A
contra-reforma trabalhista está levando os economistas de mercado expor
de maneira rude seu papel de guarda-costas de uma minoria parasitária.
Que mitos eles defendem. Por que tais ideias não se sustentam
Por Isabela Prado Callegari
Há
uma semana o país passou pela sua maior greve em 30 anos, a primeira
greve geral contra as reformas trabalhista e previdenciária1. Em consulta popular feita pelo Senado, mais de 95% dos votantes se mostraram contra a reforma trabalhista2,
bem como 80% reprovam a lei da terceirização plena, 93% são contra o
aumento da idade para aposentadoria, e a popularidade de Michel Temer
beira os 5%3.
Não é de se espantar tamanha rejeição, uma vez que as propostas
recentes têm sido tão abjetas, que parece que os capitalistas
brasileiros esqueceram que a sobrevivência do próprio capitalismo
depende dos trabalhadores. No entanto, aqueles que insistem em defender
as reformas se valem de alguns espantalhos da legislação, de antigas
falácias e do discurso de terra arrasada para justificar uma retirada
absurda de direitos, cujo único objetivo real é exacerbar a concentração
de riqueza no topo da pirâmide. Para alguns economistas, a opinião da
população deve ser desconsiderada, sob a alegação de que ela não tem a expertise necessária para entender as reformas. Isto é, os 96,3%4
das pessoas ocupadas, que não são empresárias, e que terão seus
direitos subtraídos e sua vida profundamente alterada, têm sua voz e sua
luta ridicularizadas a priori.
Por
outro lado, a grande maioria dos economistas renomados, defensores das
reformas, nunca teve que se preocupar com coisas menores como
subsistência e geralmente detém participações e investimentos polpudos
em empresas e fundos, um conflito de interesses que deveria colocar
sempre sob suspeita suas opiniões. No entanto, tais economistas têm
espaços garantidos na grande mídia para desfilarem seu suposto
conhecimento isento em prol da retirada de direitos alheios. Foi o que fez essa semana, para o Globo, o ex-presidente do Banco Central, Gustavo Franco5, em artigo que termina com uma pérola ditatorial: “nenhuma
boquinha terminou no Brasil sem certa dose de esperneio e gás
lacrimogêneo. A sexta-feira que passou foi dedicada a isso. Vida que
segue”.
Apesar de ter sido bastante visceral em sua fala, os economistas
ortodoxos, como Franco, em geral são mais afeitos à impessoalidade
calculista e à representação matemática da realidade, por poderem usar
números que melhor lhes convêm, permanecendo sob o véu da “isenção matemática”. Por isso, gostaria de expor aqui alguns números.
Enquanto
Franco nos lembra que a Justiça do Trabalho teve um custo de R$ 9,1
bilhões em 2015, gostaria de lembrar que a mesma Justiça do Trabalho
viabilizou aos trabalhadores o pagamento de mais de R$ 33 bilhões no
biênio 2014/2015 em créditos trabalhistas6.
Não houvesse Justiça do Trabalho, os mesmos R$ 33 bilhões permaneceriam
sendo lucro do empregador e os trabalhadores jamais veriam esse
dinheiro. A mesma Justiça do Trabalho também resgatou R$5 bilhões de
reais para os cofres públicos no mesmo biênio, a título de custas e
contribuições previdenciárias, cuja sonegação recorrente de grandes
empresas é um dos motivos do alegado rombo da previdência. É óbvio que a
Justiça do Trabalho, como todo o Judiciário, é oneroso em seus altos
escalões e ninguém está dizendo que o tema não deva ser discutido.
Acontece que isso não é nem um arremedo de argumento para justificar a
extinção do papel da Justiça do Trabalho, muito menos em um país que tem
por ano, aproximadamente 700 mil acidentes de trabalho (subnotificados)7, que nos últimos 20 anos resgatou mais de 50 mil pessoas em condições análogas à escravidão8 e cujas empresas acumulam R$ 426 bilhões somente em dívidas previdenciárias9.
Mito da flexibilização, modernização e aumento de empregos
É
imperativo desmistificar a ideia tão alardeada de que os empregadores
passarão a contratar mais trabalhadores se não estiverem obrigados a
pagar direitos trabalhistas. Na verdade, o processo não parte da
diminuição de custos para chegar ao aumento da produção, e sim o
inverso. O empregador precisa de empregados para produzir e responder a
determinada demanda; e se esforçará para pagar o mínimo àqueles
empregados, dentro das regras do jogo (ou pagando alguns deputados para mudarem as regras do jogo..).
Por acaso temos atualmente uma taxa de desemprego sistematicamente
maior ou uma produção sistematicamente menor por termos leis mais
humanas do que na época da escravidão? É absurdo que tenhamos que fazer
esse exercício retórico, mas parece que algumas pessoas ainda acreditam
nesse argumento surreal. É óbvio que trabalhadores são contratados de
acordo com a necessidade da produção, sendo que a não existência de
direitos trabalhistas garante inclusive que o empregador tenha uma
margem de manobra maior para aumentar a jornada dos trabalhadores já contratados, sem pagar a mais por isso, antes de pensar em contratar mais gente.
O
fato de a mão-de-obra se tornar mais barata para o patrão não vai gerar
mais empregos por pelo menos três motivos lógicos, que se respaldam em
diversas evidências históricas: 1) Por que seriam contratados mais
trabalhadores, mesmo que a um custo menor, se não houvesse para quem
vender o aumento de produção? 2) Se os trabalhadores tiverem seus
salários diminuídos, e uma rotatividade e insegurança maior em seus
empregos, eles diminuirão seu consumo, aumentarão o endividamento e a
inadimplência. Isso afeta diretamente a demanda. Ou seja, de imediato,
as certezas que se colocam com essa reforma estrutural são: (i) a
precarização, instabilidade e destruição de direitos por um longo prazo,
(ii) o aumento de horas trabalhadas e de condições degradantes, (iii) o
aumento de lucro de 3% da população economicamente ativa, que é
empregadora; e (iv) opção pela diminuição de salário real ou, na melhor
das hipóteses, a estabilidade do salário real.
Outra falácia comum da ortodoxia é de que a maior flexibilidade, como a implementação do “contrato de zero horas”
(no qual o trabalhador é permanentemente contratado como temporário),
facilitaria o ajuste ao aumento ou diminuição da produção. Sim, o sonho
de todo o empregador é poder mandar um whatsapp
para o empregado, para que este se materialize, com sua força de
trabalho, sempre que convocado. Ninguém considera nesse cenário a
instabilidade brutal a que estarão sujeitos os mais pobres, já
precarizados, e a total devoção que os trabalhadores terão de ter daqui
para frente para atender aos diversos chamados dessincronizados dos seus
múltiplos empregos. Ou melhor, isso foi sim considerado. Para não
prejudicar os patrões,
o empregado poderá pagar multa caso não consiga comparecer ao trabalho,
seja por qual motivo for. Realmente, a confiança dos empresários estará
garantida, já a do trabalhador, quem se importa? Sempre há uma fila de
precarizados à disposição e o importante é que estaremos deixando o “mercado se auto-ajustar com eficiência”.
Nenhum desses mitos é novo e são inúmeros os estudos, inclusive do
insuspeito FMI, que demonstram sua incoerência e inveracidade.
Movimentações no sentido da flexibilização já foram implementadas no
país nos anos 1990, sob a mesma retórica, provocando aumento do
desemprego e da desigualdade. A taxa de rotatividade no Brasil é de 46%,
uma das mais altas do mundo, e o salário no ano passado registrou
patamares menores do que na China, desmistificando também a ideia de que
a legislação impede o ajuste do mercado e de que os salários são altos10.
No
âmbito das propostas dos ruralistas à reforma, os absurdos conseguem
atingir proporção ainda mais dantesca. O presidente da bancada
ruralista, Nilson Leitão (PSDB), propôs na Câmara dos Deputados, sem
constrangimento algum, que trabalhadores rurais (14% da população ativa11)
possam receber moradia e alimento em vez de salários; que possam
trabalhar por 12 horas por dia (no campo!), e por 18 dias seguidos, sem
folga, dentre outras crueldades. Vamos explicitar a lógica dessas
pessoas, que convivem no mesmo espaço-tempo que nós: alegam que as leis
são atrasadas, mas almejam modernizá-las para o século XVII; se existe um alto grau de informalidade, em vez de ampliar a formalidade, como vinha sendo feito12,
desejam institucionalizar a falta de direitos para todos; se temos
muitos processos trabalhistas, extinguimos a Justiça do Trabalho; se
temos todos os anos resgate de pessoas dormindo em tapumes, sem receber
salários, submetidas a jornadas exaustivas e pedindo restos de comida13, a solução é submeter um projeto de lei legalizando o trabalho escravo.
O mito do imposto sindical
Deixo como referência o texto de Jorge Souto Maior14,
juiz do trabalho, para o aprofundamento em detalhe das demais
atrocidades da reforma, mas creio que é necessário aqui discutir um
último mito, que foi o principal artifício para atacar a greve do dia
28. Trata-se do Imposto ou Contribuição Sindical. Gustavo Franco, em seu
artigo já mencionado, ignora ou finge ignorar todos os profundos e
reais retrocessos que a reforma impõe aos trabalhadores. Alega que a
greve foi articulada para garantir a “boquinha” dos sindicatos e por isso era normal haver “esperneio e gás lacrimogêneo“. A
desonestidade intelectual fica explícita de cara, uma vez que a greve
geral foi convocada em 27 de março, e a proposta de acabar com o imposto
sindical só foi incluída no parecer do relator Rogério Marinho em 12 de
abril15.
O argumento é ainda mais risível, uma vez que a CUT e o Ministério
Público do Trabalho, participantes ativos da greve geral, são
historicamente contra o Imposto Sindical16.
Mesmo porque as grandes centrais não são dependentes dessa fonte de
financiamento, assim como não o são as grandes confederações patronais
(FIESP, CNI, CNA, FIRJAN, CNC). E por isso podem defender de peito
aberto o fim da contribuição sindical e da contribuição patronal17.
Para a FIESP, por exemplo, o valor da contribuição patronal representa
apenas 10% do seu orçamento, pois na verdade, as confederações
sobrevivem de um desvio de recursos públicos muito maior, por meio do
“Sistema S” (SESC, SENAI, SENAC, SENAT etc.). Enquanto as contribuições
sindicais equivalem a R$ 2,1 bilhões ao ano, as patronais equivalem a R$
934 milhões, e as receitas do “Sistema S”, a R$16 bilhões18.
Ainda
à luz desses dados, o fim das contribuições, sindical e patronal, gerou
mais tensões dentro da base do próprio governo do que na motivação das
pessoas que foram às ruas contra as reformas. O presidente da Fiesp,
Paulo Skaf, a princípio colocou contrário a perder esses milhões por ano
e solicitou almoço com o relator Rogério Marinho para discutir o tema19.
Em seguida calculou que seria melhor defender o fim do imposto sindical
para difamar a greve e continuar sobrevivendo de recursos do “Sistema
S”. Ronaldo Nogueira (PTB), atual ministro do trabalho, também se viu
traído pela medida, uma vez que R$ 582 milhões da contribuição vão para o
Ministério do Trabalho. Por fim, o impacto da extinção desse imposto
irá inviabilizar diversas entidades sindicais menores e, caso as
reformas passem, não se sabe se o efeito disso será ainda mais
catastrófico, em um cenário de prevalência do negociado sobre o
legislado. Fato é que a greve não teve
de forma alguma como principal reivindicação a permanência do imposto
sindical, mas sim a permanência de direitos básicos, que estão sendo
retirados noite e dia a canetadas por um governo ilegítimo.
Alguns outros números relevantes
296 é o número de deputados20
que votaram a favor de uma “reforma” que irá modificar a vida de
milhões de trabalhadores. Três é o número de exonerações que Temer
promoveu como retaliação aos deputados que votaram contra21, pois é assim que um patrão negocia. 153 é o número de emendas redigidas por lobistas patronais que foram aceitas na reforma22.
Zero é o número de emendas escritas por trabalhadores. Centenas de
milhares de reais é o que empresas devedoras doaram às campanhas dos
deputados para que eles fizessem uma reforma trabalhista. Dois foi o
número de vezes que Rodrigo Maia permitiu que votassem o caráter de
urgência dessa “reforma”, até que conseguissem. 844 foi o número total
de emendas apresentadas, que irão mudar a vida dos mais pobres e que
foram votadas sem transparência nem diálogo, em menos de uma semana23.
21 é o número de trabalhadores que foram resgatados essa semana em
Goiás, trabalhando 14 horas por dia, dormindo no chão, sem água, sem
energia, com salários atrasados em mais de dois meses, e pedindo sobras
de carne nos açougues e comida para os vizinhos24. De cada dez pessoas resgatadas em trabalho escravo, nove são terceirizadas25. Ao menos dez pessoas que não eram “sindicalistas defendendo uma boquinha”,
foram gravemente feridas exercendo seu direito de manifestação no RJ.
Uma bomba de gás foi jogada no rosto de um estudante, que estava saindo
da manifestação26. Uma bala de borracha acertou o olho do filho de um Policial Militar, que pode perder a visão27. 21 pontos no pescoço levou uma bibliotecária atingida por uma bala de raspão28.
178 países assinaram convenção internacional que classifica gás
lacrimogêneo como arma química, mas ele pode ser usado em manifestações29.
Com 14 anos começou a trabalhar o estudante, que estava se dispersando
da manifestação em Goiás, quando foi atingido com um golpe na cabeça por
um capitão da PM.
Com
certeza, Gustavo Franco nunca teve que passar por agressões da PM
exercendo seu direito de se manifestar. Ele, assim como Temer, Rogério
Marinho, Henrique Meirelles, Skaf, e todos esses personagens, sabem
muito bem o jogo de forças que sempre esteve posto, e que está se
acirrando a cada dia, o jogo dos poderosos, que já nascem com suas boquinhas
garantidas e sempre querem ganhar mais, contra os trabalhadores, que
sempre tem que lutar pela sobrevivência e para não perder direitos. Não
podemos admitir é que os trabalhadores caiam em uma retórica, retrógrada
até para os padrões de um século atrás, de que não é possível conciliar
direitos e vida digna para os trabalhadores com emprego para todos. Uma
retórica tortuosa e desonesta que sempre insinua que garantir a
dignidade dos mais vulneráveis e tratar o trabalhador como
hipossuficiente perante a lei é trata-lo como “coitadinho“, enquanto
permitir que a desigualdade e precariedade assole o país é tratar o
trabalhador com dignidade. Nesse contexto, mais alguns números para o
debate. Nenhuma classe dominante jamais abriu mão de seus privilégios
por vontade própria e nenhum direito trabalhista foi conquistado por
abaixo assinado. A sexta-feira que passou foi dedicada a isso. Luta que
segue.
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