seg, 16/10/2017 - 12:57
Setor elétrico: as lições de vinte anos de reformas liberalizantes na Europa
por Ronaldo Bicalho
No momento em que o Brasil ensaia uma nova reforma do setor
elétrico brasileiro, baseada na ampliação do mercado livre e na
privatização da maior geradora do país, um livro lançado em Agosto de
2017, por um dos mais importantes economistas da energia, Jacques
Percebois, em conjunto com Jean-Pierre Hansen, engenheiro e também
economista, faz uma avaliação sobre a evolução do setor elétrico europeu
depois de vinte anos de reformas liberalizantes.
O
livro - Transition(s) électrique(s), Ce que l’Europe et les marchés
n’ont pas su vous dire [Transição(ões) elétrica(s), o que a Europa e os
mercados não souberam lhe dizer] (*) - analisa o processo no qual depois
de vinte anos a onda de desregulamentação, privatização e outras
medidas destinadas a retirar o setor elétrico do conjunto de atividades
consideradas como de serviço público se chocou contra o duplo obstáculo
da economia real e dos imperativos climáticos.
O Le Monde publicou uma resenha sobre o livro bastante interessante, da qual retiramos os pontos apresentados a seguir.
O mercado como pedra filosofal
O
problema é que os proponentes do fim do suprimento de energia elétrica
como serviço público - modelo tradicional no qual o Estado define os
meios de produção e os preços no âmbito de uma estratégia a longo prazo
em benefício deste "mercado" - pretendiam ter encontrado a pedra
filosofal. O mercado deveria não apenas reduzir o preço ao consumidor
desta preciosa energia, mas também orientar os investimentos na direção
dos meios e sistemas "ótimos" para o futuro.
Mas
um mercado louco - em que o preço da mercadoria negociada é totalmente
desconectado das características físicas de sua produção e, portanto, de
seu custo real - pode dar bons conselhos? Mesmo que a maior parte da
eletricidade ainda seja comercializada em contratos diretos entre
produtores e distribuidores, esse mercado deve dar-lhes uma referência
para o preço a negociar.
Perplexidade e embaraço
Jean-Pierre
Hansen e Jacques Percebois se encontram, na realidade, em uma situação
relativamente embaraçosa. Como conhecedores de sistemas elétricos, por
uma abordagem dupla - a do engenheiro e a do economista - também são
fervorosos defensores do sistema capitalista e da concorrência como meio
essencial para orientar as atividades econômicas. Assim, o livro
termina com uma declaração contraditória. Por um lado, eles reafirmam o
credo competitivo: "O setor deve ser aberto à concorrência? Claramente,
sim, porque ela provavelmente aumentaria a eficiência operacional dos
operadores do arquipélago dos antigos monopólios”. Mas, no entanto,
escrevem (p 266) na página seguinte: "Para garantir este futuro nós
defenderemos o retorno à escolha pública". Os autores explicam essa
contradição dizendo que, segundo eles, há mercado e mercado, que se pode
distinguir a competição "pelo" e "por" um mercado. Mas a ocorrência
freqüente das palavras "perplexo" ou "perplexidade" no livro
provavelmente indica o sentimento dos autores face a essa contradição.
Quando o fracasso vale lições
Outra palavra que se encontra com frequência no trabalho é "fracasso".
Os
governos europeus e a Comissão Europeia venderam aos cidadãos o fim dos
monopólios públicos de produção e distribuição de eletricidade como a
forma ideal de reduzir o custo para os consumidores. No entanto, no
longo prazo, nos últimos vinte anos, essa concepção fracassou. A
concomitância da privatização e desregulamentação com o aumento dos
preços da eletricidade - quase dobrou em euros constantes em diversos
países, incluindo Alemanha, Dinamarca e Grã-Bretanha - poderia fazer
crer em uma causalidade simples. Na realidade, como salientam os
autores, os preços seguiram em grande parte os custos de produção - os
do carvão e do gás, em grande parte impulsionados pelos preços do
petróleo. Para cima e para baixo. Claramente, nas palavras dos autores, o
custo de produção é muito mais importante nos preços finais do que a
natureza pública ou privada das empresas, a existência de monopólios ou
de concorrência.
Além
disso, a segunda causa do aumento acentuado dos preços dos consumidores
é uma questão de escolhas públicas feitas fora de qualquer mecanismo de
mercado: subsídios maciços para novas energias renováveis,
especialmente energia eólica e fotovoltaica, e os custos de transporte
adicionais associados a estas novas instalações. Essas subvenções vêm de
taxas alocadas em contas de eletricidade (das quais as grandes
indústrias alemãs estão isentas), que totalizam quase 300 bilhões de
euros na Alemanha em cerca de vinte anos. E hoje mais de 3 bilhões por
ano na França. Assim, as taxas que não representavam mais do que 18% dos
preços ao consumidor na França há dez anos, representam 35% hoje.
As empresas no vermelho
O
insucesso não está limitado aos preços. A segurança do suprimento de
eletricidade da Europa não foi melhorada por vinte anos de reformas
liberais. E isso, apesar dos avanços técnicos e das novas ferramentas
para o gerenciamento digital de rede. Quanto à introdução maciça de
instalações de geração intermitentes - eólica e fotovoltaica -
especialmente na Alemanha, ela levou a uma fragilização das redes, a
custos de transporte consideravelmente elevados e a uma sobrecapacidade
de produção fortemente custosa. A capacidade instalada alemã passou de
120 GW a 200 GW sem o aumento significativo da produção. Tudo isso sem
alterar significativamente as emissões de gases de efeito estufa do
sistema elétrico alemão, embora esse tenha sido apresentado como o
principal imperativo ecológico do século. "Tivemos a escolha entre sair
da energia nuclear e sair do carvão: escolhemos a primeira opção",
declarou o Secretário de Estado alemão da energia em fevereiro de 2014.
Por
fim, o fracasso se vê no colapso geral das empresas do setor. Todos as
grandes estão no vermelho, especialmente na Alemanha, mesmo quando os
preços ao consumidor aumentaram. "Juntas, as 25 maiores empresas
apresentaram uma perda de 3,5 bilhões de euros", afirmam os autores. A
EDF foi desestabilizada e as suas contas deterioradas pelas decisões
governamentais, incluindo a taxação de lucros e dividendos em bilhões
até 2013.
Por que escolher a desregulamentação
Os
autores abordam o choque entre o desejo de criar um mercado e o de
respeitar um imperativo ecológico - "a onda de mercado e a maré verde" -
como o principal fator no fracasso do primeiro. O argumento é forte,
mas não esgota a controvérsia. Uma controvérsia que os autores
apresentam: "Por que não ficar satisfeito com uma situação em que o
preço oferecido por um monopólio de alto desempenho e regulamentado
seria baixo? Por que não reformar um monopólio público menos eficiente
ao invés de desmontá-lo? "(P 166).
Por
que, então, escolher a "desregulamentação"? O termo é justamente
criticado pelos autores porque a operação se reflete bastante em uma
inflação considerável das regras estabelecidas pelos Estados e pela
Comissão para organizar o mercado da eletricidade e os órgãos públicos
responsáveis pela sua gestão (a Comissão Reguladora de energia, CRE, na
França). Esta transformação do setor elétrico público é, de fato, uma
abordagem altamente ideológica, que não deixa espaço para a análise
técnica e econômica das vantagens e desvantagens da concorrência em
relação ao monopólio público.
Hayek contra Keynes
Segundo
os autores, uma reforma, inspirada pelo ultra-liberal Friedrich Hayek, e
cuja aplicação seria uma "vingança" do último contra John Maynard
Keynes.
Uma
reforma dogmática ao ponto de negar as características físicas da
eletricidade. "O que você faz com a eletricidade produzida e não
vendida?" Perguntou um diretor financeiro de um investidor que não sabe
que não se pode injetar mais eletricidade em uma rede do que aquela que é
consumida sem que a rede entre em colapso.
Dogmática
ao ponto de esquecer que a frequência de rede não pode variar em mais
de 1%, para cima ou para baixo, sem cair o sistema, causando o apagão
geral, o que aconteceria se toda a Europa tivesse seguido o exemplo
Dinamarquês ou alemão quanto ao espaço ocupado pela energia eólica e
fotovoltaica no mix elétrico.
Dogmática ao ponto de esquecer que a variabilidade do consumo, diariamente e
sazonalmente, envolve um parque de meios de produção adaptados a essa variabilidade e assegurando o atendimento à máxima necessidade de consumo ao menor custo sistêmico.
sazonalmente, envolve um parque de meios de produção adaptados a essa variabilidade e assegurando o atendimento à máxima necessidade de consumo ao menor custo sistêmico.
Dogmática
ao ponto de negar o trabalho de economistas como Marcel Boiteux,
presidente histórico da EDF, mostrando que é possível controlar o risco
de "renda" indevida para um monopólio público com menos custos do que
aqueles necessários para controlar um mercado.
Uma
reforma dogmática até o ponto de negar a geografia - as penínsulas
elétricas que são Espanha ou Itália e a ilha que é a Grã-Bretanha irão
permanecer qualquer que seja a decisão política.
Dogmática
até o ponto de negar as análises econômicas, todas situadas no âmbito
do capitalismo, incluindo as de Keynes, mostrando que as características
físicas da eletricidade levam à idéia de um "monopólio natural" cuja
gestão a serviço do interesse geral - consumidores individuais e
empresariais - tem maior probabilidade de encontrar o ótimo
técnico-econômico do que o uso da concorrência em um mercado cego a
longo prazo. Um mercado concentrado no rendimento imediato. Um mercado
em que, explicou o CEO da Enron - a empresa cuja ação acabou no apagão
da Califórnia: "pode-se ganhar mais dinheiro contratando uma centena de
PhDs em matemática do que instalando uma central elétrica."
As transições elétricas
O livro de Hansen e Percebois leva a se perguntar sobre as duas "transições" do sistema elétrico europeu.
A
primeira, a proposta do fim dos serviços públicos falhou. Absolutamente
nada sugere que uma melhor gestão dos monopólios históricos com base em
requisitos públicos baseados em objetivos claros - eficiência
operacional, a busca do sistema ótimo de produção e transporte em termos
de custos (incluindo um aumento no comércio fronteiriço),
descarbonização da produção para respeitar o imperativo ecológico - não
teria tido melhores resultados. E uma vez que os britânicos estão
discutindo uma renacionalização de suas ferrovias após o fracasso da
privatização, a dos sistemas elétricos deve ser discutida novamente.
A
segunda é o desafio de descarbonizar a produção de eletricidade - o
setor com maior intensidade de carbono no mundo devido ao domínio do
carvão e do gás - exige uma intervenção pública decisiva. Nenhum mercado
pode levar a um planejamento judicioso e a longo prazo dos meios de
produção e das redes de transporte visando essa transição ao menor
custo. E isso é verdade para todos os meios (des)carbonizados
utilizados: hidráulico, eólico, fotovoltaico, marinhos, geotérmico,
biomassa, biogás, nuclear. O que o mercado determina é o meio de
produção com maior rentabilidade imediata, gás natural e carvão. As
escolhas ideais entre esses diferentes meios não podem ser idênticas em
países e regiões; recursos naturais e os imperativos de energia nuclear
segura e de baixo custo não são os mesmos.
Como
os autores escrevem, devemos retornar às "escolhas públicas". E,
portanto, para um debate público, em que os políticos devem parar de se
expressar com slogans rudimentares se quisermos elevá-lo ao nível
exigido pelo desenvolvimento de uma estratégia vencedora. Este livro
contribui para isso.
(*) Transition(s) électrique(s), Ce que l’Europe et les
marchés n’ont pas su vous dire. Jean-Pierre Hansen et Jacques Percebois.
Odile Jacob, 276 p.
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