As turbulências e reviravoltas políticas que vivemos irão
recrudescer. A esquerda só vencerá se souber aliar os que lutam por
direitos sociais às forças multiculturais. Este é, hoje, o sentido da
luta de classes
Por Immanuel Wallerstein | Tradução: Simone Paz Hernández e Gabriela Leite
O período entre 1945 e 1970 foi, ao mesmo tempo, de altíssima
concentração de capital ao redor do mundo e de hegemonia geopolítica dos
Estados Unidos. Na geocultura da época, liberalismo de centro
estava em seu ápice, como ideologia dominante. Nunca antes o capitalismo
parecia ter funcionado tão bem. Mas isto não iria durar.
O alto nível de acumulação de capital, que favorecia em particular as
instituições e o povo estadunidense, chegou ao limite de sua capacidade
de garantir o quase monopólio de empresas produtivas necessário. A
ausência deste quase monopólio fez com que a acumulação de capitais em
todos os lugares começasse a estagnar. Os capitalistas foram obrigados
procurar maneiras alternativas para sustentar seus rendimentos. As
principais formas foram transferir as empresas produtivas para regiões
de custo mais baixo e se envolver em transferências especulativas de
capital, procedimento mais conhecido como financeirização.
Em 1945, o quase monopólio geopolítico dos Estados Unidos só era
desafiado pelo poder militar da União Soviética. Para assegurar este
quase monopólio, Washington teve de entrar num acordo tácito, porém
efetivo, com a União Soviética, chamado “Yalta”. Este pacto envolveu uma
divisão do poder sobre o mundo: dois terços para os Estados Unidos, um
terço para a URSS. De forma recíproca, concordaram em não desafiar tais
limites, nem interferir nas transações econômicas do outro em sua
respectiva esfera. Também iniciaram uma “guerra fria”, cuja finalidade
não era derrubar o outro (ao menos no futuro previsível), e sim
preservar à risca a lealdade de seus respectivos satélites. Este quase
monopólio também foi aniquilado devido ao crescente questionamento sobre
sua legitimidade, por parte dos perdedores, no status quo de então.
Para acrescentar, este foi um período no qual os movimentos
anticapitalistas tradicionais, ou “velha esquerda” (em que se incluem
comunistas, social-democratas e partidos de libertação nacional),
assumiram o poder em várias regiões do sistema mundo, fato que parecia
altamente inimaginável em 1945. Um terço do globo era governado por
partidos comunistas e seus equivalentes. Outro terço era governado pelos
partidos social-democratas na região pan-europeia (América do Norte,
Europa Ocidental e Australásia); nesta, o poder alternava-se entre
partidos social-democratas que adotavam o Estado de Bem-estar Social (Welfare State) e partidos conservadores que também o aceitavam, embora procurassem reduzir sua extensão.
E, na última região, no chamado “Terceiro Mundo”, movimentos de
libertação nacional chegaram ao poder, com promessas de conquista da
independência, na maior parte da Ásia, da África e do Caribe; e
promovendo regimes populares na América Latina, que já era independente.
Dada a força dos poderes dominantes, especialmente dos Estados
Unidos, pareceria insólito que movimentos antissistêmicos chegassem ao
poder nesse período. Mas, de fato, ocorreu o oposto. Com o propósito de
lutar contra o impacto dos movimentos anticoloniais e
anti-imperialistas, os Estados Unidos fizeram concessões, na esperança
de que forças moderadas assumissem o poder nestes países. Calculavam que
tais forças estariam mais dispostas a governar segundo normas
convencionais do comportamento interestatal. Tal expectativa mostrou-se
correta.
O ponto de inflexão ocorreu com a revolução mundial de 1968, cuja
notável — embora curta — insurreição, entre 1966 e 1970, trouxe dois
grandes resultados. Um foi o fim de uma longa hegemonia do liberalismo
de centro (1848-1968) como única ideologia legítima na geocultura. Em
seu lugar, tanto a ideologia radical de esquerda como a ideologia
conservadora de direita, reconquistaram suas autonomias, e o liberalismo
de centro viu-se reduzido a ser apenas uma entre três ideologias
concorrentes entre si.
A segunda consequência foi a afronta mundial contra a “velha
esquerda”, por movimentos de todos os cantos, que concluíram que a mesma
não tinha nada de antissistêmica. Sua ascensão ao poder não havia
mudado nada relevante, diziam seus agressores. Estes movimentos passaram
a ser vistos como partícipes do sistema que devia ser rejeitado, para
que os verdadeiros movimentos anticapitalistas tomassem seu lugar.
O que ocorreu depois? No início, esta nova direita assertiva parecia
ser a vencedora. Tanto o presidente Reagan, dos EUA, como a
primeira-ministra britânica Margareth Thatcher proclamaram o fim do até
então dominante “desenvolvimentismo”, e o advento da produção orientada
para o mercado mundial. Eles afirmaram que “não havia outra alternativa”
(TINA = “there is no alternative”). Dada a queda das receitas do
Estado, na maior parte do mundo, a maioria dos governos solicitou
empréstimos, que só seriam concedidos se aceitassem os novos termos da
TINA. Estes termos eram exigidos para reduzir drasticamente o tamanho
dos governos e, assim, eliminar o protecionismo, enquanto acabava o
estado de bem-estar social e aceitava-se a supremacia do livre mercado. É
o que conhecemos como o Consenso de Washington — e quase todos os
governos se renderam a esta grande mudança de foco.
Governos que não se enquadraram, caíram, culminando no colapso
espetacular da União Soviética. Depois de algum tempo, os Estados
complacentes descobriram que o aumento prometido na renda real, tanto do
governo quanto da maior parte dos trabalhadores, não ocorreu. Pelo
contrário, esses Estados sofreram com a austeridade imposta a eles.
Surgiu uma reação à TINA, marcada pela insurreição dos zapatistas, em
1995, as manifestações bem-sucedidas contra a tentativa de decretar
garantias obrigatórias para os chamados “direitos de propriedade
intelectual”, em Seattle, 1998, e a fundação do Fórum Social Mundial em
Porto Alegre, em oposição ao Fórum Econômico Mundial, pilar de longa
data da TINA.
Com a esquerda global ganhando força novamente, as forças
conservadoras tiveram que se reagrupar. Deslocaram-se de sua ênfase
exclusiva em economia de mercado e lançaram sua face sócio-cultural.
Inicialmente, gastaram muita energia em questões como a proibição do
aborto e a insistência no comportamento heterossexual exclusivo.
Utilizaram tais temas para atrair apoiadores à ação política. E mais
tarde voltaram-se para posturas xenofóbicas anti-imigração, abraçando o
protecionismo a que os conservadores econômicos especificamente se
opunham.
No entanto, os apoiadores dos direitos sociais expandidos para todos e
do “multiculturalismo” copiaram a nova tática política da direita e
legitimaram, com sucesso, ao longo da última década, avanços
significativos em questões sócio-culturais. Direitos das mulheres, os
primeiros direitos ao casamento homossexual, direitos dos indígenas,
tudo isso se tornou vastamente aceito.
Então, onde estamos? Os conservadores econômicos venceram primeiro, e
depois perderam força. Seus sucessores, os conservadores
sócio-culturais venceram, depois perderam força. Mesmo assim, a Esquerda
Global parece hesitar. Isso acontece porque ela ainda não parece
disposta a aceitar que a luta contra a Direita Global é a luta de
classes, e que isso deveria ser explicitado.
Na crise estrutural do sistema mundo moderno, que começou nos anos
1970 e provavelmente vai durar mais uns vinte a quarenta anos, a questão
não é a reforma do capitalismo, mas seu sistema sucessor. Se a Esquerda
Global quer vencer a batalha, deve aliar solidamente as forças
anti-austeridade com as forças multiculturais. Só o reconhecimento de
que os dois grupos representam os mesmos 80% de baixo da população
mundial tornará possível a vitória. É preciso lutar contra o 1% e buscar
atrair os outros 19% para seu lado. Isso é exatamente o que significa,
hoje, a luta de classes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário