Norbert Elias se
destaca entre os modernos clássicos das ciências sociais por não recusar
a investigação sobre o caráter das sociedades. É o que ele faz,
brilhantemente, no seu derradeiro livro, Os Alemães, publicado
em 1989, um ano antes de morrer, já nonagenário. Ali ele se pergunta,
diretamente e sem rodeios, o que fez com que a Alemanha estivesse no
coração das grandes tragédias modernas, a Primeira, a Segunda Guerra
Mundial e o Holocausto.
Tinha condições subjetivas para tanto: viveu uma experiência dolorosa
como soldado na Primeira Guerra Mundial; judeu, teve de se exilar da
Alemanha durante o nazismo; sua mãe foi trucidada em Auschwitz. Norbert
Elias tinha também credenciais intelectuais para tentar explicar como a
nação que sintetizou a era das Luzes, a pátria de Kant, Hegel e Goethe,
tenha desenvolvido a indústria do extermínio: estudou medicina e
psicanálise, doutorou-se em filosofia e foi professor de sociologia na
Inglaterra.
Para ele, o desenvolvimento tardio do capitalismo na Alemanha, a
ausência de uma revolução burguesa no país, a unificação nacional sob o
tacão militar de Bismarck, o culto à organização, do qual o militarismo é
o emblema mais ostensivo – tudo isso criou um caráter alemão. Esse
caráter distingue a sociedade germânica de todas as outras, mesmo as
europeias. Para Elias, não são apenas circunstâncias históricas que
explicam o surgimento de Adolf Hitler. Isso é uma meia-verdade. As
ideias monomaníacas que engendraram a bestialidade fascista talvez não
tivessem acolhida sem a existência prévia do caráter alemão, nos termos
definidos por Norbert Elias.
Os cientistas sociais costumam recuar ante tal tipo de análise. Têm
receio de serem julgados preconceituosos. E, talvez, de se virem
excluídos da interlocução com a ciência social alemã, uma das mais
brilhantes fontes do pensamento filosófico-social em todos os tempos.
Mas é por um caminho “norbertiano” que pretendo investigar o caráter
brasileiro. Penso que o peculiar modo nacional de livrar-se de
problemas, ou de falsificá-los, constitui o famoso jeitinho brasileiro.
Os clássicos do pensamento social brasileiro têm dificuldade em lidar
com a questão do caráter nacional, que amalgama o subjetivo e o
objetivo. Salvo, evidentemente, Gilberto Freyre. Mas o autor de Casa Grande & Senzala mascarou
a sua investigação com a nostalgia de um tempo que nunca existiu, e com
o enaltecimento da suposta – e ilusória – capacidade da metrópole
lusitana em se adaptar aos trópicos coloniais.
Por isso, ele enxergou no Nordeste açucareiro, a primeira região
importante na formação do Brasil – que o historiador Evaldo Cabral de
Mello definiu como“açucarocrata” –, uma dominação “doce”. O sociólogo de
Apipucos construiu uma hipótese que serve de justificativa ideológica
da sociedade decorrente da escravidão. A sua interpretação é, ela
própria, uma das vertentes do jeitinho brasileiro.
Sérgio Buarque de Holanda enfrentou melhor a questão. O seu “homem
cordial” – para quem as relações pessoais e de afeto (para o bem ou para
o mal) se sobrepõem à impessoalidade da lei e à norma social – é a
própria encarnação do jeitinho brasileiro.
Caio Prado Júnior não ofereceu nenhuma contribuição sobre o assunto.
Embora o seu marxismo fosse criativo e original, ele ficou prisioneiro
da objetividade, o mantra que impediu gerações de marxistas, aqui e
alhures, de investigar o caráter das nações.
Antonio Candido, nosso clássico moderno, tratou do tema em “Dialética da malandragem”, o poderoso ensaio sobre Memórias de um Sargento de Milícias,
romance de Manuel Antônio de Almeida que se passa no Rio de meados do
século XIX. Ainda que se aproxime decididamente do jeitinho, faltou ao
ensaio, a meu ver, um pouco de irreverência, para que ele correspondesse
à ginga do malandro carioca. Candido respeita tanto o brasileiro pobre
que aborda as figuras populares com uma reverência quase mística. Para
ele, nossa sociedade é tão obscenamente desigual que qualquer crítica às
classes dominadas não passa de preconceito – mais um – dos ricos.
Outros autores, como Roberto DaMatta, vão diretamente à problemática do caráter nacional. É o que ele faz em Carnavais, Malandros e Heróis.
Não é pela vertente de DaMatta, contudo, que pretendo chegar lá. Busco
desenvolver uma investida mais nitidamente materialista, mesmo sabendo
que o abandono da investigação antropológica possa implicar
empobrecimento da análise.
Eis a tese: o jeitinho é um atributo das classes dominantes brasileiras que se transmitiu às classes dominadas.
Conforme Marx e Engels de A Ideologia Alemã, as ideias e os
hábitos das classes dominantes transformam-se em hegemonia e caráter
nacional. No Brasil, a classe dominante burlou de maneira permanente e
recorrente as leis vigentes, sacadas a fórceps de outros quadros
históricos. O drible constante nas soluções formais propicia a arrancada
rumo à informalidade generalizada. E se transforma, ao longo da
perpétua formação e deformação nacionais, em predicado dos dominados.
Essa situação, que é social, se configura no malandro, o especialista
no logro e na trapaça. O malandro, com sua modernidade truncada, foi
primeiro o carioca. E esse carioca era geralmente pobre, mas não
miserável. Como não poderia deixar de ser, era mulato: esgueirava-se por
entre as classes e os estratos mais abastados, no típico – e falso –
congraçamento de classes herdado do escravismo.
Tinha “bossa” quem dominava a aptidão para fugir ou escapar das
soluções formais. Bossa que é a expressão do jeitinho, a maneira de
ganhar a vida sem se submeter aos ditames da norma, de conviver sem ser
reconhecido como fora da lei. A moderna música popular brasileira,
nascida no Rio, com toda razão foi chamada de bossa nova. Ela foi um
jeitinho de escapar das convenções musicais à la Vicente Celestino,
cópia falsa do grande canto lírico italiano. E também um jeitinho de
incorporar as malandragens do samba – de origem africana e escrava – ao
universo das elites.
A burla das classes dominantes
brasileiras às normas seria atávica? Meu horror à burguesia (esse sim
quase totalmente atávico) – cujo retrato acabado foi a açucarocracia
pernambucana, perdulária e arrogante – tenderia a confirmar que o
jeitinho é um caso de mau-caratismo, um dado subjetivo. Mas prefiro a
trilha aberta por Norbert Elias: a burla é uma forma de adotar o
capitalismo como solução incompleta na periferia do sistema. Incompleta
porque o capitalismo trouxe para cá a revolução das forças produtivas,
mas não as soluções formais da civilidade. As classes dominantes então
“se viram”, dão um jeitinho para garantir a coesão de um sistema troncho
e, comme il faut, a exploração.
Sem querer atribuir tudo aos nossos colonizadores, a semente do
jeitinho já vicejava na irresolução que Portugal dá às questões de
administração e governo da jovem – e enorme – colônia. Não dispondo nem
de homens nem de recursos capazes da façanha de fazer a minúscula cobra
engolir o enorme elefante, Portugal opta pela solução capenga das
capitanias hereditárias. Na mesma época, tendo criado um novo caminho
para o Oriente com Vasco da Gama, dom Manuel, o Venturoso, emprega até o
fim os modestos recursos portugueses na conquista da Índia, e só
consegue estabelecer relações comerciais em pontos isolados do sul do
continente.
No Brasil, as capitanias são entregues a fidalgos, alguns com
recursos ínfimos e a maioria quase sem nenhum capital. O resultado da
colonização pelo método das capitanias foi pífio, à exceção de duas ou
três. O fracasso na Índia é do mesmo porte, senão maior: Lisboa torna-se
a meca das especiarias orientais, mas Portugal nunca ocupou a Índia.
Sequer conseguiu com que a língua portuguesa tivesse peso expressivo
entre as centenas de dialetos do país. A lembrança lusa mais forte ficou
restrita a Goa e Macau.
Voltemos ao caso do Rio, lembrado a
propósito da malandragem e da bossa nova. Foi Juscelino Kubitschek,
outro exemplar do homem cordial, quem jogou a pá de cal nas pretensões
modernas do Rio: retirou-lhe a centralidade de capital e não botou nada
no lugar. Incapaz de resolver os problemas cariocas, que já se
apresentavam em grau superlativo, deu um jeitinho e transferiu a capital
para Brasília, nos ermos do Planalto Central.
Espanta-se quem anda hoje pelas ruas da cidade que antigamente
ostentava sua modernidade: o Rio ficou a cara do Brasil. A despeito do
oba-oba em torno do renascimento carioca, basta observar ao redor do
Palácio do Catete, antiga residência dos presidentes da República. O
bairro que se oferece à vista exibe mediocridade urbana, pobreza
ostensiva e tráfico de crack.
A fantasia da mulher carioca, linda e elegante (e que de fato
disputava o topo da beleza com mulheres de outras nacionalidades, com a
vantagem da miscigenação), deu lugar à imagem de mulheres – e homens –
que andam com sandálias surradas e se vestem pobremente. Como não
perceber aí sinais de uma modernidade truncada?
No caso de Juscelino e das classes dominantes, a mudança da capital
foi um “jeitão” para deslocar um problema: criar uma nova fronteira para
a expansão capitalista, catapultada pela indústria da construção civil.
O jeitinho foi fazer isso por meio dos candangos, trabalhadores
informais, depois abandonados à própria sorte, “sem lenço e sem
documento”, como cantaria Caetano Veloso, ele próprio, conforme a
análise de Roberto Schwarz, um cultor do jeitinho transformado em
“verdade tropical”. O Brasil é assim, defende Caetano, a esquerda é que
não o entende.
Na segunda metade do século XIX, o
café liderava a expansão econômica. Não só no Vale do Paraíba, em São
Paulo ou mesmo no Brasil: o café era a mercadoria mais importante do
comércio mundial. Só foi desbancado dessa posição, pelo petróleo, nos
anos 40 do século XX. Mas o início da expansão do café se deu sobre o
lombo dos escravos.
Qual foi o jeitão da classe dominante, no caso os cafeicultores, a
partir do fim do escravismo, em 1888? Em vez de incorporar os
ex-escravos à cidadania, fornecendo-lhes meios de cultivar a terra e se
incorporarem ao trabalho regular, foram importar a mão de obra europeia,
transformando São Paulo na maior cidade italiana do mundo.
Malandramente, cheios de bossa, contornaram os problemas do fim do
escravismo e se desresponsabilizaram pelos ex-escravos, de novo, como
cantaria Caetano, pessoas “sem lenço e sem documento”.
Surgia o trabalho informal, quer dizer, sem formas. O jeitão da
classe dominante obrigou os dominados a se virarem por meio do jeitinho
do trabalho ambulante, dos camelôs que vendem churrasquinho de gato como
almoço, das empregadas domésticas a bombarem de Minas e do Nordeste
para as novas casas burguesas dos jardins Europa, América, Paulistano. E
também para os apartamentos das elegantes – e já medíocres – madames de
Copacabana, Ipanema e Leblon, propiciando o vexame bem brasileiro de
criados negros, vestidos a rigor, servindo suco de maracujá a demoiselles que se abanavam como se estivessem nos salões parisienses.
Lá em cima, no Pernambuco açucarocrata, Gilberto Freyre podia criar então a nossa versão de E o Vento Levou. Casa Grande & Senzala
é a mais formidável denúncia do estupro como formador da nacionalidade,
mas visto de um ângulo nostálgico. Ainda não era o tempo das madames e demoiselles, mas o dos sinhôs e das sinhás e sinhazinhas.
O mais clássico dos clássicos do pensamento social brasileiro –
Antonio Candido, nossa referência moral e intelectual, considera Casa Grande & Senzala o
livro mais importante das ciências sociais brasileiras – é também um
pastiche. Sob determinado aspecto, ele é quase um deboche do jeitão de
irresolução do problema da mão de obra e do seu rebaixamento às relações
“adocicadas” – aquelas em que o filho do senhor transforma o negrinho,
companheiro de travessuras, em cavalo vivo. Eis aí a lembrança mais
festejada da infância dos senhores. Pais e mães da Casa Grande ensinavam
aos filhos o jeitinho doce de ensinar e se divertir ensinando. Os
filhos dos negros, por sua vez, aprendiam quem estaria sempre por cima,
docemente…
Getúlio Vargas, o estancieiro gaúcho
que liderou a Revolução de 1930, tentou formalizar o jeitinho para
acabar com o jeitão. Vale dizer: buscou civilizar a classe dominante
para que o proletariado existisse. Criou uma legislação trabalhista
avançada, mas a expansão capitalista seguiu desobedecendo as regras e,
junto com os empregos formalizados pela nova legislação, a avalanche do
trabalho informal engolfava todas as relações sociais.
A informalidade é a forma, o jeitinho de substituir as relações
racionais e obrigatórias pela intimidade, como já demonstrou Sérgio
Buarque. Mas essa substituição, assim que se apresenta o primeiro
conflito, mostra sua outra face: a informalidade se converte no rigor
mais severo, no apelo à arbitrariedade e não raro em exibições de
crueldade. O senhor de engenho que se deitava com sua mucama era o mesmo
que a castigava no tronco quando alguma falta, suposta ou verdadeira,
lhe ofendia a propriedade.
Diga-se logo, para não nos autocaricaturarmos com nosso eterno “complexo de vira-lata” (apud Nelson
Rodrigues), que Thomas Jefferson, o grande paladino da liberdade,
também estuprava suas escravas. A diferença, essencial para distinguir o
jeitinho de outras práticas de dominação, é que Jefferson deu o seu
nome à sua descendência negra, coisa que nenhum dos nossos senhores de
engenho chegou a fazer.
Em Pernambuco mesmo, as fábricas da Paulista, que chegaram a ser o
maior complexo industrial têxtil da América Latina, eram propriedade dos
Lundgren. E o membro da família que tocava a fábrica era um sueco que
se deitou com 300 das suas operárias. Ele deixou uma prole enorme, mas
não há notícia de pobres com sobrenome Lundgren. No máximo, na falta de
sobrenome, davam-se aos negros escravos nomes de santos católicos. Daí a
proliferação de sobrenomes “dos Santos” e de toda a corte católica dos
altares.
Antes de Sérgio Buarque, Machado de Assis, ele mesmo um mulato, portanto conhecedor do truque do jeitinho, fez com que Dom Casmurro
seja até hoje o retrato mais notável da classe dominante brasileira:
“Por fora, bela viola, por dentro pão bolorento”, como se diz no
popular. Bentinho é liberal por fora e escravista por dentro. Machado
usou um jeitinho literário para legar um formidável enigma, ao qual já
se dedicaram milhares de páginas: Capitu traiu mesmo ou foi vítima de
uma vituperação de classe? Maria Capitolina, a Capitu, era mais pobre
que o seu marido liberal, Bentinho. E, com seus “olhos de ressaca”,
provavelmente tinha sangue negro.
Nascido inicialmente das contradições entre uma ordem liberal formal e
uma realidade escravista, o jeitinho transformou-se em código geral de
sociabilidade.
Recordo um caso pessoal, passado há
muito tempo. Eu trabalhava com Celso Furtado (rigorosamente
antijeitinho), que recebia um diretor do Banco Interamericano de
Desenvolvimento, por sinal conterrâneo seu. Este, vendo-me por perto, e
julgando que eu não era parte da conversa, pediu-me água. Pediu a
primeira, a segunda e a terceira vez. Fui obrigado a dizer-lhe que não
confundisse gentileza com servilismo, e que da próxima vez ele mesmo se
servisse. Não ocorria àquele senhor que alguém que não fosse da sua grei
pudesse tomar parte de uma conversa com altos representantes da banca
interamericana.
A origem do jeitinho, assim como a da cordialidade teorizada por
Sérgio Buarque, se explica pela incompletude das relações mercantis
capitalistas. Parece sempre que as pessoas estão “sobrando”. Elas são
como que resquícios de relações não mercantis, não cabem no universo da
civilidade. E às pessoas que sobram pode ser pedido qualquer coisa, já
que é obrigação do dominado servir ao dominante.
