A bem da
verdade, nos dias de hoje, uma quantidade impressionante de pessoas
parece não ter atingido ainda esta percepção. Continuam acreditando que o
mundo é tanto quanto sua crença diz que é. Sem ferramentas apropriadas a
realidade é somente o que a mim parece. Nada mais.
Esta perigosa crença não é nem medieval. Na Idade Média existia um
componente moral muito forte no conhecimento. Este componente,
entretanto, era delimitado e definido por pessoas que tinham um
conhecimento muito mais apurado do que a média da população. Hoje,
estamos desconstruindo o conhecimento baseado na teoria do “eu acho”. Eu
me convenço das coisas buscando o menor caminho entre a realidade e o
que “eu acho”. Normalmente este menor caminho são memes, falsas
informações e a negação da própria realidade.
Se eu me convenço de que A é corrupto, eu vou à realidade buscar
apenas as informações que corroborem com a minha tese. Por menores e
mais estranhas que sejam. Não há a preocupação de questionar-se, não há o
interesse em exercitar uma humildade sadia: “Será que o mundo, as
coisas, são, realmente, como eu penso que são?” O caminho para “provar” a
minha verdade é assim:
Se A é corrupto, então A enriqueceu. Mas as evidências mostram que A não enriqueceu.
O racional seria, diante de uma resposta negativa para uma pergunta
que eu faço ao mundo, eu questiono minha teoria. Talvez, apenas talvez, A
não seja corrupto. É isto que se faz há 400 anos. É isto que o mundo, e
o Brasil parece ter esquecido.
Diante da dor de perceber que a realidade não é como eu quero que
seja, eu nego a realidade. De forma irracional e ilógica mesmo.
Se A é corrupto, e eu não consigo provar que A enriqueceu, então A
esconde o fruto de sua corrupção. Logo A deve provar que não esconde.
Veja que o delírio irracional não submete A à prova da riqueza – que
já foi descartada no primeiro questionamento. Não se trata de perguntar a
A se ele tem riqueza. Trata-se de exigir que ele prove que não está
escondendo. Mas como fazer prova negativa? Como eu provo que não
escondo? Como eu provo que não sei? Como eu provo que não tive? Se ao
fazer a prova eu apenas fortaleço a irracionalidade de quem me acusa?
Se desnudarmos A e nada encontrarmos, tanto mais claro fica que A
está escondendo, já que eu não encontrei em A o que tenho certeza. O
efeito da ocultação de A é o mesmo efeito de A não ter o que eu acho que
A tem.
A, portanto, não tem; e pode não ter por realmente não ter, ou pode
não ter por estar ocultando. A razão me diz para seguir o primeiro: se
eu não acho em A o que penso que ele tem, meu pensamento está errado. A
irracionalidade trilha o segundo caminho. Se eu não acho em A o que eu
penso que ele tem, A é um ocultador magistral.
Dizendo de outra forma, se o mundo não é exata e tão somente o que eu
penso que ele seja, errado está o mundo. Esta irracionalidade bebe de
um narcisismo intelectual que acredita que eu conheço o mundo e o faço
de forma inquestionável. Para me manter neste caminho eu tenho que negar
tudo e todos que, de alguma forma, conhecem e enxergam diferente. Eu
tenho que retirar deles o direito mesmo de conhecer ou, ao menos, sua
vontade de questionar.
O Brasil vive esta distopia. Em todos os campos, foram criados
mecanismos de irracionalidade que se apoiam no sentimento psicológico do
egocentrismo narcisista. Eu sou tal que conheço, a despeito dos outros,
das evidências e das teorias em contrário. Eu tenho esta capacidade
inata de conhecer perfeitamente.
Isto estanca o sentimento de inferioridade de quem efetivamente não
conhece, através da desqualificação daquele que conhece. Isto é chamado
de anti-intelectualismo. Como quem não conhece é, normalmente, maior em
número do que quem conhece, o argumento da maioria entra em jogo. Tudo
vira opinião, e se toda opinião tem o mesmo valor o número de opiniões
define a realidade.
Conhecer passa a ser um defeito se for crítico. É preciso calar os
críticos. É preciso conter os que conhecem, negar-lhes legitimidade.
“Conhecem? Não! Usam um “falso conhecer” com o objetivo (político) de me
convencer de que o meu conhecimento é errado”. Quando o conhecer é
submisso, então ele é benéfico, ele é bom. Quando o conhecer serve para
reforçar o que eu já penso sobre a realidade, este conhecer reforça o
meu ego, chancela o que eu digo sobre o mundo. Logo, ele é um
conhecimento cheio de virtudes.
Não é à toa que os primeiros atos do governo Temer foram atacar a
ciência, a educação e os professores. Todos. O conhecimento virou uma
mercadoria de pouco valor, e que pode ser substituída por qualquer
outra, ao gosto de quem detém o poder econômico. A educação virou um
trabalho dos mais desimportantes, quase marginalizado. Seus
trabalhadores estão sendo tratados como mão de obra descartável.
O efeito disto é que um presidente pode mudar a vida das pessoas sem
nenhuma legitimidade eleitoral, porque memes dizem “que não foi ‘gópi’”.
O efeito disto é que um congresso pode se dar anistia de dívidas e,
ao mesmo tempo, prejudicar milhões de trabalhadores, porque a mídia diz
“que isto será bom para você”.
O efeito disto é que um tribunal superior pode dizer qualquer coisa
diferente da Constituição porque, afinal, o tribunal diz-se acima do
pacto político que criou a própria Constituição.
O efeito disto é que um indivíduo gravado, filmado, rastreado
cometendo crimes, tem a cada de pau de vir à público dizer que é tudo
falso. Que aquela realidade inexiste. Que é tudo política.
E a maioria da nós, que perdeu a capacidade de se questionar, porque
haveria agora de questionar o (vice)presidente? A maioria de nós, ao
defender a irracionalidade para si, já perdeu a capacidade de criticar.
Estamos em transe, estamos mudos, estamos perdido
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