A
sua calma e mansidão ao meu encontro, passos lentos e cadenciados, como
se Fred Astaire caminhasse em direção à Ginger para pegá-la pela mão e
dançar Cheek to Cheek. Sim, eu sei que você pode ser rude. Puxa a base
do meu cabelo com os dentes e traz para me lamber dentro da orelha e
beijar e morder de novo meu pescoço. Mas hábil, nunca me deixou marcas,
embora às vezes eu as procure em vão, sou dessas que tem prazer em ver
algumas dessas reminiscências temporárias do desejo. Tudo tem uma
cadência tão natural e eu entonteço - impossível não sorrir meio
enlevada - e corto em algum momento o compasso, porque eu não sei bailar
leve na cama, eu me movo ora como cobra, sibilando devagar, e
deslizando em ondas, ora como um lobo com fome olhando a carne ainda
viva, uivando, babando, mostrando os dentes. Quando tudo acaba vem a
paz. Primeiro é como deitar em uma espécie de lago morno, meus músculos
relaxam na tua pele macia, da cor da camurça, ai, aquele cheiro teu que é
meu ópio. Mas vamos embora e teus passos satisfeitos pela rua me
incomodam. Eu sei que você vai andar o dia inteiro com paz. Não. Não.
Não. Confesso que te queria na angústia, sem saber bem para onde ir,
errando ruas e trocando casas. Queria que você se atordoasse agora sem o
apoio dos meus quadris, tropeçando em lembranças e me procurando em
vão, por onde você saberia que jamais iria passar. A noite te assolaria
como um peso que cai sabe-se-lá-de-onde, sempre no peito, sempre
segurando a respiração como um punho entre as costelas. Mas não. Você
dança suave e anda leve nessa calçada da tua maldita paz. Essa paz que
me inclui como um sorrisinho no canto da tua boca, step-tap. Queria un solo tango.
Marcadores
- ALEXANDRE MEIRA (36)
- AUTOCONHECIMENTO (16)
- BBC (24)
- BOITEMPO (40)
- BOLSONARO (103)
- CARTA MAIOR (33)
- CINEGNOSE (73)
- CRISE (35)
- CULTURA (138)
- DEMOCRACIA (44)
- DILMA (21)
- DIREITOS HUMANOS (30)
- DITADURA (28)
- ECONOMIA (119)
- EL PAÍS (109)
- ELEIÇÕES (68)
- EUA (37)
- FASCISMO (38)
- GGN (129)
- GLOBO (35)
- GOLPE (100)
- INTERCEPT (64)
- JUSTIÇA (63)
- LAVA-JATO (36)
- LGBT (12)
- LULA (61)
- MERCADO (25)
- MÍDIA (48)
- MULHER (29)
- MUNDO (34)
- NEGRO (18)
- O APOCALIPSE DE OLAVO (6)
- OUTRAS PALAVRAS (178)
- POESIA (31)
- POLÍTICA (348)
- RACISMO (19)
- SOCIEDADE (184)
- TEMER (48)
- TRUMP (28)
- VIOLÊNCIA (30)
segunda-feira, 30 de outubro de 2017
Por que o Brasil não pune corrupção privada, por Matheus Pimentel.
—
publicado
30/10/2017 00h16,
última modificação
27/10/2017 10h55
No País, funciona o capitalismo da casa-grande. Bolsonaro é o mais novo e caricatural convertido
Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
"Bolsonaro é a expressão mais caricatural das adaptações do liberalismo brasileiro"
Os liberais brasileiros não nasceram ontem.
Fazem parte de uma longa tradição, quase uma linhagem de... herdeiros.
Bem, não é o perfil mais adequado a um self-made man como alguns gostam,
mas o fato é que o Brasil, por sua formação histórica, nunca foi o
terreno mais fácil para seguir os ideais do liberalismo clássico.
Nosso país preservou a escravidão por quase 400 anos. Depois disso, não foi criado por aqui um ambiente exatamente propício à competição livre e à igualdade de condições. Nasceu o capitalismo da casa-grande.
Os liberais tupiniquins, desde o princípio, tiveram de fazer “concessões” ao conservadorismo mais rançoso. Desde sempre fora do lugar, a turma de Roberto Campos, o economista liberal que foi ministro da ditadura e posicionou-se contra as Diretas Já, “adaptou” seus princípios, misturando liberalismo econômico com autoritarismo político, intolerância aos negros, índios, pobres e qualquer representação popular.
Há uma base objetiva na heterodoxia do liberalismo à brasileira. Aqui, mais do que em outras terras, o capital sempre mamou nas tetas do Estado. A lógica é: Estado mínimo na hora de privatizar os lucros, máximo quando se trata de socializar os prejuízos. Sem falar nos eternos incentivos, perdões de dívidas e no laissez-faire da sonegação fiscal.
Entre trancos e barrancos, os liberais perseveraram e hoje crescem. São dezenas de institutos, fundações, grupos e grupelhos a vender receitas para a salvação nacional.
Sua renovação tem produzido “novidades” um tanto decepcionantes. É o caso do MBL, que, envergonhado em juntar-se aos 3% que defendem o governo de Michel Temer, busca crescer por meio do conservadorismo cultural. Mais uma do ornitorrinco liberal brasileiro.
Aliás, quem conseguiria vencer as eleições com a atual agenda liberal, que inclui rapinar metade do PIB nacional para pagar a dívida pública, impor cortes irracionais de investimentos e dilacerar os direitos trabalhistas? Aécio Neves? Temer? Quem?
E tem mais gente nova disposta a entrar na onda. Luciano Huck, que trama sua estreia nos palcos da política, é um exemplo de homem rico: tem pai endinheirado, amizades com (ex-) governadores como Sérgio Cabral e com (ex?) senadores como Aécio. Autêntico liberal brasileiro. E olha que esse ainda demonstra compaixão, remunerada, aos pobres.
Nada é tão ruim, porém, que não possa piorar: o mais recente expoente das ideias liberais, pronto para ser o guardião da espada de Milton Friedman nas próximas eleições, é ninguém menos que Jair Bolsonaro.
Em recente viagem aos Estados Unidos, em eventos promovidos pela XP Investimentos, Bolsonaro declarou seu amor incondicional ao livre-mercado e tentou vender sua imagem como defensor do Estado mínimo.
O ultrarreacionário, apoiador aberto da tortura, quer se apresentar como alternativa palatável aos donos do mundo, como um Donald Trump brasileiro. Apesar da repugnância que inspira, não é improvável que consiga. Seu público-alvo são os mesmos investidores que acusaram frustração pelo governo ultraliberal de Temer não ser suficientemente espoliador.
Recentemente, esnobaram a reforma trabalhista, aquela que rasgou mais de cem artigos da CLT, como “anticapitalista”. “Então, quer dizer que ainda não vamos poder reduzir salários?”, perguntou um deles. Claro, em um país como o nosso, o liberalismo deve consistir em tratar direitos sociais, humanos e trabalhistas como bandeiras da esquerda ou privilégios de uma nação dos “sem-mérito”.
Sem qualquer apreço à democracia, historicamente os liberais nativos comungam do poder com o capital internacional, por meio de ditaduras e golpes institucionais. Por sua vez, o nada invisível mercado mundial está sempre pronto para surfar em ondas brasileiras, conservadoras ou liberais. “Nada mais conservador do que um liberal no poder”, já se dizia nos tempos do Segundo Reinado.
Bolsonaro é a expressão mais caricatural das adaptações do liberalismo brasileiro. Autoritário na política, medieval nos costumes e subserviente aos grandes interesses econômicos. Vale a máxima de que sua liberdade termina onde meu lucro começa. É uma ameaça que deve ser seriamente combatida.
Nosso país preservou a escravidão por quase 400 anos. Depois disso, não foi criado por aqui um ambiente exatamente propício à competição livre e à igualdade de condições. Nasceu o capitalismo da casa-grande.
Os liberais tupiniquins, desde o princípio, tiveram de fazer “concessões” ao conservadorismo mais rançoso. Desde sempre fora do lugar, a turma de Roberto Campos, o economista liberal que foi ministro da ditadura e posicionou-se contra as Diretas Já, “adaptou” seus princípios, misturando liberalismo econômico com autoritarismo político, intolerância aos negros, índios, pobres e qualquer representação popular.
Há uma base objetiva na heterodoxia do liberalismo à brasileira. Aqui, mais do que em outras terras, o capital sempre mamou nas tetas do Estado. A lógica é: Estado mínimo na hora de privatizar os lucros, máximo quando se trata de socializar os prejuízos. Sem falar nos eternos incentivos, perdões de dívidas e no laissez-faire da sonegação fiscal.
Entre trancos e barrancos, os liberais perseveraram e hoje crescem. São dezenas de institutos, fundações, grupos e grupelhos a vender receitas para a salvação nacional.
Sua renovação tem produzido “novidades” um tanto decepcionantes. É o caso do MBL, que, envergonhado em juntar-se aos 3% que defendem o governo de Michel Temer, busca crescer por meio do conservadorismo cultural. Mais uma do ornitorrinco liberal brasileiro.
Aliás, quem conseguiria vencer as eleições com a atual agenda liberal, que inclui rapinar metade do PIB nacional para pagar a dívida pública, impor cortes irracionais de investimentos e dilacerar os direitos trabalhistas? Aécio Neves? Temer? Quem?
E tem mais gente nova disposta a entrar na onda. Luciano Huck, que trama sua estreia nos palcos da política, é um exemplo de homem rico: tem pai endinheirado, amizades com (ex-) governadores como Sérgio Cabral e com (ex?) senadores como Aécio. Autêntico liberal brasileiro. E olha que esse ainda demonstra compaixão, remunerada, aos pobres.
Nada é tão ruim, porém, que não possa piorar: o mais recente expoente das ideias liberais, pronto para ser o guardião da espada de Milton Friedman nas próximas eleições, é ninguém menos que Jair Bolsonaro.
Em recente viagem aos Estados Unidos, em eventos promovidos pela XP Investimentos, Bolsonaro declarou seu amor incondicional ao livre-mercado e tentou vender sua imagem como defensor do Estado mínimo.
O ultrarreacionário, apoiador aberto da tortura, quer se apresentar como alternativa palatável aos donos do mundo, como um Donald Trump brasileiro. Apesar da repugnância que inspira, não é improvável que consiga. Seu público-alvo são os mesmos investidores que acusaram frustração pelo governo ultraliberal de Temer não ser suficientemente espoliador.
Recentemente, esnobaram a reforma trabalhista, aquela que rasgou mais de cem artigos da CLT, como “anticapitalista”. “Então, quer dizer que ainda não vamos poder reduzir salários?”, perguntou um deles. Claro, em um país como o nosso, o liberalismo deve consistir em tratar direitos sociais, humanos e trabalhistas como bandeiras da esquerda ou privilégios de uma nação dos “sem-mérito”.
Sem qualquer apreço à democracia, historicamente os liberais nativos comungam do poder com o capital internacional, por meio de ditaduras e golpes institucionais. Por sua vez, o nada invisível mercado mundial está sempre pronto para surfar em ondas brasileiras, conservadoras ou liberais. “Nada mais conservador do que um liberal no poder”, já se dizia nos tempos do Segundo Reinado.
Bolsonaro é a expressão mais caricatural das adaptações do liberalismo brasileiro. Autoritário na política, medieval nos costumes e subserviente aos grandes interesses econômicos. Vale a máxima de que sua liberdade termina onde meu lucro começa. É uma ameaça que deve ser seriamente combatida.
Adoecemos a Terra e a Terra nos adoece, por Leonardo Boff.
De
uma ou de outra forma, todos nos sentimos doentes física, psíquica e
espiritualmente. Há muito sofrimento, desamparo, tristeza e decepção
que afetam grande parte da humanidade. Já o dissemos: da recessão
econômica passamos à depressão psicológica. A causa principal deriva da
intrínseca relação existente entre o ser humano e a Terra viva. Entre
ambos vigora um envolvimento recíproco.
Nossa presença na Terra é
agressiva, movemos uma guerra total à Gaia, atacando-a em todas as
frentes. A consequência direta é que a Terra fica doente. Ela o mostra
pela febre (aquecimento global), que não é uma doença, mas aponta para
uma doença: sua incapacidade de continuar nos oferecer tudo o que
precisamos. A partir de 2 de setembro de 2017 ocorreu a Sobrecarga da
Terra, vale dizer, as reservas da Terra chegaram ao fundo do poço.
Entramos no vermelho. Para termos o necessário e, pior, para mantermos o
consumo suntuário e o desperdício dos países ricos, devemos arrancar à
força os bens e serviços naturais para atender as demandas. Até quando a
Terra aguenta? A consequência será que teremos menos água, menos
nutrientes, menos safras e os demais itens indispensáveis para a vida.
Nós,
que consoante a nova cosmologia, formamos uma grande unidade, uma
verdadeira entidade única com a Terra, participamos da doença da Terra.
Pela agressão aos ecossistemas e pelo consumismo, pela falta de cuidado
da vida e da biodiversidade adoecemos a Terra.
Isaac Asimov,
cientista russo, famoso por seus livros de divulgação científica,
escreveu um artigo a pedido da revista New York Times, (do dia 9 de
outubro de 1982) por ocasião da celebração dos 25 anos do lançamento do
Sputinik que inaugurou a era espacial, sobre o legado deste quarto de
século espacial. O primeiro legado, disse ele, é a percepção de que, na
perspectiva das naves espaciais, a Terra e a humanidade formam uma única
entidade, vale dizer, um único ser, complexo, diverso, contraditório e
dotado de grande dinamismo, chamado pelo conhecido cientista James
Lovelock, de Gaia. Somos aquela porção da Terra que sente, pensa,ama e
cuida.
O segundo legado, consoante Asimov, é a irrupção da
consciência planetária: Terra e Humanidade possuem um destino comum. O
que se passa num, se passa também no outro. Adoece a Terra, adoece
juntamente o ser humano; adoece o ser humano, adoece também a Terra.
Estamos unidos pelo bem e pelo mal.
Mas também ocorre o inverso:
sempre que nos mostramos mais saudáveis, cuidando melhor de tudo,
recuperando a vitalidade dos ecossistemas, melhorando nossos alimentos
orgânicos, despoluindo o ar, preservando as águas e as florestas é sinal
que nós estamos revitalizando a nossa Casa Comum.
Segundo Ilya
Prigogine, cientista russo-belga, prêmio Nobel em química (1977), a
Terra viva desenvolveu estruturas dissipativas, isto é, estruturas que
dissipam a entropia (perda de energia). Elas metabolizam a desordem e o
caos (dejetos) do meio ambiente de sorte que surgem novas ordens e
estruturas complexas que se auto-organizam, fugindo à entropia e
positivamente, produzindo sintropia (acumulação de energia: Order out of
Chaos, 1984).
Assim, por exemplo, os fótons do sol são para ele,
inúteis, energia que escapa ao queimar hidrogênio do qual vive. Esses
fótons que são desordem (rejeito), servem de alimento para a Terra,
principalmente para as plantas quando estas processam a fotossíntese.
Pela fotossíntese, as plantas, sob a luz solar, decompõem o dióxido de
carbono, alimento para elas e liberam o oxigênio, necessário para a
vida animal e humana.
O que é desordem para um serve de ordem para
outro. É através de um equilíbrio precário entre ordem e desordem
(caos: Dupuy, Ordres et Désordres, 1982) que a vida se mantem (Ehrlich, O
mecanismo da natureza, 1993). A desordem obriga a criar novas formas
de ordem, mais altas e complexas com menos dissipação de energia. A
partir desta lógica, o universo caminha para formas cada vez mais
complexas de vida e assim para uma redução da entropia (desgaste de
energia).
A nível humano e espiritual, se originam formas de
relação e de vida nas quais predomina a sintropia (economia de energia)
sobre a entropia (desgaste de energia). A solidariedade, o amor, o
pensamento, a comunicação são energias fortíssimas com escasso nível de
entropia e alto nível de sintropia. Nesta perspectiva temos pela frente
não a morte térmica, mas a transfiguração do processo cosmogênico se
revelando em ordens supremamente ordenadas, criativas e vitais.
Quanto
mais nossas relações para com a natureza forem amigáveis e entre nós,
cooperativas, mais a Terra se vitaliza. A Terra saudável nos faz também
saudáveis.
Leonardo Boff é articulista do JB on line,
ecoteólogo, filósofo e escreveu Opção Terra: a solução da Terra não cai
do céu, Record 2009.
A sociedade dos afetos regredidos, por Fran Alavina.
– on 19/10/2017Categorias: Brasil, Cultura, Destaques, Sociedade
Num tempo de sensibilidades afloradas, certas emoções ocupam o
centro da política. É neste ambiente que grupos primitivos porém hábeis
em manipulação de afetos, como o MBL, tentam emergir
Por Fran Alavina | Imagem: William Gropper, Leilão de Arte (1959)
A experiência do mundo contemporâneo parece ter gerado um consenso
estético de que vivemos tempos de insensibilidade. Ainda que possa soar
como algo piegas, e independentemente do espectro político –
progressista ou conservador – é cada vez mais audível o discurso de que o
caos atual, essa desordem programada a que assistimos atônitos, como se
fosse uma pura ficção, seria fruto de uma ordem de coisas de natureza
insensível. Para direita e para a esquerda, o certo é que este mundo
atual não é o melhor dos mundos possíveis.
Bastaria, por exemplo, ouvir os discursos de Jean-Luc Mélenchon (à esquerda) ou de Marina Le Pen
(à extrema direita), nas últimas eleições presidenciais francesas para
se ter certeza de que seus pressupostos eram, antes de tudo, estéticos.
Um “amontoado” de elementos discursivos contra a insensibilidade. Não se
quer com isso afirmar que os dois são iguais, mas sim que os dois estão
submetidos a uma ordem presente que faz dos afetos, das emoções e de todo campo sensível o lugar político mais determinante.
É preciso sensibilizar, emocionar, ganhar os afetos individuais como se
eles fossem somente uma mera determinação subjetiva, uma disposição
pessoal sem nexo com outras determinações histórico-sociais.
De fato, os usos perversos de nossas disposições afetivas criaram
esta ilusão de que somos pequenos átomos sensíveis, de funcionalidade
própria: sentiríamos sobre o que bem quiséssemos e como quiséssemos. A
realidade seria apenas o ativador dos circuitos sensíveis que
funcionariam de acordo com a nossa livre decisão. Ocorre, porém, que
nossas disposições sensíveis e afetivas não estão autonomizadas da
cultura, ou seja, elas não são meramente naturais, pois também são um
construto social.
Nossa sensibilidade nunca é solitária, ela se forma na interação com o mundo, que nos aparece em um primeiro momento como uma comunidade sensível,
isto é, como um lugar de seres que sentem de modo semelhante e em
conjunto. Se alguém ri daquilo que nos faz chorar, conjecturamos que
esta pessoa não é um dos nossos, pois incapacitada de formar conosco
solidariedade afetiva. Do mesmo modo, se perante algo que causa profunda
comoção social, alguém parece não se comover, dizemos que é um
insensível; e, dependendo da situação, chega-se mesmo a colocar em
questão sua humanidade. Aprendemos a medir o grau de humanização a
partir de uma teia sensível, de uma gama de afetos que construímos ao
longo do tempo, e que por nos conectar com nossa intimidade, acabamos
naturalizando como se fosse algo já dado de uma vez por todas.
Em virtude dessa naturalização de algo que não é natural, quase não
se percebe que no momento histórico que nossas capacidades sensíveis
estão expostas a um grau máximo de excitação, diz-se que são tempos de
insensibilidade: o período da sensibilização intermitente é dito
insensível. Será que o nosso sentir tornou-se um não sentir? Será que na
verdade nada sentimos quando achamos sentir?
A ascensão do virtual retirou do real a capacidade de ativador
primeiro de nossa sensibilidade. Não que o real não nos excite mais,
porém ele somente nos sensibilizará se nos for dado na forma do virtual.
Uma mistura que quando subordina o real à forma do virtual leva a
considerar, de modo estapafúrdio, que há uma “realidade aumentada”.
Dessa mistura gesta-se uma confusão entre real e virtual, confusão que
cria o paradoxo de que os tempos da sensibilidade absurda são tempos
insensíveis. Mas aí o que se chama insensibilidade, na maioria das
vezes, é incapacidade de lidar com os novos recursos que expandem nossa
sensibilidade; em outros casos, é o contrário, trata-se da capacidade de
gerir estes recursos de modo a se realizar uma gestão política dos
afetos. Fazendo parecer que a manipulação sensível-afetiva possa se
passar por espontânea e legítima, já que estamos acostumados a pensar
que nossa sensibilidade age autonomamente perante seus ativadores.
As manifestações destituintes de 2015 e 2016 marcaram para nós um modelo de gestão política dos afetos. Nelas, os afetos da política foram transformados cada vez mais na política dos afetos.
Do nosso lado, alguns contentaram-se com uma explicação superficial,
que até hoje ainda vem à tona, de que o ódio explicaria por si só todo o
circuito afetivo de uma passionalidade política reacionária. Se é certo
que há uma boa parcela de ódio, ele não age sozinho, e, ademais, não
pode ser assumido abertamente, uma vez que é uma das marcas da
construção social de nossa sensibilidade que odiar não é o mais nobre
dos sentimentos.
Neste modelo de gestão política dos afetos destacou-se um grupo gestor preparado: o MBL.
Foi um dos principais articuladores de como se deveria sensibilizar
para as manifestações. A desculpa de que a corrupção era o principal
alvo, criou uma normalização dos afetos, pois quem não se moveria contra
ela, quem não se indignaria contra o roubo? Contra a corrupção todos as
reações eram legítimas, espontâneas, corretas, em uma palavra: eram
naturais.
Esta naturalização vulgar dos afetos, que se não eram completamente
manipulados, não se poderia dizer meramente espontâneos, deu lugar a um
discurso que deve manipular a sensibilidade política para daí criar a
ilusão que há um consenso, quando, na verdade, há apenas uma aglutinação
de indivíduos que se movem por uma sensibilização que lhes é externa, e
sobre a qual não possuem domínio, mas que para eles se mostra como algo
espontâneo-natural.
Assim, a excitação que partiu do virtual, fez das ruas uma espécie de
“realidade aumentada”, já que as manifestações continuavam a ocorrer
mesmo depois de se ter ganhado as ruas e saído delas; e nestas mesmas
ruas, elas ocorriam sob a forma do virtual. Era como se os vídeos
assistidos nas páginas virtuais do MBL pudessem ser vistos apenas em
outro lugar que não o computador, ou o aparelho celular, obedecendo,
contudo, as mesmas formas. Era preciso excitar, de modo que ativação do
estado de excitação política perdurasse o máximo possível, pois como bom
gestor da manipulação emocional, o grupo sabe que não se pode exercer
um domínio ininterrupto sobre um estado de excitação por demais
prologando. O organismo excitado cansa, além de se dar por satisfeito
quando desconfia ter alcançado o ápice de suas aspirações.
O orgasmo político já aconteceu, posto que a destituição foi
realizada. Como nos momentos de pós-gozo, o grupo e seus mais fiéis
seguidores aproveitaram-se dos rendimentos de sua estratégia política,
elegeram vereadores alguns de seus mais destacados agentes excitadores,
sem, logo após as manifestações destituintes provocar um novo
estado de excitação do mesmo tipo. Era preciso elaborar um discurso
legitimador da experiência orgástica, para que ela pudesse ser recordada
e colocada em uso nos momentos em que não podendo ser de novo ativada,
ao menos prometesse a repetição da experiência.
Sem a promessa de repetição, o grupo perderia sua legitimidade, já
que se mostraria incapaz de conduzir novamente os mesmos estados de
excitação. Daí ter chegado o tempo de realizar um novo circuito de
comoção emocional e obscurecimento afetivo. Todavia, se agora não há
mais um estado político capaz de pôr em marcha as estratégias da
sensibilidade manipulada do grupo, como excitar de novo, já que seus
seguidores já estavam sob um longo período de abstinência?
Ora, a estratégia foi então voltar-se para aquele campo que apela mais diretamente ao sensível: a Arte.
Neste âmbito, como na Política, todo nosso campo afetivo pode
liberar-se dos usos cotidianos e das experiências hodiernas que excitam
pouco, e que se mostram para nós carentes de maior sentido. O
deslocamento dos canhões midiáticos do grupelho, que se desviou dos
eventos mais essencialmente políticos, não foi um simples desvio de
foco, mas a tentativa de continuar chamando atenção, vinculando entre
seus seguidores um estado de excitação como aquele de 2015 e de 16.
Pode-se identificar aí o mesmo princípio viciante dos narcóticos:
após um longo período de abstinência, é preciso repetir a dose. Afirmar
que o MBL é uma droga não é uma sentença de sentido metafórico, mas
plenamente literal. Por conseguinte, é preciso ficar atento, já que uma
vez estabelecido o ciclo vicioso, a tendência é que a dosagem seja
aumentada. De fato, funcionando como um tipo de ópio – talvez se pudesse
dizer o ópio dos liberais, se liberais por aqui houvesse – o
MBL descaracteriza a realidade, dando a seus seguidores aquilo que pode
excitá-los mais uma vez. O princípio de realidade é substituído pelo princípio de prazer, pois a ilusão e a farsa, na grande maioria dos casos, são mais prazerosas que a realidade.
De fato, não estava em questão uma discussão de cunho estético sobre
as obras que o grupo se empenhou em destratar em obsessivos expurgos. A
experiência artística foi deixada em segundo plano para dar lugar a um
tipo de julgamento moral. Este joga com a vulgarização e o
empobrecimento do campo sensível-afetivo. Na verdade, quando perguntamos
a alguém que se deixou contaminar pela manipulação do MBL,
declarando-se contra as exposições, sobre qual justificativa estética
embasou a crítica, no geral ouve-se que não é arte. Então, quando se
pergunta qual a sua respectiva definição de arte para que se possa
separar o artístico do não artístico, o silêncio é a resposta mais
frequente e menos vergonhosa. Depois de mais algumas indagações, apenas
se repete: “aquilo lá não era Arte”! Mas baseado em que se diz
que não é Arte? De novo o silêncio, ou o balbuciar de uma tentativa de
resposta que não vai além de uma referência ensimesmada.
Se o grupo fosse honesto em suas condenações estéticas, e até mesmo,
um pouco menos embrutecido, poderia ter acrescido às suas justificativas
uma noção de poética, de quais regras considera válidas no
plano do fazer artístico. Ou mesmo poderia apresentar exemplos daquilo
que consideram como arte autêntica. Contudo, isso seria exigir demais…
Em recente entrevista-almoço, uma das suas lideranças mais destacada,
ao justificar os atos contra as exposições, mostrou quão ricos são seus
conhecimentos. As exposições devem ser fechadas, segundo ele, por serem
financiadas com dinheiro público. Não aparece, uma única vez, um mísero
argumento de caráter estético. Tudo se passa como se ele estivesse
tratando de um delito comum, ou de uma de suas simplificações de
economia liberal. Segundo ele, em tempos de crise, Arte não é
prioridade. Depreende-se de sua resposta que o artístico é um bem de
luxo, não uma necessidade humana essencial. Sua resposta deixa ver que,
como já desconfiávamos, nunca se tratou de Arte, mas de reativar a sanha
manipuladora de afetos do MBL.
Esta sanha, porém, não pode se mostrar como é: embrutecida e criadora
de afetos repressores. É preciso dar uma roupagem de civilidade.
Durante suas respostas, Kim usa chavões como dizer que defende os
pilares da civilização ocidental “que basicamente são a filosofia grega,
o direito romano e a religiosidade judaico-cristã”. Quase no fim da
entrevista afirma que “de inspiração filosófica, sou platônico, acho que
a ideia precede a matéria, acho que isto ajuda a ter a compreensão de
que existe certo e errado, minha visão anti-relativista vem daí, de
Platão”. Qualquer estudante de Filosofia do primeiro semestre sabe que
está frase é uma das maiores vulgarizações do pensamento platônico,
coisa de quem, de fato, nunca se dedicou seriamente à leitura dos
diálogos do pensador grego — é aquele tipo de coisa que se diz à mesa
para se parecer mais culto. Ah, tinha esquecido que a entrevista foi
durante um almoço!
Contudo, no caso do afilado Kim, que se diz liberal, isto é ainda
pior, pois se tivesse lido um dos diálogos do autor que diz ser sua
fonte de inspiração, saberia que no seu modelo político ideal, o Estado
deve exercer um tipo de controle quase absoluto, bem mais além das
intervenções estatais que o moço do MBL tanto combate. Seria apenas
tragicamente contraditório, se também não fosse cômico: eleger como uma
de suas fontes de inspiração alguém que afirma o contrário do que você
defende. A explicação dessa contradição, contudo, está em uma declaração
dada um pouco antes. Sobre uma obra citada, ele diz: “esse, eu confesso
que não li inteiro, só uns capítulos porque é grande o negócio”. Talvez
ele nunca leia A República, de Platão, sua inspiração filosófica, para se dar conta da contradição, pois, como ele mesmo diz, “é grande o negócio”…
Kim parece gostar de livros tão curtos quanto suas ideias.
Os estranhos interesses por trás da ração humana, por Outras Palavras.
´
– on 23/10/2017Categorias: Brasil, Destaques, Políticas
Uma empresa que nada produz. Uma gestora ligada a causas de
ultra-direita. Uma “clínica” onde 14 morreram por intoxicação alimentar.
Um projeto de lei suspeito
Reportagem de Alex Tajra
Muito tem se falado sobre o projeto da Prefeitura de distribuir um
complexo nutritivo chamado de “farinata” para supostamente combater a
fome na cidade. A gestão João Doria, em parceria com a nebulosa
Plataforma Sinergia, produziu um alimento de qualidade duvidosa, com um
aspecto peculiar (lembra uma mistura do tradicional doce cajuzinho com
uma pedra de crack), proveniente de uma maçaroca de produtos próximos do
vencimento, desinteressantes para bares, restaurantes, supermercados,
etc.
Não há qualquer informação nutricional sobre o produto, tampouco foi
feita uma consulta aos órgãos competentes que deveriam fiscalizar os
acordos alimentícios feitos pelo poder público com empresas privadas,
tais quais o Ministério da Agricultura e a Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa). A Plataforma Sinergia também é uma
empresa sobre a qual poucas informações estão disponíveis. Uma delas é
de que é gerida pela empresária Rosana Perrotti, entusiasta do
“Allimento” (nome do produto, elaborado com um trocadilho sórdido) e fã
declarada do prefeito. Mas quem é Perrotti?
Numa pequena consulta feita na internet, nota-se que Rosana possui
uma posição político-partidária muito explícita. Não raro em sua página
pessoal no Facebook posta vídeos e textos criticando os “esquerdopatas”.
Em uma das publicações, uma crítica virulenta à “ideologia de gênero”
que o Ministério da Educação quer nos colocar “goela abaixo”. O
professor Felipe Nery, no vídeo, diz que “está acontecendo uma explosão
de crianças confusas com o próprio sexo” e que as crianças estão
“duvidando de si mesmas nas salas de aula”.
As postagens não são antigas; pelo contrário, foram publicadas nas
últimas semanas. Em outro vídeo, o pastor e senador Magno Malta (PR),
discorre sobre o ECA e como a performance do artista carioca Wagner
Schwartz, no MAM, supostamente incentiva a pedofilia. “Se a Organização
Mundial de Saúde pede para os fumantes não fumarem perto das crianças,
quanto mais um adulto induzir uma criança a tocar no órgão genital do
outro”, é uma das comparações feitas por Malta.
Em outra publicação, um vídeo de uma criança de no máximo cinco
anos explicando “como Deus escolheu David para ser rei”. Esse, sim, em
clara violação do Estatuto da Criança e do Adolescente, já que explora
uma criança com fins de proselitismo religioso. Rosana também não deixa
de lado o arauto da ética e da moral brasileiras, Sérgio Moro, e reserva
espaços em sua linha do tempo para alguns vídeos do magistrado,
exaltando a Operação Lava-Jato e seus feitos heroicos.
Profissionalmente a trajetória de Perrotti é igualmente cerceada por
uma neblina cinzenta. Em seu perfil no Linkedin, apresenta-se como
“Controller” na empresa Mead Johnson Nutrition, companhia estadunidense
“líder no mercado de nutrição” e concentrada na “investigação
científica” de nutrição para bebês e crianças.
No campo de experiência, a criadora da Sinergia se define como “CFO
(Diretora Financeira, em tradução livre) com foco em alimentação,
agronegócio e farmacêuticas multinacionais”, com passagens pela maior
empresa do mundo de alimentação, a Kraft Foods, e a gigante do
agrotóxico Monsanto.
Na rede social voltada para o mundo corporativo, a Plataforma
Sinergia é descrita como uma “rede de especialistas e organizações
dividindo sinergia para promover desenvolvimento sustentável por meio
das melhores práticas sociais e ambientais”. Apresentada como um
Instituto ou uma ONG pelos meios de comunicação, a empresa tecnicamente é
uma entidade privada com “atividades associativas não especificadas
anteriormente”, segundo dados do Cadastro Nacional. Em seu site, pede
doações pouco objetivas, em um grande banner onde se pode ler “A CADA
R$10 VOCÊ NUTRE 1 CRIANÇA POR 1 MÊS”, com dados bancários da empresa
abaixo.
A Sinergia, como já revelado pela rádio CBN, não possui sequer uma
fábrica. Atua em parceria com “indústrias licenciadas”, segundo
Perrotti, que não podem ser reveladas por conta de acordos de
confidencialidade. Aí entra também uma contradição, já que a comandante
da empresa disse nesta mesma entrevista que só foram produzidas amostras
da farinata, as quais foram distribuídas em algumas creches. No texto
de divulgação elaborado pela Prefeitura e publicado no dia 9 de outubro,
todavia, a gestão afirma que a Sinergia já possui 50 toneladas do
produto em estoque. Não se sabe onde, nem quando e nem o porquê dessa
produção.
Tem como colaboradores nomes de peso, como a Câmara Internacional de Comércio, a CNBB e a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Também não há qualquer menção sobre como ou por qual razão essas organizações mantêm vínculo com a Sinergia.
Tem como colaboradores nomes de peso, como a Câmara Internacional de Comércio, a CNBB e a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Também não há qualquer menção sobre como ou por qual razão essas organizações mantêm vínculo com a Sinergia.
Chamam atenção, porém, mais que qualquer colaborador, os nomes da
Fazenda da Esperança e da Missão Belém no portal da empresa. A primeira é
uma conhecida rede de “comunidades terapêuticas” privadas, onde se
tratam dependentes de drogas, e que possui uma série de contratos com o
poder público. A segunda também trata de dependentes químicos, porém
abriga moradores em situação de rua. Em junho deste ano o jornal O Estado de São Paulo
publicou uma reportagem contando que, só naquele mês, 14 pessoas
morreram na Missão Belém, todas com sinais de intoxicação alimentar.
A situação da Fazenda da Esperança é ainda mais conturbada. São
diversas denúncias de alimentação ruim, tratamento negligente e até
acusações de escravidão. Em 2014, quatro jovens de Alagoas, internados
na unidade de Poço das Trincheiras, denunciaram que estavam sendo
tratados como escravos, recebendo uma comida de péssima qualidade e que a
situação é maquiada quando um grupo vinculado à Igreja Católica fazia
visitas.
Cristiano dos Santos, Max Gonçalves, Italo Henrique e Jonata da Silva
foram entrevistados pela Rádio Milênio e as denúncias foram amplamente
repercutidas por veículos regionais. “A comida não prestava. A que
prestava quem comia era o coordenador Josafá”, disse Jonata à rádio na
época, ainda relatando que o local não possuía psicólogos e nem médicos.
Em 2015, um caso de violência marcou a Fazenda da Esperança de
Guaratinguetá. Um homem teria invadido o local e assassinado uma freira
para roubar dinheiro. O crime, no entanto, nunca foi esclarecido, e
houve uma clara tendência em afastar a possibilidade de ter sido
cometido por alguém de dentro da instituição.
A última notícia que se tem do assunto é um alento aos conselhos de
nutrição e aos profissionais do segmento, que se posicionaram de forma
contrária à farinata nas últimas semanas. A Promotoria de Justiça de
Direitos Humanos de São Paulo instaurou em 19/10 um procedimento
administrativo afim de obter mais informações sobre o “granulado
nutricional” de João Doria e Rosana Perrotti. Além disso, a Comissão de
Saúde, Promoção Social, Trabalho e Mulher, da Câmara Municipal de São
Paulo também pediu esclarecimentos à prefeitura.
O Ministério Público da capital encaminhou cinco perguntas sobre o
“Allimento” para a Prefeitura, entre elas o do porquê o granulado
substituir os alimentos convencionais. Outro questionamento é a
composição e o valor nutricional do produto, onde o MP também solicitou
um laudo técnico para diagnosticar cientificamente o “Allimento”. O
texto é assinado pelo promotor José Carlos Mascari Bonilha.
A Plataforma Sinergia e o “combate à fome”
Uma das relações pouco exploradas pela mídia até agora é a da
Plataforma Sinergia com o Projeto de Lei 6867 de 2013, que instala a
Política Nacional de Erradicação da Fome e de Promoção da Função Social
dos Alimentos – PEFSA. A norma foi proposta pelo deputado federal
Arnaldo Jardim (PPS-SP) e, depois de alguns meses parada, voltou a
circular com mais intensidade pelas comissões da Câmara dos Deputados no
segundo semestre desse ano. A última movimentação foi no dia 14 de
setembro, cerca de um mês antes do anúncio feito pela Prefeitura do
acordo com a Sinergia.
A lei, que estabelece diversas diretrizes em relação ao combate à
fome e ao desperdício de alimentos, possui alguns dispositivos que
claramente tendem a beneficiar o setor privado e seguem quase que
exatamente o mesmo modus operandi que João Doria adotou com a Sinergia.
No PL, diversas formas de isenção fiscal e incentivos ao setor privado
estão regulamentadas, tais como o inciso terceiro do Art. 9º:
“III – isenção de Imposto sobre Produtos Industrializados na
fabricação pela indústria nacional de máquinas e equipamentos cujo uso
esteja comprovadamente associado ao combate à insegurança alimentar;”
A relação mais explícita entre a Plataforma Sinergia e o Projeto de
Lei de 2013, porém, está na justificativa escrita por Jardim, ao fim do
documento:
“Ao mesmo tempo, também em Roma, na sede da FAO, reunir-se-ão
representantes do projeto “Save Food”, que discute 170 soluções
selecionadas em nível global voltadas para a otimização do uso de
alimentos e salvar vidas. Dentre as soluções selecionadas, encontra-se a
proposta pelo ‘Projeto Fome’ da Plataforma Sinergia, que desenvolve
processos para evitar a destinação inadequada de alimentos.”
Revolução Russa: mitos, erros e atualidade (2), por Eduardo Mancuso
– on 24/10/2017Categorias: Autores, Destaques, Mundo
Proibição dos partidos. Requisições forçadas de trigo. Criação da
polícia política. Paz desastrosa. Como os equívocos iniciais do poder
soviético contribuiriam para frustrar o primeiro ensaio socialista
Por Eduardo Mancuso | Imagem: Marc Chagall, A Revolução (1937)
_
MAIS
Esta é a segunda de três partes de A Revolução Russa de Outubro de 1917, livro recém-lançado por Eduardo Mancuso. Historiador, colaborador editorial de Outras Palavras, ele soma, à militância de mais de trinta anos pelo socialismo democrático, a capacidade de refletir sobre esta luta, seus avanços e seus erros. Breve e pedagógico, o texto não cede, porém, às simplificações e dogmatismos. É uma provocação útil, tanto aos que querem começar a estudar a experiência soviética quanto a quem deseja rever as polêmicas que a marcaram
Esta é a segunda de três partes de A Revolução Russa de Outubro de 1917, livro recém-lançado por Eduardo Mancuso. Historiador, colaborador editorial de Outras Palavras, ele soma, à militância de mais de trinta anos pelo socialismo democrático, a capacidade de refletir sobre esta luta, seus avanços e seus erros. Breve e pedagógico, o texto não cede, porém, às simplificações e dogmatismos. É uma provocação útil, tanto aos que querem começar a estudar a experiência soviética quanto a quem deseja rever as polêmicas que a marcaram
Clique aqui para ler a primeira parte.
–
Os erros políticos do bolchevismo no poder
Após enfrentar e superar os mitos anticomunistas sobre a Revolução de
Outubro, é legítimo perguntar, à luz da evolução posterior da Rússia
dos Sovietes em União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), se
políticas adotadas pelos bolcheviques depois da tomada do poder
favoreceram ou não o processo de degeneração do primeiro Estado
operário.
Tanto Rosa Luxemburgo como Alexandra Kolontai e Victor Serge (entre
outros marxistas) tinham razão em criticar os bolcheviques pela
repressão ao Krondstadt, a restrição às liberdades políticas, a
proibição dos partidos operários reformistas e das próprias frações e
tendências internas no Partido Comunista. Porém, há uma grande
diferença, um verdadeiro salto de qualidade entre estes graves erros e a
lógica empregada pelo stalinismo, que não estava baseada na extensão da
revolução, mas sim na consolidação de uma elite burocrática
privilegiada.
Enquanto para Lenin, Trotsky e Rosa Luxemburgo, a revolução russa era
só o prelúdio de uma imprescindível revolução europeia (como haviam
dito Marx e Engels algumas décadas antes), não era assim para Stalin,
que considerava seriamente a possibilidade de construir o socialismo em
um só país (e a subordinação de toda a revolução nacional posteror às
necessidades de estabilização do regime da burocracia soviética).
Ernest Mandel considera que as deformações burocráticas iniciais dos
anos 1920, e a degeneração contrarrevolucionária consolidada na década
de 1930, foram causadas fundamentalmente pelas condições políticas e
materiais objetivas da sociedade russa e da situação internacional.
Porém, apoiando-se na crítica precursora e fraterna de Rosa Luxemburgo
aos bolcheviques, assim como no balanço posterior de Victor Serge, ele
reconhece que decisões e atitudes concretas tomadas pelo partido de
Lenin, até a sua destruição pelo stalinismo, influenciaram decisivamente
no processo de burocratização do regime, base objetiva de sua posterior
metamorfose em ditadura totalitária. Coerente com sua origem
trotskista-luxemburguista, Mandel vai desenvolver a análise crítica
sobre os erros políticos dos primeiros anos da revolução com base nos
princípios marxistas da democracia socialista e da autoemancipação da
classe trabalhadora, sem nunca perder de vista o divisor de águas
fundamental entre revolução e contrarrevolução, à luz do julgamento
histórico sintetizado pela frase que Trotsky costumava usar: “um rio de
sangue separa o bolchevismo do stalinismo”.
A proibição dos partidos soviéticos (e das frações e tendências)
Segundo Mandel, o mais grave erro político dos bolcheviques foi a
proibição dos partidos soviéticos após a vitória do Exército Vermelho na
guerra civil de 1918-1920. Trotsky formulou autocriticamente sobre essa
questão um juízo explícito em 1936:
“A proibição dos partidos de oposição produziu a das frações [no seio do partido bolchevique]; a proibição das frações levou a proibir o pensar de maneira diferente do que o chefe infalível. O monolitismo policialesco do partido teve por consequência a impunidade burocrática que, por sua vez, se transformou na causa de todas as variedades de desmoralização e de corrupção.”[1]
É inegável que em 1920 os operários consideravam os mencheviques como
um partido soviético, já que numerosos membros desse partido foram
eleitos em várias cidades, inclusive em Moscou. E isso também era
verdade com relação aos anarquistas, que mantinham influência em algumas
regiões entre os camponeses (como demonstram as tropas lideradas por
Makhno). Sem dúvida alguma, a proibição dos partidos soviéticos e,
posteriormente, das frações no seio do partido governamental (já que
cada fração é um outro partido em potencial) eram entendidas por Lenin e
pela maioria da direção bolchevique como medidas provisórias e
extraordinárias ligadas a circunstâncias particulares, que deviam ser
revertidas quando a situação objetiva permitisse. Como sabemos, a
realidade foi bem diferente. Sobre esse tema, Mandel levanta outra
questão, de alcance ainda mais geral: quais foram as consequências das
teorias formuladas para justificar tais proibições? Ele afirma que, a
longo prazo, estas justificações teóricas causaram mais dano que as
medidas em si. A história do socialismo no século 20 atesta isso de
forma dramática.
A
proibição dos partidos soviéticos pelos bolcheviques e das frações,
tendências e grupos dentro do próprio partido comunista – à qual se
opuseram Alexandra Kolontai, da Oposição Operária, e a Oposição
Centralismo Democrático – expressa uma concepção substitucionista da
construção partidária e do socialismo. Segundo essa concepção
(majoritária também entre social-democratas, com notáveis exceções), a
maior parte do proletariado seria pouco consciente para poder governar.
Essa convicção colidia frontalmente com a experiência histórica da
Comuna de Paris, teorizada por Marx e defendida pela Primeira
Internacional. Na sequência, esse ponto de partida levou a conclusão de
que, em lugar da classe operária realmente existente, quem devia
governar e decidir era o partido. Finalmente, chegou-se a formulação de
que o aparato partidário, e inclusive a sua direção ou seu “chefe
infalível”, eram os instrumentos decisivos para mudar a sociedade.
Stalin expressou o conteúdo essencial da teoria substitucionista de
forma brutal e direta: “os quadros decidem sobre tudo”.
Mandel considera que a doutrina substitucionista do partido alimentou
uma concepção verticalista, estatista, paternalista e autoritária do
poder, que levou aos piores excessos e crimes do stalinismo. Nessas
condições, esvazia-se o espaço democrático da classe (os Sovietes e
conselhos populares) do seu componente vital, pois não se assegura o
exercício direto do poder por parte do proletariado e das massas
trabalhadoras. Sem o multipartidarismo real os Sovietes, como parlamento
das classes trabalhadoras, não podem conhecer a democracia. Não podem
escolher e eleger realmente entre diversas opções de política econômica,
social, cultural etc. E na medida em que a supressão da democracia
soviética toma um aspecto repressivo, esta repressão já não contempla
somente a burguesia e os segmentos contrarrevolucionários, mas golpeia
também a classe trabalhadora.
Uma concepção e uma orientação política dessa natureza contrapõem-se
ao que foi a principal contribuição de Marx à teoria socialista da
organização revolucionária: a ideia de autolibertação e auto-organização
do proletariado. Como o próprio Marx escreveu nos estatutos da Primeira
Internacional, a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios
trabalhadores (e não dos sindicatos, dos partidos, dos governos ou dos
Estados). A classe, enquanto sujeito histórico da revolução, não pode
ser substituída pelos seus instrumentos (indispensáveis, é sempre
importante assinalar) políticos e organizativos. Esses instrumentos são
fundamentais, mas nunca poderão substituir a atividade consciente, a
práxis real das classes trabalhadoras e das camadas assalariadas,
exploradas e oprimidas. Segundo Rosa Luxemburgo, o papel emancipador da
autoatividade da classe trabalhadora não é um “luxo” da democracia
socialista, mas a sua condição histórica.
Mandel salienta que a ideologia substitucionista não pode ser
considerada apenas um “desvio político”, e sim a expressão dos
interesses materiais e sociais da burocracia operária. E por sua vez,
essa ideologia substitucionista justificou politicamente e favoreceu o
processo objetivo de burocratização da Revolução de Outubro.
O comunismo de guerra
A guerra civil e a intervenção das potências imperialistas contra a
Rússia dos Sovietes explicam em parte as origens do denominado
“comunismo de guerra”. Para Mandel, é difícil julgar até que ponto a
política de requisição de trigo – que era a base do “comunismo de
guerra” — por parte do poder soviético, assediado pela contrarrevolução,
era inevitável durante os anos da guerra civil (1918-1920). Porém, é
certo que esta política (sem dúvida, muito importante para garantir o
abastecimento do Exército Vermelho) ameaçava, cada vez mais, romper a
aliança operário-camponesa, que era a base fundamental do poder
soviético.
Esta política levou a um retrocesso pronunciado das forças
produtivas, sobretudo da produção de gêneros alimentícios, o que estava
afundando cada vez mais a economia russa. Mandel menciona que a produção
agrícola, essencialmente de cereais, retrocedeu 30%; o rebanho de gado,
equinos e porcos retrocedeu mais de 20%, e a produção industrial, 60%.
Em troca da mesma quantidade de trigo, o campesinato recebia somente o
equivalente a 5% dos produtos industriais que recebia em 1917-1918. Daí o
rechaço dos camponeses em vender trigo em troca de um papel-moeda que
praticamente não tinha valor. E daí a necessidade do Estado requisitar o
trigo e demais gêneros essenciais.
Essa situação levou a queda absoluta da produção de trigo, e se a
produção de grãos baixava, havia cada vez menos trigo a requisitar. A
isso seguiu-se uma tendência generalizada à especulação e ao mercado
negro. Trotsky, como chefe do Exército Vermelho durante a guerra civil,
comandava um exército composto, basicamente, de camponeses. Viajava
através de todo o imenso país e compreendeu, antes de Lenin e dos demais
dirigentes do partido, que a política de requisições havia chegado ao
limite do suportável para as amplas massas rurais. Por isso, ainda em
1920, no período final da guerra civil, propôs que se adotasse uma nova
política, mas isso foi rechaçado.
Segundo o juízo do historiador Roy Medvedev sobre esta questão, a
tentativa de continuar a política de requisição depois de finalizada a
guerra civil provocou a crise social de 1921, inclusive a deflagração do
levante dos marinheiros de Krondstadt.[2]
Nesse contexto de crise aguda, Lenin propôs emergencialmente, e o
partido aprovou, a chamada Nova Política Econômica (NEP, na sigla em
russo), abandonando as requisições forçadas e liberando o funcionamento
de mercados para a produção camponesa, visando favorecer o
desenvolvimento da pequena indústria privada e, inclusive, buscar
investimentos externos.
Mandel critica alguns teóricos que idealizaram a política de
“comunismo de guerra”, e dirigentes bolcheviques que, fazendo da
“necessidade uma lei”, teorizaram as restrições da escassez, do
racionamento e, inclusive, o retorno à economia “natural”. Ele lembra
que toda a tradição marxista e todo o senso comum do proletariado,
historicamente, argumentam contra qualquer tipo de “comunismo da
miséria”, e que na Rússia soviética esfomeada e destruída após a guerra
mundial e a guerra civil, a política de “comunismo de guerra” não
conseguia alimentar o país, muito menos viabilizar o retorno do
crescimento industrial e agrário.
As negociações de paz
As negociações de Brest-Litovsk foram, para Mandel, outro erro grave
cometido pela maioria dos dirigentes bolcheviques, com a notável exceção
de Lenin, que nesse momento alcançou, talvez, o auge de sua célebre
lucidez política. O atraso para concluir as negociações, fruto da
profunda divisão no interior do partido bolchevique e do seu partido
aliado, os “Socialistas Revolucionários” (SR) de esquerda, radicalmente
contrários à paz em separado com os impérios alemão e austríaco, levou
Lenin à exasperação. Essa controvérsia política estratégica obrigou
Trotsky, na condição de chefe da delegação russa nas negociações com os
representantes dos impérios centrais, a idas e vindas táticas, denúncias
propagandistas do imperialismo e proclamações internacionalistas
dirigidas aos trabalhadores europeus, tentando ganhar tempo nas
tratativas de paz, apostando todas as fichas na insurreição proletária
ou na derrota militar imediata do Reich alemão (frente às potências
ocidentais).
Mandel salienta que havia uma diferença capital entre as condições
propostas pelos impérios centrais durante a primeira fase das
negociações de Brest-Litovsk, iniciadas em dezembro de 1917, e as
arrancadas depois da interrupção das mesmas pelos soviéticos e a
retomada da ofensiva militar pelo exército alemão. As primeiras eram
duras, mas aceitáveis para uma boa parte da opinião operária e
pequeno-burguesa urbana. Já aquelas impostas após a capitulação russa
frente à imparável invasão alemã, foram sentidas como uma humilhação
nacional e uma traição aos interesses internacionais do proletariado por
parte da Rússia soviética. Implicavam o controle da Ucrânia por parte
da Alemanha imperial, e a perda de boa parte do país. As reações
internas foram violentas, provocando a ruptura dos SR de esquerda
(inclusive o atentado contra Lenin) e estimulando as forças
contrarrevolucionárias para guerra civil.
A maior parte do Comitê Central e dos quadros bolcheviques, com
Bukharin à frente, rechaçaram assinar imediatamente as condições de paz
colocadas na primeira fase das negociações de Brest-Litovsk, e assim
como Trotsky, com sua posição intermediária (“nem guerra, nem paz”),
invocaram o sentimento da maioria da população urbana (e as expectativas
no levante do proletariado europeu). Porém, não era esse o sentimento
da população camponesa, muito menos dos soldados de um exército russo em
plena decomposição. E, sobretudo, essas posições não concluíam em
nenhuma alternativa concreta, apenas em palavras de ordem abstratas,
como a derrubada imediata das dinastias imperiais da Alemanha e da
Áustria e a organização da “guerra revolucionária”.
O resultado da negativa em assinar imediatamente a paz após o início
das negociações foi permitir ao exército alemão ocupar novos
territórios, principalmente a Ucrânia, arrancando suas imensas riquezas
da República Soviética. Lenin, que havia previsto esse terrível
desenlace em consequência da divisão no partido, finalmente conseguiu
maioria na direção (com o apoio de Trotsky), e assinou a capitulação,
ainda em tempo de evitar que o exército alemão derrubasse o governo
revolucionário. Mas esse erro político custou muito caro e cobrou seu
preço imediatamente, facilitando as condições políticas para as forças
reacionárias deflagrarem a guerra civil.
O terror vermelho e a polícia política
A questão do terror vermelho, legítimo como instrumento de
sobrevivência física e de defesa da revolução, e a controversa criação
da polícia política do Estado – a Tcheka -, estão estreitamente ligadas
às consequências da paz de Brest-Litovsk e ao início da guerra civil.
Ambas as questões, segundo Mandel, só podem ser entendidas à luz desses
acontecimentos.
Lenin se esforçou para não ter que recorrer ao terror após Outubro.
Apesar da atitude inicial dos bolcheviques, que não procederam a
fuzilamentos e nem execuções indiscriminadas, e inclusive soltaram
contrarrevolucionários presos no processo da tomada do poder,
acreditando que assim “desarmavam” politicamente as forças reacionárias,
isso não se mostrou realista com a evolução dos acontecimentos depois
da vitória revolucionária. Os generais Krasnov, Kaledin e outros
oficiais de alta patente detidos durante a insurreição de Outubro foram
liberados sob a promessa de que se absteriam de toda ação
antigovernamental. Porém, de imediato faltaram com a sua palavra,
tomaram em armas, deflagraram o “terror branco”, causando a morte de
milhares de camponeses e operários apoiadores da revolução.
Depois de sofrer o ataque e a violência dos contrarrevolucionários, o
ambiente político modificou-se radicalmente, e o poder soviético reagiu
rapidamente, percebendo claramente que a ameaça militar das forças da
reação interna, com amplo apoio político e logístico das potências
imperialistas, representava um risco real para a revolução. Segundo
Mandel, até março de 1920, o número total de vítimas do terror vermelho
foi avaliado oficialmente em 8.620 pessoas, enquanto alguns
historiadores avaliaram em mais de 10 mil. Após a derrota dos exércitos
brancos de Denikin e Kolchak, o governo soviético aboliu a pena de morte
durante vários meses (até sua reintrodução durante a guerra contra a
Polônia, que havia invadido o território russo).
A questão da criação da Comissão Extraordinária (Tcheka), para
Mandel, é algo muito diferente da adoção de medidas concretas de defesa
da revolução e da violência inevitável em uma guerra civil. A Tcheka
significava a criação de uma instituição de Estado, um aparato
burocrático permanente de difícil controle (como submeter a controle
público uma polícia política?) que, com o tempo vai acabar por tomar o
lugar da infame polícia secreta czarista (a temível Okhrana).
Os arquivos da Tcheka mostram que desde o princípio, e apesar da
honestidade pessoal de Felix Dzerzhinsky, seu primeiro dirigente, a
“degeneração profissional”, para usarmos as palavras de Victor Serge,
estavam presentes. Membros e informantes da organização desviavam uma
parte de toda fonte de riqueza tomada de especuladores ou responsáveis
por “crimes econômicos” contra a sociedade. Além da dinâmica de
corrupção, a dificuldade de controle político era real, como atestavam
Lenin e Kamenev. Terminada a guerra civil, Kamenev propõe a reforma dos
serviços de polícia e, com o apoio de Lenin, enfrenta a resistência de
Dzerzhinsky e restringe a competência da Tcheka aos problemas de
espionagem, aos atentados políticos e à proteção dos trens e dos
armazéns. Qualquer outra atividade repressiva devia ser incumbência do
Comissariado do Povo para a Justiça. Isso tudo, é claro, mudou
radicalmente anos mais tarde, com o “thermidor” da revolução e Stalin no
poder.
_________________
[1] Trotsky, L. La Révolution trahie. Paris, 1963, p. 75.
[2] Medvedev, R. La Révolution d’octobre. Paris, 1978, p. 210.
O obscuro controle sobre a mídia no Brasil, por Patrícia Cornils.
Além de muito concentrada, propriedade sobre meios de comunicação
está oculta. Há agora um esforço sistemático para abir a caixa preta.
Vale conhecê-lo
Por Patrícia Cornils
Quem são os donos das tevês, das rádios, dos jornais e dos sites pelos quais nos informamos? Quem, em última instância, controla uma fatia importante das notícias que chegam até os brasileiros e brasileiras? Para responder a esta pergunta, a Repórteres Sem Fronteiras realiza, desde 2015, um projeto chamado Media Ownership Monitor (MOM), ou Monitoramento da Propriedade da Mídia. A partir de dados de audiência, a pesquisa mapeia quais são os principais veículos impressos, online, rádios e tevês do país. Busca as empresas que os controlam. E quem são os donos dessas empresas, que outros negócios possuem, que relações políticas têm. No Brasil, a pesquisa foi feita pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
Os veículos de maior audiência são as redes de TV aberta Globo, SBT,
Record, Band, RedeTV!, RecordNews, TV Brasil, Rede Vida e Gospel; as
TVs por assinatura Globo News e Band News; as redes de rádio Jovem Pan,
Gaúcha Sat, Band FM, Globo AM/FM, Transamérica, Mix FM, CBN, Rede
Católica de Rádio, Rede Aleluia, Bandeirantes, BandNews e Novo Tempo; os
portais Globo.com, UOL, Abril, IG, ClicRBS, Estadão, R7, Revista Fórum,
O Antagonista e BBC; as revistas Veja, Época e IstoÉ e os jornais Folha
de S. Paulo, O Globo, Super Notícia, O Estado de S. Paulo, Zero Hora,
Extra, Diário Gaúcho, Agora São Paulo, O Estado de Minas, Valor
Econômico, Correio Braziliense, O Tempo, Correio do Povo e Daqui.
Quem é o dono?
Descobrir quem são os controladores dessas empresas não é um percurso
simples. A pesquisa pediu essas informações aos 50 veículos. Nenhum
respondeu. Não há, no Brasil, um dispositivo legal ou constitucional
específico que obrigue as empresas de capital fechado a publicar sua
composição societária – a não ser no caso das rádios e tevês, que
recebem do governo federal o direto de usar as frequências necessárias
para emitir seus sinais. São, portanto, prestadoras dos serviços
públicos outorgados e precisam manter informações sobre quem as controla
em uma base de dados pública, administrada pela Agência Nacional de
Telecomunicações, chamada Sistema de Acompanhamento de Controle
Societário (Siacco).
Para consultar as informações disponíveis no Siacco é necessário
saber o CNPJ de cada empresa e qual, entre as várias sociedades dos
donos dos veículos de comunicação de massa, recebeu a outorga. Que
cidadão comum vai dispor seu tempo para fazer uma pesquisa assim? Além
disso, nem sempre os resultados são conclusivos. Há empresas que
simplesmente não declaram a participação de cada um dos acionistas. Há
empresas que têm 30% de seu capital em mãos de “Outros” ou ainda aquelas
que tem outras pessoas jurídicas como donas.
Legalmente, sociedades empresariais precisam manter nas Juntas
Comerciais e cartórios sua composição acionária, mas não há políticas de
transparência e de acesso à informação eficientes para o acompanhamento
dessas informações. As Juntas têm caráter local ou regional (estadual) e
a possibilidade de acesso a essas informações varia de acordo com o
município ou Estado em questão – em muitos deles, a cada consulta é
cobrada uma quantia próxima a R$ 200,00. Por CNPJ. E igrejas, fundações e
instituições sem fins lucrativos não se registram nas Juntas
Comerciais.
Um agravante deste quadro é a liberalidade total para que os grupos
mudem, transfiram, comprem e vendam participações acionárias parciais ou
totais. A Lei 13.424/2017, aprovada após uma Medida Provisória do
governo de Michel Temer, eliminou a determinação que proibia as
emissoras de realizar alterações societárias antes da aprovação do
governo e restringiu-as à necessidade de informar as mudanças, depois de
feitas, ao Ministério de Ciência, Tecnologia, Informação e Comunicação
(MCTIC) – que então as publica, da maneira como são enviadas pelas
empresas, no Siacco.
O Monitoramento da Propriedade da Mídia (MOM) vai divulgar todos
esses levantamentos para que pessoas comuns, que não sejam
pesquisadores, especialistas, investidores ou jornalistas investigativos
saibam quem controla as informações que chegam até elas. Vai fazer mais
que isso: vai mostrar também em quais outros setores os donos da mídia
têm interesses econômicos. Há donos de rádios que possuem bancos.
Faculdades e escolas privadas. Há donos de grupos de comunicação, entre
os 50 maiores do Brasil, que foram prefeitos de suas cidades. Outros
possuem usinas de etanol. Empresas do mercado imobiliário. Em
siderurgia. E disponibilizará um site voltado ao público em geral, onde
será possível navegar por veículo de mídia, por grupos ou proprietários.
O MOM constrói, ainda, indicadores sobre os riscos existentes no país
ao pluralismo na mídia.
Painel
Sabemos que a concentração na mídia é um problema histórico no
Brasil. O que há de novo e de velho nesse problema? Quais os desafios
atuais para promover a pluralidade e diversidade de vozes? No lançamento
do MOM, para responder essas questões, faremos um painel com Cynthia
Ottaviano (primeira Defensora dos Interesses do Público na Argentina,
onde esta defensoria foi criada pela Lei de Meios e presidenta da
Organização Interamericana de Defensores das Audiências), Martin Becerra
(autor de livros sobre a concentração da propriedade da mídia na
América Latina e seus impactos na democracia) e Franklin Martins
(ex-ministro chefe da Secretaria de Comunicação Social, participou do
debate sobre a possibilidade de uma lei de meios no Brasil). Eles e ela
vão falar sobre sua experiência com a defesa dos interesses do público
de meios de comunicação, a relação entre a concentração da propriedade
da mídia e a democracia, as leis que regulam este setor em outros países
– mas não no Brasil, onde não há Lei de Meios de Comunicação.
O lançamento será na terça-feira, dia 31 de outubro, a partir das 18
horas, no auditório do Sindicato dos Engenheiros de São Paulo (Rua
Genebra, 34 – Centro – São Paulo). Haverá também transmissão online do
evento. Veja mais informações em http://bit.ly/2yRfWMc. E venha saber
quem controla a mídia no Brasil.
Dossiê Mariana: a infâmia global das corporações, por Mauro Lopes.
– on 26/10/2017Categorias: Brasil, Capa, Meio Ambiente, Políticas
Devastação provocada pela Vale-Billiton-Samarco vira caso central
de campanha para que a ONU controle ação dos grandes grupos
transnacionais. Conheça o dossiê multimídia
Por Mauro Lopes
–
MAIS:
A Lama da Destruição
Textos, infográficos, fotos e vídeos compõem o dossiê sobre a tragédia de Mariana e a irresponsabilidade das corporações globais. A versão completa, em português — um material didático de enorme valor — pode ser acessada aqui
–
MAIS:
A Lama da Destruição
Textos, infográficos, fotos e vídeos compõem o dossiê sobre a tragédia de Mariana e a irresponsabilidade das corporações globais. A versão completa, em português — um material didático de enorme valor — pode ser acessada aqui
–
Uma rede internacional de movimentos sociais e 18 organizações
católicas, de 16 países, lançou nesta segunda-feira (23/10), em todo o
mundo, um dossiê multimídia sob o título A lama da destruição,
que apresenta de maneira detalhada a criminosa tragédia do rompimento da
barragem do Fundão, Mariana (MG). Prestes a completar dois anos
(ocorreu em 5/11/2015), foi o maior desastre ambiental da história
brasileira e um dos maiores em todo o planeta.
O lançamento coincide com a terceira rodada do grupo de trabalho da
ONU que elabora um tratado para responsabilizar as corporações
transnacionais por violações aos direitos humanos e do planeta – como
foi o caso da Samarco, empresa de sociedade anônima controlada em partes
iguais pela brasileira Vale e pela anglo-australiana BHP Billiton.
Pelos menos 19 pessoas morreram e uma enxurrada de lama destruiu
vilarejos, 349 casas, escolas e igrejas, além de contaminar o Rio
Gualaxo do Norte, o Rio do Carmo e o próprio Rio Doce. O dossiê informa
que, segundo a empresa de consultoria americana Bowker Associates, o
desastre de Mariana representa um triplo recorde mundial da história da
mineração: 1. trata-se do derrame de uma quantidade de lama inédita,
entre 32 e 62 milhões de metros cúbicos; 2. uma extensão de destruição
ao longo de 680 km; e 3. danos avaliados entre 5 e 55 bilhões de
dólares.
A enxurrada de lama atingiu o Oceano Atlântico, no Espírito Santo.
Não apenas a população de Mariana sofreu as consequências do desastre,
mas, sim, toda a população próxima ao rio Doce. Os indígenas da tribo
indígena Krenak, que possuem reserva cortada pelo rio, na época do
acidente, relataram estar sem água para consumo, banho e limpeza de seus
objetos, por exemplo. De acordo com o governo federal 600 famílias
ficaram desabrigadas e milhares foram afetadas. .
Veja a seguir um dos impactantes vídeos do dossiê. São imagens de Bento Rodrigues uma semana após o rompimento da barragem.
Créditos: © TerraSense/Greenpeace, Música: Sad Marimba Planet by Lee Rosevere CC BY 4.0
A iniciativa é da rede CIDSE,
aliança internacional de organizações católicas de desenvolvimento e
voltadas ao tema dos direitos humanos, com 18 organizações de 16 países
(veja a lista e os links para os sites ao final). Participaram do
projeto quatro organizações no Brasil, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Projeto #lamaquemata Thomas Bauer e Joka Madruga e a Articulação Internacional de Atingidos e Atingidas pela Vale. Além delas, o Instituto Pacs – Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS) e a rede latino-americana e mundial Iglesias y Mineria. E ainda a agência católica austríaca DKA.
O texto ficou sob a responsabilidade da jornalista Christian Russau, dO Centro de Pesquisa e Documentação Chile-América Latina (Forschungs- und Dokumentationszentrum Chile-Lateinamerika e.V. – FDCL),
associação sem fins lucrativos fundada em 1974 em Berlim. O FDCL é uma
das organizações mais antigas no movimento de solidariedade da América
Latina.
São integrantes da rede CIDSE:
Broederlijk Delen – Bélgica
CAFOD – Inglaterra e País de Gales
CCFD – Terre Solidaire – França
Center of Concern – Estados Unidos
Cordaid – Holanda
Development & Peace – Caritas do Canadá
Entraide et Fraternité – Bélgica
eRko – Eslováquia
Fastenopfer – Suiça
FEC – Portugal
FOCSIV – Itália
KOO – Áustria
Manos Unidas – Espanha
Maryknoll Office for Global Concerns – Estados Unidos
MISEREOR – Alemanha
Partage.lu – Luxemburgo
SCIAF – Escócia
Trócaire – Irlanda
A ironia bumerangue de Gilmar Mendes sobre o trabalho escravo, por Juan Arias.
É possível que o polêmico juiz do STF e presidente do TSE, Gilmar Mendes, esteja se perguntando por que a sua ironia sobre o trabalho escravo acabou virando um bumerangue que colocou as redes sociais contra ele.
A sociedade brasileira, desta vez sem opiniões divididas, caiu com
tudo sobre o magistrado. O que ele disse para suscitar tanta ira?
Lembremos. O governo conservador de Temer está tentando atenuar a legislação que pune, no Brasil, o trabalho realizado em condições de escravidão, o que significa um retrocesso grave na luta contra os novos senhores de escravos. A sociedade se rebelou a tal ponto que Temer acabou prometendo rever alguns itens da nova lei.
Diante de uma sociedade indignada com o governo, ocorreu ao
magistrado a ideia de tratar do assunto com uma ironia barata. “Eu me
submeto a um trabalho exaustivo, mas com prazer, e não considero que
isso seja trabalho escravo”, comentou, e, insistindo em sua ironia,
perguntou se também seria trabalho escravo “o dos motoristas dos juízes
do Supremo que ficam esperando no subsolo da garagem”. Era como dizer:
não exageremos querendo ver como escravo todo e qualquer trabalho.
O que o juiz não entendeu é que a ironia e a sátira
compõem um dos gêneros literários mais difíceis e perigosos de se usar.
É preciso uma inteligência aguçada para adotá-lo. Caso contrário, ele
se transforma, como neste caso, em um bumerangue.
Gilmar Mendes não entendeu que, desde os gregos
até os nossos dias, passando pelos romanos, a sátira deve ser dirigida
contra os carrascos e não contra as vítimas. Por isso ela é libertadora.
Com sua ironia, o magistrado mostrou não entender — ou será que
entendeu, sim? — que o que ele estava fazendo era apoiar a
flexibilização da legislação contra o trabalho escravo.
Mendes não entendeu que o que ele fez foi ofender não só os milhões
de trabalhadores que ainda hoje vivem em situações degradantes, mas
também os milhões de trabalhadores comuns, como são aqueles que não têm a
sorte, como ele, de trabalhar com algo que “lhe dá prazer”
e, além disso, uma remuneração elevada, quando se sabe que o trabalho é
muitas vezes alienante, burocrático, mal remunerado, que as pessoas
aceitam não por gosto ou por prazer, mas porque precisam viver e
sustentar uma família. E esse é o caso da grande maioria.
Muito sangue dos antigos escravos ainda corre nas veias do Brasil, assim como corre muita dor, a dor dos milhões de trabalhadores
que, por culpa de gigantesca desigualdade social que castiga o país, se
veem obrigados, tantas vezes, a realizar um trabalho que traz consigo
as marcas da velha escravidão. Faz sentido fazer humor com eles?
Nada contra o uso da sátira, que é o sal que dá sabor à dureza da vida e aos abusos de poder. Nada mais eficaz do que uma charge inteligente
para colocar de joelhos um canalha ou desinchar o ego de quem se acha
acima dos outros. Ninguém se incomoda mais com a sátira do que os
poderosos. Muitas vezes, uma boa charge acaba se transformando no melhor
editorial de um jornal.
Todos os autoritários sempre tiveram pavor da ironia, e continuam tendo. Em uma charge que vi reproduzida dias atrás no Facebook
e que certamente se referia à ironia feita pelo magistrado brasileiro,
aparece um trabalhador baixinho com uma corrente de ferro no pescoço.
Seu chefe, alto, vestido de preto, olha para ele e diz: “Se a corrente
está frouxa não é trabalho escravo”. O título da charge é: FLEXIBILIZOU.
Isso sim, Excelência, é uma sátira inteligente.
Como fabricar monstros para garantir o poder em 2018, por Eliane Brum.
Pense. Preste atenção na sua vida. Olhe bem para seus problemas.
Observe a situação do país. Você acredita mesmo que a grande ameaça para
o Brasil – e para você – são os pedófilos? Ou os museus?
Quantos pedófilos você conhece? Quantos museus você visitou nos últimos
anos para saber o que há lá dentro? Não reaja por reflexo. Reflexo até
uma ameba, um indivíduo unicelular, tem. Exija um pouco mais de você.
Pense, nem que seja escondido no banheiro.
Seria fascinante, não fosse trágico. Ou é fascinante. E também é
trágico. No Brasil atual, os brasileiros perdem direitos duramente
conquistados numa velocidade estonteante. A vida fica pior a cada dia. E
na semana em que o presidente mais impopular da história recente se safou pela segunda vez de uma denúncia criminal,
desta vez por obstrução da justiça e organização criminosa, e se safou
distribuindo dinheiro público para deputados e rifando conquistas
civilizatórias como o combate ao trabalho escravo, qual é um dos principais assuntos do país?
A pedofilia.
Desde setembro, quando a mostra QueerMuseu – Cartografia da Diferença na Arte Brasileira foi fechada, em Porto Alegre, pelo Santander Cultural, após ataques liderados por milícias como o Movimento Brasil Livre (MBL),
arte, artistas e instituições culturais têm sido atacados e acusados de
estimular a pedofilia e/ou de expor as crianças à sexualidade precoce
no Brasil. Resumindo: enquanto os brasileiros têm seus direitos
roubados, uma parte significativa da população está olhando para o outro
lado. Ou, dito de outro modo: sua casa foi tomada por assaltantes de
dinheiro público e ladrões de direitos constitucionais, mas você está
ocupado caçando pedófilos em museus.
Conveniente, não é? E para quem? A resposta é tão óbvia que qualquer um pode chegar a ela sem ajuda.
Uma pergunta simples: por que os movimentos que ergueram a bandeira anticorrupção para derrubar Dilma Rousseff (PT), uma presidente ruim, mas que a maioria dos brasileiros elegeu, não estão fazendo nenhum movimento para derrubar Michel Temer
(PMDB), um homem que só se tornou presidente por força de um
impeachment sem base legal, ligado a uma mala de dinheiro e que tem como
um dos principais aliados outro homem, Geddel Vieira Lima (PMDB),
ligado a mais de 51 milhões de reais escondidos num apartamento?
Ou Aécio Neves (PSDB), que em conversa gravada pediu dois milhões de
reais a Joesley Batista, um dos donos da JBS, para pagar os advogados
que o defendem das denúncias da Operação Lava Jato?
Isso não é corrupção? Isso não merece movimento? Quem mudou? E por quê?
Responda você.
Outra pergunta simples: por que, em vez disso, parte destes
movimentos, que se converteu em milícia, criou um problema que não
existe justamente num momento em que o Brasil tem problemas reais por
todos os lados?
A não ser que você realmente acredite que o problema da sua vida, o
que corrói o seu cotidiano, são pedófilos em museus, sugiro que você
mesmo responda a essa pergunta. Eu vou buscar responder a algumas
outras.
1) Como criar monstros para manipular uma população com medo?
A criação de monstros para manipular uma população assustada não é
nenhuma novidade. Ela se repete ao longo da história, com resultados
tenebrosos, seguidamente sangrentos. Como muitos já lembraram, a Alemanha nazista
atacou primeiro exposições de arte. Os nazistas criaram o que se chamou
de “arte degenerada” e destruíram uma parte do patrimônio cultural do
mundo. E, mais tarde, assassinaram 6 milhões de judeus, ciganos,
homossexuais e pessoas com algum tipo de deficiência.
Dê um monstro a uma população com medo, para que ela o despedace, e
você está livre para fazer o que quiser. Mas hoje há uma diferença com
relação a outras experiências ocorridas na história: a internet. A disseminação do medo e do ódio é muito mais rápida e eficiente, assim como a fabricação de monstros para serem destroçados.
Mas a internet é uma novidade também em outro sentido, que está sendo
esquecido pelos linchadores: as imagens nela disseminadas estarão
circulando no mundo para sempre. A história não conheceu a maioria dos
rostos dos cidadãos comuns que tornaram o nazismo e o holocausto
uma realidade possível, apenas para ficar no mesmo exemplo histórico.
Eles se tornaram, para os registros, o “cidadão comum”, o “alemão médio”
que compactuou com o inominável. Ou mesmo que aderiu a ele.
Aqueles que hoje chamam artistas de “pedófilos”
se esquecem de que sua imagem e suas palavras permanecerão para sempre
nos arquivos do mundo
Hoje, no caso do Brasil e de outros países que vivem situação
parecida, o “cidadão comum” que aponta monstros com o rosto distorcido e
estimula o ódio não é mais anônimo e apagável. Ele está identificado.
Seus netos e bisnetos o reconhecerão nas imagens. Seu esgar de ódio
permanecerá para a posteridade.
Será interessante acompanhar como isso mudará o processo de um povo
lidar com sua memória. E com sua vergonha. Tudo é tão instantâneo e
imediato na internet, tão presente contínuo, que muitos parecem estar se
esquecendo de que estão construindo memória sobre si mesmos. Memória
que ficará para sempre nos arquivos do mundo.
2) Como criar uma base eleitoral para “botar ordem na casa” sem mudar a ordem da casa?
A fabricação de monstros é uma forma de controle de um grupo sobre
todos os outros. A escolha do “monstro” da vez é, portanto, uma escolha
política. O que se cria hoje no Brasil é uma base eleitoral para 2018.
Uma capaz de votar em alguém que controle o descontrole, alguém que
“bote ordem na casa”. Mas que bote ordem na casa sem mudar a ordem da
casa. Este é o ponto.
Primeiro, derrubou-se a presidente eleita com a bandeira
anticorrupção. Mas aqueles com os quais esses movimentos se aliaram eram
corruptos que tornaram a mala de dinheiro uma referência ultrapassada,
ao lançar o apartamento de dinheiro. Personagens desacreditados,
políticos desacreditados, como então manter as oligarquias no poder para
que nada mude mas pareça mudar? Capturando o medo e o ódio da população
mais influenciável e canalizando-os para outro alvo.
A técnica é antiga e segue muito eficiente. Enquanto a turba grita
diante de museus (museus!), às suas costas o butim segue sendo dividido
entre poucos. Rastreia-se qualquer exposição cultural com potencial para
factoides, o que é bem fácil, já que o nu faz parte da arte desde a
pré-história, e alimenta-se o ódio e os odiadores com monstros fictícios
semana após semana. Aos poucos, a sensação de que o presente e o futuro
estão ameaçados infiltra-se no cérebro de cada um.
E é um fato. O presente e o futuro estão ameaçados no Brasil porque há menos dinheiro para saúde e educação, porque a Amazônia está sendo roubada
e porque direitos profundamente ligados à existência de cada um estão
sendo exterminados por um Congresso formado em grande parte por
corruptos. Mas como isso está deslocado, parece que a ameaça está em
outro lugar. Neste caso, na arte, nos artistas, nos museus. Com o ódio
deslocado para um monstro que não existe, homens que pregam e praticam
monstruosidades aumentam suas chances de serem eleitos e reeleitos e as
monstruosidades históricas seguem se perpetuando.
Com o ódio deslocado para um monstro que não existe, oprimidos votam em opressores acreditando que se libertam
É assim que se cria uma base eleitoral que vota para botar ordem na
casa, mas não para mudar a ordem da casa. É assim que oprimidos votam em
opressores acreditando que se libertam. É assim que se faz uma democracia sem povo – uma impossibilidade lógica que se realizou no Brasil.
3) Por que o “pedófilo” é o “monstro” perfeito para o momento político?
Por que o “pedófilo” e não outro? Esta é uma pergunta que vale a pena
ser feita. Há muitas respostas possíveis. Já se tentou – e ainda se
tenta – monstrificar muita gente. O aborto foi a moeda eleitoral da eleição de 2010
e os defensores do direito de as mulheres interromperem uma gestação
indesejada foram chamados de “assassinos de fetos”. Gays, lésbicas,
travestis, transexuais e transgêneros estão sempre na mira, como os
episódios homofóbicos e o assassinato de LGBTs nos últimos anos
mostraram. Feminismo e feministas, em algumas páginas do Facebook,
viraram palavrões.
A tentativa acaba de ser reeditada com os protestos contra a palestra da filósofa americana Judith Butler no SESC, em São Paulo. Ela participará do ciclo de debates intitulado Os fins da democracia,
entre 7 e 9 de novembro. Acusam-na, vejam só, de “inventar a ideologia
de gênero”. A vergonha alheia só não é maior porque quem tem um
presidente como Donald Trump é capaz de entender em profundidade tanto o oportunismo quanto a burrice.
Mas, se as tentativas de monstrificar pessoas são constantes, há
grupos organizados para defender os direitos das mulheres sobre o seu
corpo e para denunciar a homofobia e a transfobia. E estes grupos não
permitem mais a conversão de seus corpos em monstruosidades e de seus
direitos em monstruosidades. Nestes campos, há resistência. E ela é
forte.
Qual é, então, o monstro mais monstro deste momento histórico, o
monstro indefensável? O pedófilo, claro. Quem vai defender um adulto que
abusa de crianças? Ninguém.
Mas há um problema. Os pedófilos não andam por aí nem são uma
categoria. A maioria, aliás, como as estatísticas mostram, está dentro
de casa ou muito perto dela. Ao contrário de muitos que apontam o dedo
diante de museus, eu já escutei vários pedófilos reais como repórter.
E posso afirmar que são humanos e que a maioria sofre. E posso afirmar
também que uma parte deles foi abusada na infância. Posso afirmar ainda
que nem todos sofrem, mas todos precisam de ajuda. Ajuda que, aliás,
eles (e elas) não têm.
Como então criar uma epidemia de pedofilia sem pedófilos disponíveis? Fabricando pedófilos. Espelhando-se em Hitler
e criando uma “arte degenerada”. Manipulando todos os temores ligados à
sexualidade humana. E manipulando especialmente uma ideia de criança
pura e de infância ameaçada.
Como criar uma epidemia de pedofilia sem pedófilos disponíveis? Espelhando-se em Hitler e criando uma “arte degenerada”
A infância está, sim, ameaçada. Mas pela falta de investimento em educação e em saúde,
pela destruição da floresta amazônica e pela corrosão das fontes de
água, pela contaminação dos alimentos, pela destruição dos direitos que
não terão mais quando chegarem à vida adulta. São estas as maiores
ameaças contra as crianças brasileiras de hoje – e não falsos pedófilos
em museus.
As crianças e seu futuro, aliás, estão ameaçados porque há menos
museus do que deveria, menos centros culturais do que deveria e muito
menos acesso aos que ainda existem do que seria necessário. Estas são as
ameaças reais à infância deste momento do Brasil.
Nenhum dos artistas acusados de pedofilia ou de estimular a pedofilia é pedófilo. Mas quando provarem isso na justiça, caso dos que estão sendo investigados,
sua vida ou uma parte significativa dela já foi destruída. E quem se
responsabilizará pela destruição de uma vida humana? Quem se
responsabilizará pelo ataque à cultura, já tão maltratada neste país?
Você, que grita e aponta o dedo e o celular, fabricando falsificações, precisa se responsabilizar pelas vidas que destrói
Você, que grita e aponta o dedo e a câmera do celular, destruindo
vidas e fabricando falsificações, precisa se responsabilizar pelos seus
atos. Porque vidas humanas estão sendo destruídas de fato. E são as
daqueles que estão sendo acusados injustamente de serem o que a
humanidade definiu como “monstros”. E é a vida de todos nós que teremos
ainda menos acesso à cultura num país em que sobram muros e presídios,
mas faltam escolas, centros culturais e museus.
4) Por que manipular os tabus relacionados à sexualidade é uma forma eficiente de criar uma base eleitoral?
Como fazer para criar uma base eleitoral que vote naqueles que
acabaram de espoliá-la? Apele para a moralidade. Não há maneira mais
eficiente de fazer isso que manipular os temores que envolvem a
sexualidade. Os exemplos históricos são infinitos. Quem controla a
sexualidade controla os corpos. Quem controla os corpos controla as
mentes. Quem controla as mentes leva o voto para onde quiser. E também
arregimenta apoio para projetos autoritários.
De repente, uma parcela de brasileiros, incitada pelas milícias de
ódio, decidiu que a nudez humana é imoral. E fabricaram uma equação
esdrúxula: corpo adulto nu + criança = pedofilia. Pela lógica, se esse
pessoal fosse a Florença, na Itália, tentariam destruir a machadadas o
Davi de Michelangelo, porque ele tem pinto.
Quem controla a sexualidade, controla os corpos. Quem controla os corpo e as mentes, leva o voto para onde quiser
Não há registro de que as milhões de crianças que tiveram o
privilégio de ver a estátua ao vivo, levadas por pais ou por professores
em visitas escolares, tenham se sentido sexualmente abusadas ou tenham
vivido algum trauma. Mas há inúmeros registros de crianças traumatizadas
na infância pela repressão à sexualidade inerente aos humanos.
Crianças têm pênis, crianças têm vagina, crianças têm sexualidade. É
lidando de modo natural com essa dimensão da existência humana que se
forma adultos capazes de respeitar a sexualidade, o desejo e a vida do
outro. É conversando sobre isso e não reprimindo que se forma adultos
capazes de respeitar os limites impostos pelo outro na experiência
sexual compartilhada. É informando e não desinformando sobre essa
dimensão da existência humana que se forma adultos que não se tornarão
abusadores de crianças.
5) Por que a arte e os artistas são os alvos do momento?
A decisão que o Museu de Arte de São Paulo (MASP) tomou, de proibir a exposição Histórias da Sexualidade,
aberta em 20 de outubro, para menores de 18 anos, é uma afronta à arte –
e uma afronta à cidadania. É compactuar com o oportunismo das milícias
de ódio. É aceitar que nudez e pornografia são o mesmo. É destruir a
ideia do que é uma exposição de arte. E é, principalmente, abdicar do
dever ético de resistir ao obscurantismo. Do mesmo modo, foi abjeta a
decisão do Santander Cultural de encerrar a exposição Queermuseu depois dos ataques.
Os oportunistas e seu projeto de poder vencem e o
pior acontece pelas concessões e recuos de instituições que têm a
obrigação de resistir
Que uma turba incitada por milícias de ódio ataque exposições de arte
é lamentável. Mas que as instituições se dobrem a elas é ainda pior. A
resistência é necessária justamente quando é mais difícil resistir. É
pelas fissuras que se abrem, pelas concessões que são feitas, pelos
recuos estratégicos que os oportunistas e seu projeto de poder vencem e o
pior acontece. Também isso a história já mostrou. Não é hora de se
dobrar. É hora de riscar o chão e resistir.
Por que a arte e os artistas? Esta é uma pergunta interessante. Mesmo
que isso não seja óbvio para todos, é a arte que expande a nossa
consciência mais do que qualquer outra experiência, justamente por
deslocar o lugar do real. Ao fazer isso, ela amplia a nossa capacidade
de enxergar além do óbvio – e além do que nos é dado a ver. Não há nada
mais perigoso para a manutenção dos privilégios e do controle de poucos
sobre muitos do que a arte.
A arte é o além do mundo que, depois de nos tirar do lugar, nos
devolve ao lugar além de nós mesmos. Somos, a partir de cada
experiência, nós e além de nós. Esta é uma vivência transgressora e à
prova de manipulações. E esta é uma vivência profundamente humana, como
mostram as pinturas encontradas nas cavernas deixadas por nossos
ancestrais pré-históricos. Por isso não é por acaso que regimes de
opressão começaram com ataques contra a arte e os artistas.
Não há nada mais perigoso para a manutenção dos privilégios e do controle de poucos sobre muitos do que a arte
Ao literalizar a arte, interpretando o que é representação como
realidade factual, assassina-se a arte. Quando Salvador Dalí faz um
relógio derretido em uma paisagem de sonho, ele não está afirmando que
relógios derretidos existem daquela maneira nem paisagens como aquela
podem ser vistas no mundo de fora, mas está invocando outras realidades
que nos habitam e que vão provocar reflexões diferentes em cada pessoa.
Literalizar a arte é uma monstruosidade que tem sido cometida contra
obras e artistas desde que o cotidiano de exceção se instalou no Brasil.
O outro motivo é mais prosaico. Artistas podem ser muito populares e
influenciadores do momento político. A admiração pela obra seguidamente é
transferida para a pessoa. E por isso essa pessoa, quando fala e opina,
é ouvida. É nesta chave que pode ser compreendida a tentativa de
destruição de Caetano Veloso, acusando-o de pedofilia por ter tido relações sexuais com sua mulher, Paula Lavigne, quando ela tinha 13 anos.
Essa história é conhecida há décadas, pela voz da própria Paula. Mas
só agora despontou colada a uma acusação de pedofilia. Caetano Veloso é
um dos artistas que mais se posiciona politicamente no Brasil atual.
Recentemente, foi Paula Lavigne que liderou uma reação dos artistas
a um dos ataques de Temer e da bancada ruralista contra a floresta
amazônica. Minar a influência de ambos, assim como a sua vontade de se
posicionar e manifestar-se por medo de mais ataques, é uma estratégia.
Afinal, quem ouviria a opinião política ou as denúncias feitas por um
“pedófilo”? Por mais que se lute, e poucos têm tantas condições de
resistir como Caetano Veloso e Paula Lavigne, uma acusação deste porte
costuma deixar marcas internas.
6) Quem são os políticos e as religiões que se aliam aos fabricantes de pedófilos com o olhar fincado em 2018?
Quando o momento mais agudo da disputa passar, se passar, haverá
muitos mortos pelo caminho. Em especial os invisíveis, aqueles que terão
medo de tocar nos próprios filhos pelo temor de serem acusados de
pedofilia, os professores que optarão por livros sem menções à
sexualidade para não correrem o risco de serem linchados por pais
enlouquecidos e demitidos por diretores pusilânimes, as pessoas que cada
vez mais têm medo de se contrapor à turba, os artistas que preferirão
não fazer. E os que deixarão o Brasil por não suportar os movimentos
brasileiros livres de inteligência ou temerem por sua vida diante dos
odiadores. As marcas invisíveis, mas que agem sobre as funduras de cada
um, são as piores e as mais difíceis de serem superadas.
Quando a gente via no cinema as turbas enlouquecidas assistindo às
execuções medievais como se fossem uma festa, gritando por mais sangue,
mais sofrimento, mais mortes, era possível pensar que algo assim já não
seria possível depois de tantos séculos. Mas mesmo que as fogueiras
(ainda) não tenham sido acesas, o que se vive hoje no Brasil é muito
semelhante.
Os pedófilos de hoje são as bruxas de ontem. E são tão pedófilos
quanto as bruxas eram bruxas. E as fogueiras começam na internet, mas se
alastram pela vida. Há muitas formas de destruir pessoas. A crueldade é
sempre criativa. E as milícias já deixaram um rastro de devastação.
Vale tudo para cumprir o propósito de limpar o campo político para 2018.
Para isso, contam menos com a ala conservadora da Igreja Católica e
mais com parte das igrejas pentecostais e neopentecostais, com o
fenômeno que se pode chamar de “fundamentalismo evangélico à brasileira”
e sua crescente influência política e também partidária. Quem acompanha
grupos de WhatsApp
dos fieis fundamentalistas recebe dia após dia vídeos de pastores
falando contra a arte e a pedofilia. A impressão é que o Brasil virou
Sodoma e Gomorra e que um pedófilo saltará sobre seu filho, neto ou
sobrinho assim que abrir a porta da casa. Grande parte destas pessoas – e
isso não é culpa delas – jamais teve acesso a um museu ou a uma
exposição de arte.
As articulações que estão sendo feitas para 2018 são cada vez mais
fascinantes, não fossem assustadoras. Na apresentação do artista Wagner
Schwartz no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), realizada em 26 de
setembro, o coreógrafo fazia uma interpretação de Bicho, uma
obra viva de Lygia Clark, constituída por uma série de esculturas com
dobradiças que permite que as pessoas saiam do lugar de espectadoras
passivas e se tornem parte ativa da obra. Nesta leitura de Bicho,
que resultou em ataques de ódio, o coreógrafo, nu e vulnerável, podia
ser tocado e colocado em qualquer posição pela plateia. Um vídeo
divulgado pela internet mostrando uma criança tocando o performer,
devidamente acompanhada por sua mãe, foi o suficiente para protestos de
ódio. O artista foi chamado de “pedófilo” – e o museu foi acusado de
incentivar a pedofilia.
Observe bem os dois políticos que se alçaram a
protetores das crianças brasileiras ameaçadas pela arte: João Doria
(PSDB) e Jair Bolsonaro (PSC)
Vale a pena observar quem foram os dois candidatos a presidenciáveis
que se manifestaram por meio de vídeos divulgados na internet: João Doria (PSDB) e Jair Bolsonaro
(PSC). Doria, que gosta de posar como culto e cidadão do mundo, mostrou
mais uma vez até onde pode chegar em sua luta pelo poder. Classificou a
coreografia como “cena libidinosa”. Afirmou que a performance “fere o
Estatuto da Criança e do Adolescente e, ao ferir, ele está cometendo uma
impropriedade, uma ilegalidade, e deve ser imediatamente retirado, além
de condenado”. E aplicou o bordão: “Tudo tem limites!”.
Doria, o protetor das crianças brasileiras, dias atrás anunciou (e depois das críticas recuou momentaneamente) que incluiria um “alimento” feito com produtos próximos do vencimento na merenda escolar das crianças de São Paulo.
Jair Bolsonaro, capitão da reserva do Exército e em segundo lugar nas
pesquisas de intenção de voto para 2018, vociferou: “É a pedofilia!”.
E, em seguida: “Canalhas! Mil vez canalhas! A hora de vocês está
chegando!”. Justamente ele, que não se cansa de repetir que o general
Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos assassinos da ditadura, é o seu
herói.
Ustra, apenas para lembrar de um episódio, levou os filhos de Amélia
Teles, presa nos porões do regime, para que vissem a mãe torturada.
Amelinha, como é mais conhecida, estava nua, vomitada e urinada. Seus
filhos tinham quatro e cinco anos. A menina perguntou: “Mãe, por que
você está azul?”. A mãe estava azul por causa dos choques elétricos
aplicados em todo o seu corpo e também nos genitais. Este é o farol de
Bolsonaro, o protetor das crianças brasileiras.
7) Como parte do empresariado nacional se articula com os ataques à arte enquanto apoia o retrocesso em nome do lucro?
Nenhuma distopia foi capaz de prever o Brasil atual. Parte da
explicação pode ser encontrada no artigo de Flávio Rocha, presidente do
Riachuelo, um dos principais grupos do setor têxtil do país, e
vice-presidente do Instituto para o Desenvolvimento do Varejo (IDV),
publicado na página de Opinião do principal jornal brasileiro,
em 22 de outubro. No texto, intitulado “O comunista está nu”, o
empresário ressuscita a ameaça do comunismo, discurso tão presente nos
dias que antecederam o golpe civil-militar de 1964, que mergulhou o
Brasil numa ditadura que durou 21 anos. O empresário escreveu este
texto, vale lembrar, num Brasil tão à direita que até a esquerda foi
deslocada para o centro. Diz este expoente da indústria nacional:
“O movimento comunista vem construindo um caminho que, embora
sinuoso, leva ao mesmo destino: a ditadura do proletariado exaltada pelo
marxismo. (...) Nas últimas semanas assistimos a mais um capítulo dessa
revolução tão dissimulada e subliminar quanto insidiosa. Duas
exposições de arte estiveram no centro das atenções da mídia ao
promoverem o contato de crianças com quadros eróticos e a exibição de um
corpo nu, tudo inadequado para a faixa etária. (...) São todos tópicos
da mesma cartilha, que visa à hegemonia cultural como meio de chegar ao
comunismo. Ante tal estratégia, Lênin e companhia parecem um tanto
ingênuos. À imensa maioria dos brasileiros que não compactua com
ditaduras de qualquer cor, resta zelar pelos valores de nossa
sociedade”.
A indigência intelectual de uma parcela significativa da elite econômica brasileira só não é maior do que o seu oportunismo
A indigência intelectual de uma parcela significativa da elite
econômica brasileira só não é maior do que o seu oportunismo. É também
parte da explicação da face mais atrasada do Brasil. É ainda um
constrangimento, talvez uma falha cognitiva. Mas certo tipo de
empresário está aí, pontificando em arena nobre. Sem esquecer jamais que
a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) de Paulo Skaf
apoiou diretamente os movimentos que lideraram as manifestações pelo
impeachment de Dilma Rousseff , tornando-se uma das principais
responsáveis pela atual configuração do governo corrupto que está no
poder.
Há algo interessante sobre Flávio Rocha, esse personagem amigo de João Doria e, como o prefeito de São Paulo, apoiado pelo MBL. Como mostrou reportagem da Repórter Brasil,
uma das fontes sobre trabalho escravo mais respeitadas do país, o grupo
Riachuelo tem sido acusado nos últimos anos por abusos físicos e
psicológicos de trabalhadores. Flávio Rocha, como já demonstrou, é um
dos interessados em “flexibilizar” a legislação e a fiscalização. Para
isso, conta com o apoio do MBL, que chegou a convocar um protesto contra
o Ministério Público do Trabalho em Natal, no Rio Grande do Norte.
Em 16 de outubro, o governo Temer publicou uma portaria, claramente
inconstitucional, que reduz os casos que podem ser enquadrados em
trabalho escravo. O problema é gravíssimo no Brasil, que ainda convive
com situações de escravidão contemporânea. Hoje, a portaria está temporariamente cassada por liminar concedida pela ministra Rosa Weber,
do Supremo Tribunal Federal, a pedido do partido Rede Sustentabilidade.
Restringir o combate à escravidão foi parte do pagamento de Michel
Temer aos deputados que o absolveram na semana passada e às oligarquias
que representam. Estes “liberais” querem voltar a escravizar livremente.
E estão conseguindo.
Mas, claro, o problema do Brasil são os pedófilos em museus. E, como o
presidente do grupo Riachuelo tem a gentileza de nos alertar, a volta
dos comunistas que comem criancinhas.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
Assinar:
Postagens (Atom)