Para uma revolução no complexo de posse que corrói a humanidade
"Em seu novo livro, Giorgio Agamben oferece um modelo para uma revolução no complexo de posse que corrói a humanidade, um paradigma para a reinvenção do que significa 'comum'."
Por Christian Ingo Lenz Dunker.
“A obra do escravo é o uso de seu corpo.” Em O uso dos corpos, com
sua característica habilidade para comentar os antigos de modo a
torná-los mais que contemporâneos, Giorgio Agamben faz dessa afirmação
de Aristóteles um ponto de partida para rediscutir o estatuto do que
significam posse e propriedade. Esse trabalho sem obra, vida sem memória
e desejo sem criação é uma espécie de último capítulo inconcluso e
perspectivo da maior saga filosófica do século XXI, conhecida como Homo sacer.
Neste
volume, o filósofo italiano, mestre da filologia retórica – herança
heideggeriana –, reinventa, foucaultianamente, a problemática do cuidado
de si e do conhecimento de si, introduzindo um terceiro termo: o uso de
si. Do sadomasoquismo em Freud ao gozo em Hegel, passando pela
disciplina estóica da corporeidade, Agamben dedica-se ao estudo da
subalternidade da noção de uso. “O si não é mais que o uso de si”,
máxima pragmática que reformula nossa concepção concêntrica entre
narcisismo e individualismo.
O uso
precede quer a essência, quer a existência. É pelo uso que passamos de
escravos a senhores. É pelo uso, essa contemplação sem conhecimento, que
praticamos uma forma de vida, na qual subordinamos hábitos e saberes.
Curiosa potência irônica se esconderá por trás do uso: quanto mais
tomamos o mundo e o outro como instrumento, mais nos sentimos usados –
pequena tragédia do romance moderno. Nada menos do que o sacrifício de
Cristo segue essa máxima do uso, do meio e do instrumento da vontade do
Outro. Origem também do caráter bífido da relação entre técnica e arte, o
dispositivo do uso parece uma sítnese disjuntiva entre zoè e bios, entre physis e nomos.
Contudo, o
ponto crucial da investigação aqui realizada é a pesquisa urgente de uma
forma de relação com o corpo que não seja de propriedade. Em vez do
corpo próprio, o corpo impróprio. O autor oferece um modelo para uma
revolução no complexo de posse que corrói a humanidade, um paradigma
para a reinvenção do que significa “comum”. O leitor de língua
portuguesa tem agora à disposição uma obra que é, antes de tudo, um
ajuste de contas e também o tributo de Agambem a todos os que tornaram
possível seu pensamento.
***
Christian Ingo Lenz Dunker é
psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do
Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social,
Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012 e um dos autores da coletânea Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo, 2015). Seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo,
2015), também vencedor do prêmio Jabuti na categoria de Psicologia e
Psicanálise. Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da
Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
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