Por Mauro Luis Iasi.
“Temos de começar a pensar numa intervenção mais política
no ambiente social, acabar com esse fetiche militarizado de segurança pública
para resolver problemas que têm que ser resolvidos na esfera política”
no ambiente social, acabar com esse fetiche militarizado de segurança pública
para resolver problemas que têm que ser resolvidos na esfera política”
– ORLANDO ZACCONE, delegado de polícia e doutor em Ciência política pela UFF.
Não é necessário muito esforço para
verificar o que a atual intervenção do exército no Rio de Janeiro
esconde. Como em outros campos, o segredo está à mostra de todos: o rei
está nu… e ele não é o rei.
Existem duas chaves de compreensão
importantes no raciocínio de meu amigo e colega Orlando Zaccone que nos
serve de epígrafe. Primeiro, que o tema da segurança pública é um tema
que só pode ser resolvido na “esfera da política”, e segundo que a forma
militarizada de enfrentamento da questão assume a forma de um fetiche.
Os dois aspectos estão associados em uma dimensão que, talvez não esteja
tão visível e óbvia. Senão, vejamos.
Afirmar que o problema da segurança
pública é um problema político é retomar a premissa de que as formas
sociais se articulam com uma configuração social do crime e que há
relações de determinação entre uma e outra. Não há nenhuma novidade
nessa premissa. Ela está na base do pensamento funcionalista de Durkheim
e de toda uma consolidada reflexão sociológica sobre o tema. No campo
da criminologia crítica, principalmente de corte marxista, o que se
agrega é que não se trata da relação entre formas sociais e
criminalidade no abstrato, mas de uma determinada forma social fundada
na propriedade privada, na extração de mais-valor e de acumulação
privada de capitais, isto é, uma sociedade capitalista em seu ponto mais
desenvolvido do monopólio e do imperialismo.
Ocorre que essa premissa, que ao que
parece conta com a corroboração e a seriedade de estudos desenvolvidos
ao longo de um grande período, foi primeiro desacreditada
academicamente, depois ridicularizada como “reducionista” e
desconsiderada pelo poder público. Dito isso, o que devemos perguntar é o
seguinte: o que se colocou no lugar desta constatação.
A criminalidade e a questão da segurança
que dela deriva parecem ter sido reduzidas a uma questão de anomia.
Isolando o conceito durkheimiano de alguns de seus argumentos incômodos,
purgando de qualquer resquício de análise científica, mesmo nos moldes
positivistas, a anomia é vista como uma espécie de anacronia, um quisto
em uma sociedade que se “moderniza” e se “democratiza”. Se a sociedade é
compreendida como dotada de oportunidades, caminhos e condições para o
pleno desenvolvimento dos indivíduos, aqueles que escolhem o caminho da
criminalidade o fazem, segundo esta visão, por um desvio pessoal, uma
deformidade moral ou um impulso instintivo. O controle de tal fenômeno
só poderia ser, então, a repressão policial e o encarceramento.
Anos de aplicação de políticas de
segurança fundadas nesta premissa mostram seu total fracasso em diminuir
os índices de criminalidade, aqui ou em qualquer parte do mundo. Aqui
começa a se apresentar o fetiche da militarização. Seria um problema de
intensidade das medidas e não um equívoco em sua natureza. A resposta
aparece portanto na forma de mais polícia, mais repressão, mais encarceramento… e tudo continua dando errado, até que se chama o exército.
Mas o fetiche não é só isso. A mercadoria
precisa oferecer seu valor de uso somente por meio da realização de seu
valor de troca. No auge do fetichismo o valor de troca pode ser
realizado subsumindo o valor de uso. Você paga e toma a Coca-Cola, mas
não mata sua sede, pelo contrário ela aumenta a sede o que te leva a
pedir outra Coca-Cola. A política de segurança realiza seu valor de
troca produzindo o que apresenta como seu valor de uso fetichizado.
Vejamos.
Vamos colocar a questão por pontos:
1. Os
especialistas sérios concordam que qualquer enfrentamento deveria
começar pela legalização e controle da venda de drogas,
descriminalizando o consumo e retirando do tráfico seu protagonismo.
2. O
tráfico só é o operador de um negócio lucrativo. Em época de capital
monopolista, nenhum mercado desse porte pode existir sem duas
pré-condições: financiamento e estrutura. O volume de recursos
necessários só pode ser encontrado fora da área que a política de
segurança definiu como seu teatro de operações. Está no volumoso caixa
dois, seja da corrupção, seja da acumulação de capital. Está nas mãos de
quem tem dinheiro e precisa fazer mais dinheiro e vê no tráfico taxas
de lucro assombrosas. Pistas publicadas em nossos jornais diários
indicam o caminho: o Congresso Nacional, os bancos, os fazendeiros e as
máfias organizadas que controlam grandes somas de recursos que poderiam
financiar o tráfico.
3.
Para tudo isso funcionar, como comprova a história de todas as máfias, é
necessária uma certa estrutura e um conjunto de garantias – daí a
compra de pessoas em postos chaves nos governos, no judiciário e no
aparato policial capazes de acobertar e dar garantias ao enorme esforço
logístico que envolve portos, estradas fronteiras, transporte, esquemas
de lavagem de dinheiro, juízes dispostos a dar habeas corpus, relações internacionais etc. Nada disso está na área em que a política de segurança concentra seu foco.
4.
Chegamos à distribuição. Para isso é necessário controlar territórios,
rotas, pontos, bocas. Para isso é preciso armamento pesado. A estrutura
corporativa e monopolista do tráfico dá conta dos recursos humanos
necessários, mas o armamento, munições e outros recursos não são
fabricados e comercializados no território. Duas outras instituições
entram em simbiose: as polícias e o exército.
5. Uma
vez que a máquina estiver em funcionamento, o lucro deve ser repartido
entre seus sócios e deve-se garantir que os custos sejam cobertos. O
volume de dinheiro que, sabemos, não é pequeno, volta a alimentar o
enorme caixa dois do capital e os honrados e legais dividendos de gente
da nossa “melhor sociedade”. Tudo isso não pode ser feito somente às
sombras, na ilegalidade: ele se mostra despudoradamente à luz do dia e a
vista de todos.
Pergunto: o trabalho de investigação
percorre qual destes pontos descritos? Helicópteros repletos de cocaína e
pistas de pouso em fazendas são ignorados, contas volumosas e malas de
dinheiro não são suficientes como prova, enriquecimento sem nenhuma
relação com receitas declaradas não são investigados, a contabilidade do
grande capital não é checada por ninguém. No entanto, as favelas são
atacadas todo os dias, jovens pobres e pretos serão mortos, lógico, sem
que atrapalhe os negócios que continuarão.
É ridículo. Nenhuma operação no Rio de
Janeiro que termine sem prender o Governador do Estado e o presidente da
Assembleia Legislativa pode ser levada a sério. Muito menos uma
intervenção decretada pelo vampiro chefe da maior quadrilha deste país, o
PMDB, que governa o Rio a cinco mandatos e que é responsável (junto com
seus aliados e cúmplices) por roubar e falir o Estado e a cidade do
Rio, com operações criminosas nas quais se destacam a Copa e as
Olimpíadas.
Não estamos falando de décadas de um
problema que não encontra solução, estamos falando de décadas de
imposição de soluções como UPPs, Pronasci, ocupações da força nacional e
outras pirotecnias que acabam como sempre com os pobres mortos e os
ladrões mais ricos que antes.
As políticas de segurança não enfrentam o
problema, elas são um outro meio de ganhar dinheiro com o problema.
Vistas pelo lado da violência urbana, elas são um fracasso. No entanto,
empreiteiras ganharam dinheiro, fábricas de armas ganharam dinheiro, o
Viva Rio e outros piratas sociais ganharam dinheiro, monopólios
midiáticos ganharam dinheiro, deputados, senadores, secretários, juízes,
policiais e militares corruptos ganharam dinheiro… Policiais com
salários baixos morrem, pobres pretos defendem com a vida a quebrada que
garante as fortunas de playboys e banqueiros com narizes
dilatados de tanto cheirar pó e tomar uísque importado e envelhecido
doze anos, mais que alguns meninos mortos por balas perdidas ou
direcionadas.
Tudo isso gera insegurança… que precisa
de mais “segurança”. Estamos prontos para mais um ciclo da vida do valor
de troca de um valor de uso fetichizado. Não será mais chamada de UPP,
ou tolerância zero, ou Operações de garantia da Lei e da Ordem, mas terá
um nome chamativo, um especialista que a justifique, um especial na
Globo News sobre a solução encontrada, um político que a represente e
empresários dispostos a vender o que for preciso para “salvar o Rio” e
governantes dispostos a sangrar os recursos públicos mediante uma módica
contribuição para seu caixa dois.
Uma relação social entre seres humanos
assume a fantasmagórica forma de uma relação entre coisas. Drogas,
armas, políticas sociais, políticas de segurança, corrupção, lucro…
coisas por trás das quais há pessoas. De um lado as que ganham muito
dinheiro, de outro as que fazem isso tudo funcionar e morrem. No meio,
uma porção de gente coisificada capturada pela TV e torcendo contra eles
mesmos.
Ao longe ecoa um samba na avenida
embalando nossa alma enquanto nossos corpos padecem. Um rio de sangue e
lágrimas corre para o mar levando o lixo de séculos. O Rio não precisa
de intervenção. O Rio precisa de uma Revolução.
***
Mauro Iasi é
professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do
NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e
membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
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