Qualquer reunião brasileira está cheia de batidinhas nas costas na
hora do cumprimento, impondo logo de saída uma intimidade que é
intimatória e intimidatória. Um dos cumprimentos mais característicos de
Luiz Inácio Lula da Silva, por exemplo, é bater com as costas da mão na
barriga dos interlocutores. Mesmo em encontros formais, o primeiro
gesto de Lula ao se aproximar de qualquer pessoa é tocar-lhe a barriga.
A matriz desses gestos encontra-se evidentemente no longo período
escravagista. Nele, o corpo dos negros era propriedade, podia ser tocado
e usado. O surpreendente é que esses gestos e costumes tenham
persistido ao longo de 100 anos de vigência de um capitalismo pleno.
O escravismo e a escravidão não explicam inteiramente a “longa
duração” da informalidade generalizada e dos hábitos que a acompanham.
Os Estados Unidos tiveram um sistema escravista que chegou até a
organizar fazendas de criação de negros. A ruptura com o escravismo
custou à nação norte-americana uma guerra civil que deixou marcas até
hoje. Mas o jeitinho não foi o expediente que usaram para superar os
problemas colocados pelo capitalismo que avançava.
Aqui, o jeitinho das classes dominantes se impôs na abolição da
escravatura. Primeiro veio a Lei do Ventre Livre: garotos e garotas
negros eram libertados em meio à escravidão. Mas como inexistia a
perspectiva de terem terra, emprego ou salário, a libertação não lhes
servia para quase nada.
Depois veio a Lei dos Sexagenários. Aos 60 anos, os negros que ainda
estivessem vivos eram libertados. Ora, já se sabia que a vida média de
um escravo não alcançava os 40 anos. Como mostrou Luiz Felipe de
Alencastro em O Trato dos Viventes, depois de décadas
de labuta no eito, o consumo do trabalho pelo capital não era uma
metáfora: o negro era um molambo de gente, e não um homem livre, mesmo
quando libertado pela Lei dos Sexagenários.
O que parecia cautela e previsão era, na verdade, o jeitinho (e o
jeitão) em movimento. Gradualmente, até a chamada Lei Áurea, a
escravidão persistiu. Isso criou uma superpopulação trabalhadora que o
sistema produtivo não tinha como incorporar. Com a industrialização, tão
sonhada pelos modernos, o problema se agravou. Tendo que copiar uma
industrialização de matriz exógena, que tende sempre à economia do
trabalho, os excedentes populacionais cresceram exponencialmente.
Assim, o chamado trabalho informal
tornou-se estrutural no capitalismo brasileiro. É ele que regula a taxa
de salários, e não as normas trabalhistas fundadas por Vargas. A partir
daí todas as burlas são permitidas e estimuladas. A pergunta que um
candidato a emprego mais ouve é: com carteira ou sem carteira? O
funcionário com carteira resulta em descontos para a Previdência. Ou, se
o salário for um pouquinho melhor, até para o Imposto de Renda. A
resposta do candidato ao emprego é óbvia: sem carteira.
Quando o trabalhador ou trabalhadora que tem consciência dos seus
direitos recusam o emprego sem carteira, às vezes escuta “malandro, não
quer trabalhar”.
Em qualquer setor, em qualquer atividade, o jeitinho se impõe. O
executivo de terno italiano de grife, o apresentador da televisão e a
atriz de um musical não são assalariados. São pessoas jurídicas, PJs,
unicamente para que empresas paguem menos impostos. Advogados, dentistas
e prestadores de serviços oferecem seus préstimos com ou sem recibo, e
esse último é mais barato. Bancários, telefonistas, vendedores e outras
tantas categorias viram suas profissões periclitar: eles são agora
atendentes de call centers, terceirizados por grandes empresas.
O jeitinho é a regra não escrita, sem existência legal, mas seguida
ao pé da letra nas relações micro e macrossociais. Está tão
estabelecido, é tão natural que estranhá-lo (hoje menos do que ontem,
reconheça-se) pode ser entendido como pedantismo, arrogância ou
ignorância: “Nego metido a besta”, é a sentença. A não resolução da
questão do trabalho, o seu estatuto social, é no fundo a matriz do
jeitinho. Simpático, ele é uma das maiores marcas do moderno atraso
brasileiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário