seg, 15/05/2017 - 11:14
15 de maio de 2017, Bruno Lima Rocha
Introdução
Neste texto, aponto três perspectivas complementares: a primeira
aponta tanto o excesso de confiança nas instituições republicanas por
parte do governo deposto assim como a complexidade que é preparar um
contra-golpe ou uma antecipação de hipóteses de interferência
estrangeira no país; na segunda, realizo uma analogia com o derradeiro
momento de Salvador Allende e como as mesmas ilusões aqui encontradas
estavam presentes no 11 de setembro da América Latina; na terceira, uma
cronologia do crescimento desta linha chilena, com a versão viralatista
dos herdeiros dos Chicago Boys do século XXI. Vamos ao debate, há muito a
fazer.
A complexidade da antecipação e um conceito de alerta permanente
Há cerca de duas semanas, em debate coletivo através de aplicativos
de celular, um amigo meu, o professor de Relações Internacionais Diego
Pautasso, colocou um tema de fundo que me fez refletir: "estamos de
acordo com a caracterização do golpe e da incidência de interesses
externos em algumas instituições brasileiras. Mas, saliento que não é
algo banal perceber estas movimentações e menos ainda antecipar
possibilidades de contragolpe".
Diego e eu debatemos muito e ocupamos posições distintas dentro do
pensamento à esquerda no Brasil. Mas, como ainda modestamente não sou
adepto da pós-verdade, de imediato dei-lhe razão e me pus a pensar.
Concordo integralmente, não é algo banal antever este contragolpe e,
logo, por tabela, tal antecipação permanente toma vulto de uma dimensão
estratégica.
Na 2a feira, dia 08 de maio, em plena São Borja/RS, tive a alegria de
fazer a aula magna do curso de ciência política-ciências sociais da
Unipampa e o mesmo tema me foi apresentado pelo professor Edson
Paniágua, coordenador deste curso onde fui tão bem recebido. De novo
assumi esta razão e de imediato, no calor do debate, amarrei um
construto.
"A coesão interna de um país com potencialidades de projeção
internacional é proporcional à capacidade deste mesmo país enfrentar
ameaças externas, tanto de forma direta como de forma indireta".
Na sequência, aí sim, avancei em minhas posições decoloniais: "O
problema na América Latina e no Brasil é ainda mais profundo, pois não
há sequer identificação do andar de cima com seu próprio povo e, logo, o
inverso também é - ou deveria ser, e deveríamos incidir para que fosse -
verdadeiro. A projeção autônoma do país passa por um profundo
antagonismo sociocultural e radicalização dos instrumentos democráticos –
como através de plebiscitos e referendos -, pois a luta interna reflete
interesses externos e vice-versa”.
O 11 de setembro da América Latina e o problema da antecipação
A lenda que corre em torno da derrubada de Pinochet seria dos
diálogos em pleno Palácio de la Moneda, quando da manhã de 11 de
setembro de 1973. Magistralmente narrado no filme "Allende" (direção de
Miguel Littin, 2014), o mandatário chileno gritava desesperado: "Onde
está Pinochet, onde está Pinochet?!"; até que um de seus assessores lhe
disse: "presidente, Pinochet comanda as forças golpistas". Mais à
frente, no desenrolar daquele dia maldito, outro assessor afirma
"presidente, até Pablo Neruda - poeta e diplomata filiado ao Partido
Comunista de Chile, de linha pró-soviética - estava dizendo nos últimos
dias que Míguel Enríquez - histórico líder do MIR chileno, representante
da esquerda mais radicalizada - tem razão". Silêncio de Salvador
Allende, culminando com outra mensagem: "Enríquez manda dizer que os
Cordões Industriais e o bairro La Victoria ainda estão de pé, aguardando
suas ordens e o reforço logístico".
Naquela semana mesmo, segundo o economista Paulo Timm, residente em
Santiago no período, assistente dos maiores economistas na Universidade
Nacional de Chile, houve o seguinte encontro: “Isto me foi relatado por
Pedro Vuskovic, Ministro do Planejamento de Allende. Poucos dias antes
do golpe o presidente Allende teria chamado os partidos que o apoiavam,
de sobremaneira Partido Comunista de Chile e Partido Socialista, este
último até mais radical no discurso, e informou da iminência do golpe,
dando-lhes carta branca para uma ação revolucionária, que ele, como
Presidente constitucional, jamais tomaria. Os Partidos nada fizeram...
As razões já conhecemos: A acomodação no aparelho de Estado que leva à
burocratização política”.
Allende morreu como um autêntico patriota latino-americano, mas não
havia plano de contingência ou contra golpe para além da "confiança nas
instituições oligárquicas e burguesas". Delegar a partidos políticos a
liderança de um contra golpe que necessitava de uma legalidade
constitucional para garantir a legitimidade, também teve efeitos
nefastos. Em uma situação como esta, apenas Salvador Allende poderia
convocar a resistência completa, assim como Jango no Brasil em 1961 e em
1964. Dito e feito.
O presidente eleito do Chile foi ainda mais confiante nas
instituições. Allende sequer ouviu as antecipações nada alarmistas do G2
- a inteligência cubana - que lhe recomendou formalizar um dispositivo
permanente de 2000 efetivos, da Guarda Técnica, com 24 horas em
revezamento. A Guarda Técnica - de escolta presidencial e lealdade
ideológica - não chegava nem a 50 pessoas. Dito e feito novamente. A
confusão entre teoria e ideologia é permanente, mas a hermenêutica da
política é mais dura. Ao não fazer perguntas-chave cujas respostas, caso
levadas a sério, vão implicar em mudanças de perspectivas que possam
vir a comprometer o projeto político original, ou a posição dos atores
individuais em condição de protagonismo ou liderança, a cegueira ou a
tática do avestruz termina por ser evocada.
Independente da orientação política de um governo minimamente
reformista na América Latina, sua obrigação é - ou deveria ser -
antecipar movimentos dos inimigos (internos e externos) e contar com a
possibilidade de que pode haver virada de mesa. Se a modalidade atual é o
emprego de Lawfare e o arranjo midiático quase suicida, isso implica em
operar com as condições existentes, tomando as ameaças da continuidade
democrática como um fato possível e até mesmo provável. Em nosso
Continente, a única constância é instabilidade institucional e a eterna
presença da projeção de poder da Superpotência, em distintas versões da
Doutrina Monroe, Big Stick, Segurança Hemisférica, Diálogos do Sul,
Comando Sul, novas vertentes da Escola das Américas (agora mais focada
em enlaces civis) e a eterna subserviência e perspectiva ideológica do
viralatismo brasileiro.
A herança maldita e o avançar dos Chicago Boys viralatistas no século XXI
Em 2015 o segundo governo Dilma Rousseff descia ladeira abaixo, mas
ainda não havia o engajamento explícito de federações empresariais na
aventura política do golpe. E, na contramão das poucas políticas ousadas
do lulismo, havia - e há - um profundo mal estar do andar de cima com
as ações afirmativas e tímidas políticas de reconhecimento. A simples
existência de secretarias especiais com status de ministério e o
transferir dos temas das identidades sociopolíticas para nossa
antropofagia tropical - por mais equivocada e confusa que sejam as
linhas acadêmicas e políticas que vêm dos países do norte - já criava
celeuma suficiente para as posições estáticas do póscolonialismo
duplamente colonizado (pela herança colonial e o presente viralatista).
Na primeira década do século XXI, a revolta de elite contra as cotas
étnico-raciais-sociais nas universidades públicas massificou a nova
direita na base do recalque. Eis a materialidade do 'racismo de classe'
precisamente explicado pelo professor Jessé Souza em suas obras mais
recentes. Esta mesma nova direita, veio sendo bombeada através de
eventos "pioneiros" como o Fórum da Liberdade (realizado em Porto Alegre
desde 1988) e as levas de jovens ultraliberais que iam fazer curso de
"formação" nos eventos de verão em Washington D.C. da Atlas Network e
financiados pela fundação dos irmãos Koch (já escrevi centenas de linhas
a respeito, incluindo nesta publicação).
Hábeis nas redes sociais e arrivistas pela própria natureza
inescrupulosa e acumulativa do capital financeiro (costumo dizer que a
financeirização assassinou o que restava da moral e ética protestante no
seio do capitalismo nascente), as criaturas advindas dos institutos e think tanks
neoliberais, os jovens ainda mais jovens egressos da juventude
recém-formada, portadores de diploma universitário e nenhuma vivência no
concreto e asfalto, plantaram a metástase ao retornarem dos EUA
proliferando "cursos de lideranças". Desta bolha nasceu o MBL, maior
expoente da nova direita cibernética, assim como grupos concorrentes.
Faltava a orquestração.
O processo crescente de "venezuelização" a partir do segundo turno de
2014 ganhava contornos de conspiração sem sincronia, como são todas as
conspirações complexas. Antes do início de março de 1964, havia núcleos
de conspiração e a rede do IBAD e IPES, além do tecer fino de Vernon
Walters e a decisão pró-golpe de Lincoln Gordon deram a segurança
necessária para a tomada do poder. No Brasil do século XXI, a
massificação por direita veio através da umbilical relação entre os
conglomerados de mídia com difusão nacional e a seletividade punitiva da
Operação Lava-Jato.
A cada passo da nova direita, uma repercussão midiática, seguida de
lambança, silêncio ou inação do segundo governo Dilma. Vendo a
possibilidade concreta, o final do verão de 2016 trouxe à tona as mesmas
instituições de 1964, como a OAB e a FIESP. O apelo midiático e
massificado tinha a solidez da experiência de sequestro da pauta sem
sujeito da ação em 2013 – e daí a falsa alegação dos defensores do
governo deposto que em junho de 2013 estava o ovo da serpente, o que não
é verdade - transformou-se na convocatória massiva, e com vento a
favor, tanto da mídia como do Judiciário. A linha chilena chegava a
passos de ganso e chamadas ao vivo na maior rede de TV do Brasil.
Linhas conclusivas
Como já foi afirmado neste portal em outras ocasiões, e também por
este analista, vejo como urgente o debate franco e no limite da
responsabilidade buscando amarrar um consenso popular em torno de
mecanismos de tipo consulta direta. Quem afirmar que isso por si só
prevê um novo avanço do retrocesso, mente ou está equivocado. Quem se
colocar fielmente crente apenas no arranjo das instituições republicanas
sem mexer na escalada da nova direita e não tocando nas estruturas da
mídia oligopolista, simplesmente desconhece as regras da política como
extensão dos conflitos. O tema é tão urgente como delicado, e entendo
que devemos segui-lo até onde o espaço público cibernético nos permita.
Bruno Lima Rocha é professor de ciência política e de relações internacionais
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