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– on 23/10/2017Categorias: Brasil, Destaques, Políticas
Uma empresa que nada produz. Uma gestora ligada a causas de
ultra-direita. Uma “clínica” onde 14 morreram por intoxicação alimentar.
Um projeto de lei suspeito
Reportagem de Alex Tajra
Muito tem se falado sobre o projeto da Prefeitura de distribuir um
complexo nutritivo chamado de “farinata” para supostamente combater a
fome na cidade. A gestão João Doria, em parceria com a nebulosa
Plataforma Sinergia, produziu um alimento de qualidade duvidosa, com um
aspecto peculiar (lembra uma mistura do tradicional doce cajuzinho com
uma pedra de crack), proveniente de uma maçaroca de produtos próximos do
vencimento, desinteressantes para bares, restaurantes, supermercados,
etc.
Não há qualquer informação nutricional sobre o produto, tampouco foi
feita uma consulta aos órgãos competentes que deveriam fiscalizar os
acordos alimentícios feitos pelo poder público com empresas privadas,
tais quais o Ministério da Agricultura e a Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa). A Plataforma Sinergia também é uma
empresa sobre a qual poucas informações estão disponíveis. Uma delas é
de que é gerida pela empresária Rosana Perrotti, entusiasta do
“Allimento” (nome do produto, elaborado com um trocadilho sórdido) e fã
declarada do prefeito. Mas quem é Perrotti?
Numa pequena consulta feita na internet, nota-se que Rosana possui
uma posição político-partidária muito explícita. Não raro em sua página
pessoal no Facebook posta vídeos e textos criticando os “esquerdopatas”.
Em uma das publicações, uma crítica virulenta à “ideologia de gênero”
que o Ministério da Educação quer nos colocar “goela abaixo”. O
professor Felipe Nery, no vídeo, diz que “está acontecendo uma explosão
de crianças confusas com o próprio sexo” e que as crianças estão
“duvidando de si mesmas nas salas de aula”.
As postagens não são antigas; pelo contrário, foram publicadas nas
últimas semanas. Em outro vídeo, o pastor e senador Magno Malta (PR),
discorre sobre o ECA e como a performance do artista carioca Wagner
Schwartz, no MAM, supostamente incentiva a pedofilia. “Se a Organização
Mundial de Saúde pede para os fumantes não fumarem perto das crianças,
quanto mais um adulto induzir uma criança a tocar no órgão genital do
outro”, é uma das comparações feitas por Malta.
Em outra publicação, um vídeo de uma criança de no máximo cinco
anos explicando “como Deus escolheu David para ser rei”. Esse, sim, em
clara violação do Estatuto da Criança e do Adolescente, já que explora
uma criança com fins de proselitismo religioso. Rosana também não deixa
de lado o arauto da ética e da moral brasileiras, Sérgio Moro, e reserva
espaços em sua linha do tempo para alguns vídeos do magistrado,
exaltando a Operação Lava-Jato e seus feitos heroicos.
Profissionalmente a trajetória de Perrotti é igualmente cerceada por
uma neblina cinzenta. Em seu perfil no Linkedin, apresenta-se como
“Controller” na empresa Mead Johnson Nutrition, companhia estadunidense
“líder no mercado de nutrição” e concentrada na “investigação
científica” de nutrição para bebês e crianças.
No campo de experiência, a criadora da Sinergia se define como “CFO
(Diretora Financeira, em tradução livre) com foco em alimentação,
agronegócio e farmacêuticas multinacionais”, com passagens pela maior
empresa do mundo de alimentação, a Kraft Foods, e a gigante do
agrotóxico Monsanto.
Na rede social voltada para o mundo corporativo, a Plataforma
Sinergia é descrita como uma “rede de especialistas e organizações
dividindo sinergia para promover desenvolvimento sustentável por meio
das melhores práticas sociais e ambientais”. Apresentada como um
Instituto ou uma ONG pelos meios de comunicação, a empresa tecnicamente é
uma entidade privada com “atividades associativas não especificadas
anteriormente”, segundo dados do Cadastro Nacional. Em seu site, pede
doações pouco objetivas, em um grande banner onde se pode ler “A CADA
R$10 VOCÊ NUTRE 1 CRIANÇA POR 1 MÊS”, com dados bancários da empresa
abaixo.
A Sinergia, como já revelado pela rádio CBN, não possui sequer uma
fábrica. Atua em parceria com “indústrias licenciadas”, segundo
Perrotti, que não podem ser reveladas por conta de acordos de
confidencialidade. Aí entra também uma contradição, já que a comandante
da empresa disse nesta mesma entrevista que só foram produzidas amostras
da farinata, as quais foram distribuídas em algumas creches. No texto
de divulgação elaborado pela Prefeitura e publicado no dia 9 de outubro,
todavia, a gestão afirma que a Sinergia já possui 50 toneladas do
produto em estoque. Não se sabe onde, nem quando e nem o porquê dessa
produção.
Tem como colaboradores nomes de peso, como a Câmara Internacional de Comércio, a CNBB e a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Também não há qualquer menção sobre como ou por qual razão essas organizações mantêm vínculo com a Sinergia.
Tem como colaboradores nomes de peso, como a Câmara Internacional de Comércio, a CNBB e a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Também não há qualquer menção sobre como ou por qual razão essas organizações mantêm vínculo com a Sinergia.
Chamam atenção, porém, mais que qualquer colaborador, os nomes da
Fazenda da Esperança e da Missão Belém no portal da empresa. A primeira é
uma conhecida rede de “comunidades terapêuticas” privadas, onde se
tratam dependentes de drogas, e que possui uma série de contratos com o
poder público. A segunda também trata de dependentes químicos, porém
abriga moradores em situação de rua. Em junho deste ano o jornal O Estado de São Paulo
publicou uma reportagem contando que, só naquele mês, 14 pessoas
morreram na Missão Belém, todas com sinais de intoxicação alimentar.
A situação da Fazenda da Esperança é ainda mais conturbada. São
diversas denúncias de alimentação ruim, tratamento negligente e até
acusações de escravidão. Em 2014, quatro jovens de Alagoas, internados
na unidade de Poço das Trincheiras, denunciaram que estavam sendo
tratados como escravos, recebendo uma comida de péssima qualidade e que a
situação é maquiada quando um grupo vinculado à Igreja Católica fazia
visitas.
Cristiano dos Santos, Max Gonçalves, Italo Henrique e Jonata da Silva
foram entrevistados pela Rádio Milênio e as denúncias foram amplamente
repercutidas por veículos regionais. “A comida não prestava. A que
prestava quem comia era o coordenador Josafá”, disse Jonata à rádio na
época, ainda relatando que o local não possuía psicólogos e nem médicos.
Em 2015, um caso de violência marcou a Fazenda da Esperança de
Guaratinguetá. Um homem teria invadido o local e assassinado uma freira
para roubar dinheiro. O crime, no entanto, nunca foi esclarecido, e
houve uma clara tendência em afastar a possibilidade de ter sido
cometido por alguém de dentro da instituição.
A última notícia que se tem do assunto é um alento aos conselhos de
nutrição e aos profissionais do segmento, que se posicionaram de forma
contrária à farinata nas últimas semanas. A Promotoria de Justiça de
Direitos Humanos de São Paulo instaurou em 19/10 um procedimento
administrativo afim de obter mais informações sobre o “granulado
nutricional” de João Doria e Rosana Perrotti. Além disso, a Comissão de
Saúde, Promoção Social, Trabalho e Mulher, da Câmara Municipal de São
Paulo também pediu esclarecimentos à prefeitura.
O Ministério Público da capital encaminhou cinco perguntas sobre o
“Allimento” para a Prefeitura, entre elas o do porquê o granulado
substituir os alimentos convencionais. Outro questionamento é a
composição e o valor nutricional do produto, onde o MP também solicitou
um laudo técnico para diagnosticar cientificamente o “Allimento”. O
texto é assinado pelo promotor José Carlos Mascari Bonilha.
A Plataforma Sinergia e o “combate à fome”
Uma das relações pouco exploradas pela mídia até agora é a da
Plataforma Sinergia com o Projeto de Lei 6867 de 2013, que instala a
Política Nacional de Erradicação da Fome e de Promoção da Função Social
dos Alimentos – PEFSA. A norma foi proposta pelo deputado federal
Arnaldo Jardim (PPS-SP) e, depois de alguns meses parada, voltou a
circular com mais intensidade pelas comissões da Câmara dos Deputados no
segundo semestre desse ano. A última movimentação foi no dia 14 de
setembro, cerca de um mês antes do anúncio feito pela Prefeitura do
acordo com a Sinergia.
A lei, que estabelece diversas diretrizes em relação ao combate à
fome e ao desperdício de alimentos, possui alguns dispositivos que
claramente tendem a beneficiar o setor privado e seguem quase que
exatamente o mesmo modus operandi que João Doria adotou com a Sinergia.
No PL, diversas formas de isenção fiscal e incentivos ao setor privado
estão regulamentadas, tais como o inciso terceiro do Art. 9º:
“III – isenção de Imposto sobre Produtos Industrializados na
fabricação pela indústria nacional de máquinas e equipamentos cujo uso
esteja comprovadamente associado ao combate à insegurança alimentar;”
A relação mais explícita entre a Plataforma Sinergia e o Projeto de
Lei de 2013, porém, está na justificativa escrita por Jardim, ao fim do
documento:
“Ao mesmo tempo, também em Roma, na sede da FAO, reunir-se-ão
representantes do projeto “Save Food”, que discute 170 soluções
selecionadas em nível global voltadas para a otimização do uso de
alimentos e salvar vidas. Dentre as soluções selecionadas, encontra-se a
proposta pelo ‘Projeto Fome’ da Plataforma Sinergia, que desenvolve
processos para evitar a destinação inadequada de alimentos.”
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