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terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

O último post, por Nuno Ramos de Almeida.

on 19/02/2018Categorias: Comportamento, Comunicação, Destaques, Internet, Sociedade
“Não eram o mesmo povo, eram nichos de mercado. Quando muito, se queria conviver, fazia um grupo na rede sobre sua série preferida. Estava provisoriamente fora, porque Game of Thrones só voltaria em 2019. Embora já soubesse, pelos inúmeros spoilers, como acabava a oitava temporada”
Por Nuno Ramos de Almeida
Tinha-se tornado invisível. Tudo tinha começado há algum tempo. Parece que o algoritmo do Facebook tinha mudado outra vez. Via cada vez menos gente no mural. Depois, os que via passaram a ser iguais a ele: tinham todos opiniões concordantes. Agora, até as suas almas gêmeas pareciam ter emigrado.
O seu dia começa invariavelmente com uma mensagem a dizer: “O seu post teve um melhor acolhimento, oferecemos-lhe 5 euros para promovê-lo.” Tentava fechar aquela incómoda janela. Era admoestado pela máquina: ‘”Tem certeza de que quer perder esta promoção?” É verdade que há muito se tinha rendido às virtudes da comunicação na rede.
Usava o Instagram para mostrar a solidão: o seu alegado treino – desfilava paisagens das serras e dos céus, quando passeava toda a sua concentração estava no que ia postar, fazia tudo como um turista japonês costuma percorrer uma cidade estrangeira, de olho no boneco e clique rápido no smartphone. Acabou de colocar a milésima imagem da sua sala e as fachadas desertas da noite da véspera.
Enquanto caminhava, passava o tempo espiando o celular, para ver se alguma coisa tinha acontecido. Começou a reparar que não fazia mais nada do que isso na vida: tirava e guardava o telefone em intervalos que começavam a acompanhar a respiração.
Espreitava outras vidas encenadas na rede, vivia por procuração. Na máximo da sociabilidade, correspondia-se com pessoas que não conhecia em ciclos que se repetiam sempre da mesma forma. As conversas que começava aprofundavam-se e desapareciam. Acalmava-o saber que a vida corria com as novas estações digitais que tinham substituído as da moda e as solares: havia uma época de foto de gatos, outra de refeições, a que se sucedia inevitavelmente uma de exibição das próprias pernas na praia.
Tudo o que começa tem um fim. Muitos morriam sozinhos, de mural aberto. A página vagueava na rede como um mausoléu eletrônico a que iam afluindo os avatares dos amigos a comentar, com os mais distraídos, quando avisados pela rede do aniversário do amigo, a parabenizar o morto.
Todos exibiam a sua intimidade. De tal maneira que essa encenação deixava pouco espaço para alguém ser qualquer coisa para além de uma casca. O que o aliviava era a profunda convicção que tinha que, de tanto representar uma coisa, havia uma altura que se fundiria com a própria ficção. Tinha na memória uma frase de George Santayana no livro de Goofman A Representação do Eu na Vida Quotidiana: “As máscaras são expressões controladas e ecos admiráveis do sentimento, ao mesmo tempo fiéis, discretas e supremas. As coisas vivas, em contacto com o ar, adquirem uma cutícula, e não se pode argumentar que as cutículas não são corações; contudo, alguns filósofos parecem chatear-se por causa das imagens por não serem objetos, e com as palavras por não serem sentimentos. Palavras e imagens são como as conchas, não são menos parte integrante da natureza do que as substâncias que cobrem (…) Não diria que a substância existe por causa da aparência, ou o rosto por causa da máscara, ou as paixões por causa da poesia e da virtude…”
Já não via os filhos. Foram, aliás, os primeiros a desaparecer da tela da sua vida. Argumentaram que tinham outras redes próprias, para evitar a vigilância dos parentes, mas principalmente os comentários e os likes dos parentes mais velhos.
A última vez que saíra tinha recusado conversar com uma pessoa, movendo-a para a esquerda, e tinha tido a súbita vontade de fazer um superlike a outra, sem perceber como o fazia sem pegar no celular e fora da app própria. Já não sabia estar na rua a não ser para alimentar conteúdos das suas contas nas redes sociais. Se pudesse, fazia isso tudo de casa. Já dizia o outro, que tinha colocado à discussão a hipótese de não sermos mais que cérebros ligados a coisas que nos estimulem: “Penso, logo existo.” E continuava a pensar, de forma que certamente existia.
Evitava conversas na rua quando ainda trabalhava fora de casa, primeiro por timidez e depois porque não tinha, na maior parte dos casos, qualquer assunto em comum com essas pessoas. Nenhuma delas pertencia aos seus “amigos”. Há muito que ele e a maioria das pessoas não viam as mesmas coisas. Já quase ninguém com menos de 80 anos via televisão “generalista”, nem sequer viam os mesmos programas no Netflix. Não eram o mesmo povo, eram nichos de mercado. A esmagadora maioria da gente via as suas coisas no computador. Quando muito, se queria conviver, fazia um grupo na rede sobre a sua série preferida. Estava provisoriamente fora disso porque o Game of Thrones só voltaria em 2019. Embora já soubesse pelos inúmeros spoilers como acabava a oitava temporada.
Por vezes, como um grito vindo do exterior longínquo de países selvagens – certamente sem internet –, uma vaga de um assunto varria a tela do seu computador: uma guerra, um escândalo, um crime mais gritante. Nesse momento, como por magia, as pessoas dividiam-se em dois grupos diametralmente opostos, como se se tratasse de uma disputa entre dois clubes de futebol. Não havia nenhum terreno comum de discussão. Nem ninguém lia qualquer argumento do outro. Aquilo que começava em tom de argumentação logo passava a ruído. Todo o mundo começava a insultar-se, como se estivesse num carro em hora de pico. Mesmo esses momentos de ira eram cada vez mais rápidos. O assunto desaparecia como tinha aparecido, para ser substituído por outro ou por gatinhos. Ultimamente, até essas pequenas recordações de raiva estavam controladas. No último jornal que tinha lido, na internet, informaram-no de que, em virtude do combate às “fake news” e ao extremismo, os serviços de busca e as redes sociais iam mudar o algoritmo, de modo que toda a notícia não nativas das redes sociais pudesse ser postada, mas fosse controlado o seu alcance e divulgação. Inicialmente, começaram pelos jornais russos que não eram de confiança; depois passaram aos grupos de ativistas e, no fim, qualquer notícia estava demais.
Neste momento concreto em que escrevia o post, não percebia se estava vivo ou morto. Estava numa espécie de limbo em que alimentava a rede para ninguém. A única coisa que lhe dava uma réstia de esperança de que continuava a existir é que sempre que postava um par de seios, numa fotografia, num quadro, ou mesmo um par de montanhas espetadas para o céu, o Facebook retirava-lhe o post e ameaçava suspender-lhe a conta.

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