qua, 24/01/2018 - 09:16
A credibilidade do judiciário em jogo
por Leonardo Avritzer
O
julgamento do recurso impetrado pelo ex-presidente Lula junto ao
Tribunal Regional da 4ª região irá representar mais do que uma
continuação das ações daqueles que pensam que o combate a corrupção pode
se dar à margem do estado de direito ou daqueles que acham que qualquer
ação justifica a retirada de Lula do processo eleitoral. Creio que a
dimensão mais importante do julgamento será, de fato, a jurídica e ela
nos ajudará a responder a indagação sobre a legitimidade das ações do
poder judicial no Brasil. O direito penal é a jóia da coroa do sistema
jurídico. É ali antes de tudo que se coloca a questão se o sistema de
justiça é um instrumento de poder dos poderosos ou se ele é parte do
sistema de direitos das sociedades contemporâneas. Membros da assim
chamada força tarefa da operação Lava Jato justificam suas ações através
do mote ninguém se encontra acima da lei, mas frequentemente eles
parecem ter concepções bastante primitivas sobre a lei ou realizam um
processo de identificação absoluta entre as suas ações e a lei,
lembrando do velho adágio absolutista agora adaptado para a afirmação
“eu sou ou nós somos a lei”. O objetivo deste artigo é justamente
argumentar que os chamados agentes da justiça estão na obrigação de se
submeterem à lei da mesma forma que os demais indivíduos ou até mais já
que a credibilidade do poder judiciário depende não de condenações
apressadas e precárias e sim de ações fundamentadas na lei e no código
penal.
Vale
a pena, para mostar a importância do ponto levantado acima, lembrar a
história de alguns países que deram legitimidade ao sistema de júri e ao
poder judiciário no seu processo de construção estatal. Estados Unidos e
Austrália se destacam nesse quesito. No caso da Austrália, a história
fundadora do país é um julgamento injusto na Inglaterra que impedia
ex-condenados de terem acesso ao sistema de júri. Com um júri
constituído apenas de soldados, o caso foi revertido. O sistema de júri
nos Estados Unidos onde ele existe para todos os casos criminais e, na
Austrália, onde ele é uma das instituições fundantes do país permite que
erros processuais ou processos instruídos de forma arbitrária sejam
revistos por indivíduos leigos. A Europa não tem este sistema, mas tem o
sistema do juiz de instrução que opera na França, na Itália, na
Espanha, em Portugal e também na nossa vizinha Argentina. O que o juiz
de instrução faz? Ele separa o julgamento da instrução do processo
penal. Por que isso é importante? Porque a história do sistema judicial
nos países que hoje constituem as principais democracias modernas é uma
história de abusos por parte de juízes e principalmente do Ministério
Público. Infelizmente, a acreditar na Revista Economist (edição de 07 de
novembro de 2017) este ainda é muitas vezes o caso (https://www.economist.com/news/leaders/21731154-american-idea-spreads-in...).
O
Brasil é o único país entre as grandes democracias do mundo no qual um
juiz pode orientar uma delação premiada contra um réu, instruir um
processo e julgá-lo. A delação premiada brasileira se insere mal em um
sistema no qual o réu não pode se submeter nem ao sistema de júri e nem a
um juiz diferente daquele que supervisionou a delação. Ou seja, Sérgio
Moro, no caso do ex-presidente Lula, orientou a delação premiada,
aceitou a denúncia, legalizou a posse de um apartamento por provas
indiretas e alegou ter fórum para todas essas ações apesar de o S.T.F.
só ter lhe concedido foro sobre as ações ligadas à Petrobrás e condenou o
ex-presidente. Isso depois de ser censurado pelo ex-ministro Teori
Zavascki acerca de vazamentos de gravações que contrariam a lei
brasileira sobre o assunto, chegando inclusive a gravar a defesa do
ex-presidente. Vale a pena utilizar dados comparados para analisarmos
quando um juiz é impedido de continuar presidindo um julgamento nos
Estados Unidos. Ali o fato do juiz ter conhecimento prévio do caso ou
ter atuado de forma ilegal é, em geral, suficiente para um juiz ser
impedido de atuar no caso. No caso do julgamento do ex-presidente Lula é
interessante que coube ao próprio Sérgio Moro dizer porque ele
continuava sendo um juiz neutro. Diz Moro e aqui cito a sentença do
caso: “no entendimento deste julgador, respeitando a parcial censura
havida pelo Ministro Teori Zavascki, o problema nos diálogos
interceptados não foi o levantamento do sigilo, mas sim o seu conteúdo,
que revelava tentativas do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva de
obstruir investigações e a sua intenção de, quando assumisse o cargo de
Ministro Chefe da Casa Civil, contra elas atuar com todo o seu poder
político”. Analisemos o julgamento proferido pelo ex-ministro Teori
neste caso para ver se de fato o juiz interpreta a censura que recebeu
de forma correta. Afirmou Teori Zavascki no ponto 7 da sua decisão:
“Ainda mais grave, procedeu a juízos de valor sobre referências e
condutas de ocupantes de cargos previstos nos artigos 102 I, b e c.” Ou
seja, estamos diante de um juiz que tergiversa em questões processuais.
Ele reafirmou sua capacidade de interpretar intenções dos ocupantes de
cargos depois de um juiz do Supremo Tribunal Federal censurá-lo por
isso. Fica a pergunta: se um outro juiz avaliasse esta questão, tal como
ocorre na França, na Espanha, na Itália e em Portugal ele tomaria a
mesma decisão? Portanto, esta é a primeira questão que precisa ser
examinada pelo TRF-4. Houve ou não um juízo neutro no caso do
ex-presidente Lula?
Sabemos
que o julgamento de Lula conteve três discussões fundamentais, a
propriedade de um apartamento tríplex no Guarujá, a relação dele com a
OAS e a relação da OAS com a Petrobrás e com o próprio Lula. É
interessante perceber que em nenhuma das três questões aquilo que o
sistema do júri norte-americano denominou de “beyond the reasonable
doubt” ficou estabelecido. Vamos ao primeiro ponto: a ideia de
propriedade e os critérios para se provar propriedade. É sabido que o
tríplex não está em nome de Lula e que nem ao mesmo um contrato assinado
a Lava Jato conseguiu produzir. Nem uma testemunha que sabe o que
aconteceu com exceção do infeliz Leo Pinheiro que teve que amargar um
tempo extra na prisão porque ele poderia dar à Lava Jato o que ela
queria. Moro, na sua sentença, considerou provada a propriedade na
seguinte passagem, 809 a 811:
“Ainda
antes das alegações finais, na petição do evento 730, a Defesa de Luiz
Inácio Lula da Silva alegou que haveria prova documental de que o
apartamento 164-A, triplex, no Condomínio Solaris, no Guarujá, não seria
de propriedade dele pois teria sido arrolado entre os bens da OAS
Empreendimentos no processo de recuperação judicial que tramita perante a
1ª Vara de Falência e Recuperações Judiciais da Justiça Estadual de São
Paulo (processo 0018687- 94.2015.8.26.01000). Juntou na oportunidade
documentos. 810. Ora, como já adiantado nos itens 304-309, não se está
aqui a discutir a titularidade formal do imóvel ou questões de Direito
Civil, mas sim crime de corrupção e lavagem de dinheiro, este último
pressupondo condutas de dissimulação e ocultação.... Estando o imóvel
formalmente em nome da OAS Empreendimentos era de se esperar que fosse
arrolado no processo de recuperação judicial da empresa, já que esta é
obrigada a indicar todos os seus bens. Isso era ainda mais esperado,
considerando que a recuperação judicial foi iniciada em 2015, ou seja,
após a prisão cautelar de José Adelmário Pinheiro Filho e depois das
divulgações de notícias na imprensa acerca de possíveis crimes
envolvendo o apartamento triplex, quando a transferência formal do
imóvel ao ex-Presidente tornou-se algo arriscado. ... Então o argumento
da Defesa é absolutamente insubsistente.”
Temos
duas questões procedimentais para discutir aqui: a primeira é se o
direito criminal pode ter regras menos precisas do que o direito civil,
tal como afirma Sérgio Moro. Esta questão mais uma vez nos remete ao
direito comparado. No caso dos Estados Unidos, existe uma distinção
clara entre direitos civil e criminal. O direito civil opera com a ideia
de “preponderance of evidence” (evidências que apontam majoritariamente
em uma direção) enquanto o direito criminal opera com o princípio de
“beyond the reasonable doubt”. Quando nós analisamos a sentença de
Sérgio Moro baseado neste princípio percebemos o absurdo lógico que a
estrutura. O que Moro afirma na sentença do tríplex é basicamente o
seguinte: como o caso diz respeito ao direito criminal eu me eximo de
ter que apresentar evidências relacionadas ao direito de propriedade que
reside no campo civil. A afirmação de Moro poderia ainda fazer sentido
se ele tivesse evidências preponderantes ou além da dúvida razoável no
caso criminal. Sabemos que ele não o tem, já que a única coisa que ele
apresentou foi um depoimento de uma pessoa coagida a depor depois de ser
presa, o que mais uma vez está proibido em diversos países. Temos aqui o
segundo problema procedimental que esperamos que o TRF-4 de Curitiba
trate. É possível que o direito penal não se submeta a nenhum critério
razoável de prova. Nesse caso, vale a pena observar que já houve um caso
criminal relativo a propriedade no TRF-4 que envolve uma pessoa das
relações pessoais de Sérgio Moro, Carlos Zucolato Jr. Neste
processo de execução criminal devido a dívida fiscal, a sentença do
TRF-4 é clara: “O titular do direito de propriedade é aquele em cujo
nome está transcrita a propriedade imobiliária”. Esta é a jurisprudência
do TRF-4 até o dia de hoje. Ou seja, no caso da propriedade do tríplex
do Guarujá temos a possibilidade seguinte: que duas varas declarem a
propriedade de forma diferente (já que ele está sendo executado como
propriedade da OAS na 2ª vara de execução de títulos em Brasília) e que o
TRF-4 declare uma jurisprudência que vale apenas para um caso, apenas
para seguir uma sentença sem fundamento da primeira instância.
Por
fim, temos o terceiro aspecto que é a relação entre Lula e a OAS e o
chamado ato de ofício. Ainda que Sérgio Moro e o Ministério Público
tivessem conseguido provar a propriedade do tríplex (e eles não
conseguiram pelo menos de acordo com a jurisprudência válida no TRF-4
até hoje dia 23 de janeiro de 2018), ainda assim, eles teriam de acordo
com o direito penal brasileiro mostrar o assim chamado ato de ofício. A
lei brasileira é clara em relação a este ponto que foi discutido pelo
STF no momento em que examinou a ação do MP contra o ex-presidente
Fernando Collor de Melo. Naquela ocasião, o S.T.F. estabeleceu uma
jurisprudência válida até hoje segundo a qual “para a
configuração do artigo 317, do Código Penal, a atividade visada pelo
suborno há de encontrar-se abrangida nas atribuições ou na competência
do funcionário que a realizou ou se comprometeu a realiza-la, ou que, ao
menos, se encontre numa relação funcional imediata com o desempenho do
respectivo cargo, assim acontecendo sempre que a realização do ato
subornado caiba no âmbito dos poderes de fato inerente ao exercício do
cargo do agente.” Sérgio Moro na sua sentença contra Lula tentou romper
com este princípio. Segundo Moro,
“Poder-se-ia
ainda cogitar, nestes autos, de ato de ofício ilegal consistente na
alteração do procedimento da Petrobrás, uma vez que esta começou, por
solicitação de José Adelmário Pinheiro Filho junto ao Governo Federal, a
convidar a Construtora OAS para grandes obras, mas não restou
demonstrado que a alteração dessa praxe, embora motivada pelas propinas,
se fez com infração da lei. 890. Mesmo na perspectiva do ex-Presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, a indicação por ele dos Diretores da
Petrobrás que se envolveram nos crimes de corrupção, como Paulo Roberto
Costa e Renato de Souza Duque e a sua manutenção no cargo, mesmo ciente
de seu envolvimento na arrecadação de propinas, o que é conclusão
natural por ser também um dos beneficiários dos acertos de corrupção,
representa a prática de atos de ofícios em infração da lei. É certo que,
provavelmente, o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva não tinha
conhecimento de detalhes e nem se envolvia diretamente nos acertos e
arrecadação de valores, pois tinha subordinados para tanto, mas tendo
sido beneficiado materialmente de parte de propina decorrentes de acerto
de corrupção em contratos da Petrobrás, ainda que através de uma conta
geral de propinas, não tem como negar conhecimento do esquema
criminoso.”
Sérgio
Moro faz duas alegações em relação à chamada presença de atos de
ofícvio. Em primeiro lugar, ele questiona a jurisprudência vigente no
país que ele diz não conclusiva apesar da decisão do S.T.F. nos anos 90.
Em seguida, ele reconhece que não existiu por parte do ex-presidente
ato de ofício. Em terceiro lugar, Moro tenta se basear na jurisprudência
internacional, em especial, na Norte Americana quando afirma no
parágrafo 865 da sentença que:
“Basta
para a configuração que os pagamentos sejam realizados em razão do
cargo ainda que em troca de atos de ofício indeterminados, a serem
praticados assim que as oportunidades apareçam. Citando Direito
Comparado, "é suficiente que o agente público entenda que dele ou dela
era esperado que exercitasse alguma influência em favor do pagador assim
que as oportunidades surgissem" ("US v. DiMasi", nº 11-2163, 1st Cir.
2013, no mesmo sentido, v.g., "US v. Abbey", 6th Cir. 2009, "US v.
Terry", 6th Cir. 2013, "US v. Jefferson", 4th Cir. 2012, todos de Cortes
de Apelação Federais dos Estados Unidos).”
Moro
afirma corretamente que todos estes casos foram decididos por tribunais
de apelação nos Estados Unidos. O que ele, por um lapso, esqueceu-se de
afirmar é que a Suprema Corte invalidou todos eles, ao estabelecer uma
nova jurisprudência no recurso impetrado pelo ex-governador da Virgínia
Robert F. McDonnell. Neste caso, decidido por unanimidade a
Suprema Corte dos Estados Unidos, reafirma a necessidade de ato de
ofício.
“Se
o tribunal de primeira instância determinar que existe suficiente
evidência para um juri condenar o Governador McDonnell de cometer ou
concordar em cometer um ‘ato de ofício seu caso deve passar por um novo
julgamento “ escrever o presidente da Suprema Corte , Roberts. “Se o
tribunal determinar que a evidência [de ato de ofício] é insuficiente a
acusação tem que ser retirada.”
(https://www.washingtonpost.com/politics/supreme-court-rules-unanimously-in-favor-of-former-va-robert-f-mcdonnell-in-corruption-case/2016/06/27/38526a94-3c75-11e6-a66f-aa6c1883b6b1_story.html?utm_term=.d78ec81dbc24).
Ou seja, a Suprema Corte dos Estados Unidos ordenou que os tribunais
inferiores fizessem o que Sérgio Moro não fez. Mais uma vez se vê no
caso brasileiro, insuficiência de linhas diretrizes e de defesa de
direitos pelo S.T.F.
Chegamos,
assim, ao cerne do julgamento do ex-presidente Lula pelo S.T.F. Temos
três fortes suspeições pesando sobre a sentença: a primeira suspeição é
sobre a neutralidade do juiz. Coube ao próprio juiz arguir sua
neutralidade e interpretar a censura que ele recebeu do ex-ministro do
STF Teori Zavaski. Não houve qualquer tipo de revisão das decisões de
Sérgio Moro por outro juíz como ocorre na Europa e nos EUA. O
segundo problema com a sentença é uma banalização do direito penal e uma
negação de qualquer princípio do direito civil. O ex-presidente Lula
não só não tem a propriedade, como não esteve, não morou e não usufruiu
do bem. Mesmo se a condição fosse o imóvel estar sob a tutela da OAS,
esta condição não se cumpre quando ele é executado pela vara de execução
fiscal de Brasília. Como diz um articulista no jornal New York Times
hoje “a evidência contra o Sr. da Silva está muito abaixo dos padrões
que seriam levados a sério, por exemplo, no sistema judicial dos Estados
Unidos.” Por fim, temos o problema do ato de ofício mais uma vez negado
por Sérgio Moro e que é condição na maior parte dos sistema judiciários
e recebeu uma decisão a respeito da Suprema Corte dos Estados Unidos.
Enganam-se aqueles que acreditam que Sérgio Moro e a Lava Jato colocarão
o Brasil em qualquer roteiro internacional. Se o colocarem será no
roteiro dos países que tem um o judiciário engajado politicamente, que
não tem estruturas de estado de direito suficientemente fortes e que tem
um Supremo Tribunal omisso em relação ao direito de defesa. Mais do que
o ex-presidente Lula quem estará em julgamento hoje é o sistema de
justiça no Brasil que permitiu as fortes violações do direito penal
perpetradas pelo juiz Sérgio Moro.
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