Zygmunt Bauman avisou, apoiando-se em Gramsci: a democracia
torna-se cada vez mais oca, quando a aristocracia financeira impõe seu
poder e resta à sociedade participar de eleições cosméticas
Por Gustavo Henrique Freire Barbosa
“A
crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o
novo não pode nascer; neste interregno, aparece uma grande variedade de
sintomas mórbidos”, escreveu Antonio Gramsci durante o longo período em
que ficou encarcerado na prisão de Tudi di Bari, na Itália.
Sobre os dizeres do pensador italiano, escritos entre os anos 1920 e
1930, Zygmunt Bauman sugere que a atual situação do planeta corresponde a
um novo interregno. O velho, assim, estaria morrendo, de maneira que se
encontraria moribunda a antiga ordem baseada no entrelaçamento entre o
território, o Estado e a nação enquanto referências de organismos
operacionais soberanos. Neste contexto, a prevalência do capital
financeiro e a transnacionalização das relações econômicas,
características fundamentais da globalização, vêm sucessivamente
transferindo os núcleos de decisão política dos Estados nação para
entidades internacionais como o FMI e a Comissão Europeia. Tais
entidades, no afã de atingir seus predatórios objetivos de acumulação,
adotam como modus operandi a sistemática subjugação de soberanias
nacionais e a incontida subversão de ordenamentos jurídicos,
conseguindo escapar do princípio clássico de que “aquele que governa tem
o poder e faz as leis”.
Eis onde se encontra, conforme refletiu Gramsci, o nascituro
impossibilitado de sair do ventre: os organismos políticos herdados de
tempos anteriores à globalização vêm se mostrando inadequados e
insuficientes para lidar com uma realidade na qual as novas formas de
organização política e econômica escapam do controle local por meio de
leis e da própria Constituição. Veja-se o recrudescimento das medidas de
austeridade aplicadas no Brasil, consagradas com a PEC da previdência e
com a mais recente aprovação da PEC 55: para atender aos reclamos do
rentismo internacional, comprometeu-se a normatividade de uma série de
direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988,
restringindo, assim, o aporte de recursos imprescindíveis para as suas
concretizações. Munidos da tecnocracia vulgar, ignoraram as alternativas
palpáveis ao arrocho fiscal e optaram por seguir à risca a cartilha da
espoliação pós-moderna, na qual recursos são drenados para o mercado
financeiro ao completo arrepio dos mecanismos de controle e dos
objetivos programáticos encartados no texto constitucional.
Assim, toda a estrutura decisória que fundamenta esta nova ordem global
passa a gravitar em torno das corporações internacionais, deixando um
“déficit democrático” nos parlamentos, governos e instituições voltadas à
participação popular direta, de maneira que as expressões de uma
democracia eficaz costumam ser vistas com manifesta desaprovação. Basta
atentarmos para a histeria com que foi recebido o Decreto nº 8.243/2014,
que visa instituir a Política Nacional de Participação Popular na
gestão pública, e as paradigmáticas experiências da Argentina, Equador e
Eslovênia: enquanto os credores internacionais encararam com
preocupação o fato dos países latino-americanos terem, em momentos
diversos, demonstrado condições de saldar suas dívidas, preocupando-se
com a possibilidade da liberdade econômica e a independência financeira
adquiridas serem usadas para rechaçar a aplicação de medidas de
austeridade, a suprema corte eslovena impediu a realização de um
referendo constitucional convocado contra as imposições do mercado
financeiro. Alegou que colocaria em perigo outros valores
constitucionais que deveriam ter prioridade em uma situação de crise
econômica. Que valores são estes? Os oriundos da racionalidade das
autoridades financeiras internacionais que pressionavam o país europeu
para que adotasse o austericídio que vêm destruindo nações como o
Chipre, a Grécia e a Espanha.
Falar de um livre mercado nestas circunstâncias é uma piada de péssimo
gosto, concluiu Chomsky em uma de suas entrevistas ao jornalista David
Barsamian compiladas no livro A Minoria Próspera e a Multidão Inquieta. Sua declaração faz total sentido no momento em que é completamente estranha ao mapeamento cognitivo dos think tanks liberais
a compreensão de que a verdadeira liberdade está indiscutivelmente
ligada à efetiva soberania nacional, livre de pressões e ameaças. A
abertura de canais para interferências externas na autodeterminação dos
Estados nacionais, cuja desregulamentação é vista com satisfação pelos
ideólogos do neoliberalismo, é tida por estes como uma expressão da
“liberdade econômica” ainda que se trate de um descarado atentado ao
poder e a liberdade das nações decidirem seus rumos conforme os
interesses do que Rousseau definiu como “vontade geral”. Não assusta que
o economista Friedrich Hayek, referência intelectual da apologética
globalitária, tenha afirmado em uma reveladora visita ao Chile de
Pinochet que sua “preferência se inclina na direção de uma ditadura
liberal, ao invés de um governo democrático que não pratique o
liberalismo”.
No artigo “O mundo da ordem”, publicado em setembro de 1984 na Folha de S. Paulo,
Marilena Chauí afirmava que a perenidade do pensamento conservador
autoritário no Brasil apoia-se não apenas no conjunto das instituições e
práticas sociopolíticas, mas também na interiorização de certas
imagens. Uma destas imagens é a peculiar visão que se tem da luta de
classes, que aparece simplesmente como um confronto armado provocado
pelo andar de baixo contra o andar de cima da sociedade. Esta
perspectiva reducionista da insolubilidade de interesses entre classes
sociais não consegue observar que o conflito gira, sobretudo, em torno
da conservação das formas de dominação através das instituições, leis e
costumes. Os embates por maiores fatias do orçamento geral – hoje
destinado quase em sua metade ao pagamento de juros e amortização da
dívida – e contra a drenagem de recursos públicos em favor do mercado
financeiro, por exemplo, correspondem a claras manifestações das lutas
de classes, pois englobam postulações inconciliáveis acerca de quem o
Estado deve servir. Ademais, se problemas globais requerem soluções
globais, está correto o bilionário norte-americano Warren Buffet quando
reconhece que “claro que há luta de classes, e é a minha classe, a dos ricos, que está vencendo.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário