seg, 16/10/2017 - 07:15
A Suprema covardia do Supremo
por Aldo Fornazieri
Aos
golpes do oportunismo, do golpismo, da covardia, do sofismo e da
falácia argumentativa, a maioria do STF derrubou a estátua da Justiça em
praça pública, espatifou-a na frente da nação, rasgou a Constituição e,
com ambas, estátua e Constituição, fez uma grande fogueira onde foram
queimados os princípios da república, a igualdade perante a lei a
punibilidade de políticos criminosos e a decência nacional. Cinco
ministros, que não têm compromissos com a Constituição, mas com
subserviência aos raposões corruptos do Senado, jogaram a gasolina.
Carmen Lúcia acendeu o fogo e ainda jogou uma pá de cal sobre as cinzas,
pintando o cinza o que já era cinza num país condenado a ser vítima de
si mesmo por ser vítima de uma elite que não tem seriedade, que não tem
responsabilidade e que não tem pudor.
Carmen
Lucia mostrou não ter condições de presidir um centro acadêmico de uma
faculdade de direito. Para desgraça do Brasil, no entanto, preside
aquilo que deveria ser a mais alta Corte Constitucional do país, cuja
virtude primeira dos seus componentes deveria ser a coragem. A partir da
semana passada, o STF, que já havia se curvado aos políticos da Câmara e
do Senado no processo da derrubada da presidente Dilma, decidiu, em ato
formal, tornar-se um poder subordinado, abrindo mão de ser a Corte que
decide em última instância.
A
decisão da maioria do STF fere a Constituição e não se trata de engano.
Basta comparar os argumentos que os juízes usaram quando do afastamento
de Eduardo Cunha e os que usaram na decisão do último dia 12. Fica
claro que a maioria da Corte votou em função das conveniências políticas
e não do espírito e da letra da Constituição. A OAB deveria analisar se
estes cinco juízes, mais a Carmen Lucia, não cometeram crime de
responsabilidade. Sob o disfarce do julgamento de uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade, o que decidiram foi o caso específico de Aécio
Neves entregando ao Senado a prerrogativa de devolver-lhe o mandato. O
mesmo Senado que não cumpriu a Constituição quando decidiu não
investigar e não julgar Aécio.
O
STF criou uma desordem constitucional. Para casos diferentes, mas com a
mesma natureza jurídica, aplicou decisões ao sabor das conveniências:
uma para Eduardo Cunha, outra para Delcídio do Amaral, uma terceira para
Renan Calheiros e uma quarta para Aécio Neves. A sociedade não pode ter
fé e respeito a um tribunal que age dessa forma.
Os
magistrados deveriam dignificar o honroso cargo que receberam, alguns
sem as competências e/ou as virtudes necessárias. Deveriam ser um
exemplo para a sociedade e para os futuros juízes. Deveriam pensar em
proporcionar biografias relevantes, pois o bom exemplo e a vida correta
são os maiores bens que podemos deixar nesta vida. Mas quem não tem
dignidade não pensa em biografia.
Um
dos fundamentos adotados pela maioria do Supremo sustenta a tese de que
somente os representantes podem decidir acerca de um mandato que emana
da soberania popular. Para manter uma coerência lógica, as decisões que
afetarem vereadores, deputados estaduais e governadores também
precisariam de um aval da Casa legislativa correspondente sempre que uma
decisão judicial afetar um mandato.
O
STF se tornou um dos principais fomentadores da crise institucional.
Note-se a absurda argumentação de Dias Tofoli: "O Supremo Tribunal
Federal não pode atuar, portanto, como fomentador de tensões
constitucionais, o que ao meu ver viria a ocorrer caso se suprimisse do
poder Legislativo o legítimo controle político de restrições de natureza
processual penal que interferem no livre exercício do mandato
parlamentar".
A
argumentação é absurda porque parte de um pressuposto falso: o STF deve
julgar segundo a Constituição e não segundo se causa ou não causa
tensões constitucionais. Ademais, em nenhum país democrático o
Legislativo tem a prerrogativa de fazer o controle político de
restrições de natureza processual penal. Mesmo no processo de
impeachment de um presidente, o Senado se transforma em tribunal para
julgar politicamente, cabendo ao STF julgar a matéria de natureza penal.
A violação da Constituição
Para
que uma Constituição seja democrática e republicana precisa
fundamentar-se em alguns pressupostos: nenhum poder é ilimitado, nem
mesmo a própria Constituição; Estado de Direito significa poder
limitado, valendo isto para os três ramos do poder; os três poderes
estão submetidos a uma relação de controles mútuos, de pesos e
contrapesos, não existindo um poder soberano sem controle a acima dos
outros; definidas as funções específicas de cada poder, com ingerências
parciais um no outro, cabe ao tribunal constitucional as decisões
últimas em matéria penal e no controle da constitucionalidade.
Uma
Corte ou um tribunal constitucional são supremos exatamente porque têm a
prerrogativa das decisões finais, indicadas no último item acima. Se
não for assim, a Constituição deixa de ser republicana e democrática.
Foi este atentado, foi este crime contra a Constituição, que a maioria
do STF perpetrou. A Corte constitucional tem a faculdade de interpretar o
direito em vigor, a Constituição, as leis do Legislativo, com uma
autoridade que estabelece uma obrigação constitucional dos outros dois
poderes.
A
prerrogativa de interpretação de uma Corte constitucional, porém, não é
aberta e infinita. Ela tem dois limites: 1) a própria Constituição; 2)
os princípios fundantes da Constituição republicana e democrática que
não podem ser ultrapassados pelo poder constituinte soberano, por uma
Corte Constitucional ou pelo poder que tem a prerrogativa de emenda
constitucional - no caso, o Congresso. A maioria do STF violou a
Constituição ao permitir que a Câmara e o Senado adquiram funções
judiciais e possam tomar decisões finais acerca de atos delituosos de
deputados e senadores.
O
Brasil vive hoje uma situação insuportável do ponto de vista político,
institucional e moral. Do ponto de vista político, o sistema e as
instituições estão sem legitimidade e desacreditados junto à sociedade.
Do ponto de vista institucional, há um golpe em andamento, um
presidente ilegítimo, o Congresso desacreditado com dezenas de políticos
denunciados e um STF que viola a Constituição e não faz aquilo que as
suas prerrogativas determinam. Do ponto de vista moral, o Brasil é
governando por um presidente denunciado duas vezes e por um governo
criminoso, que destrói os fundamentos éticos, as condições de futuro do
país e afronta a dignidade das pessoas.
O
STF precisa responder à sociedade como é possível que o país seja
governando por um presidente e por um governo sobre os quais recaem, não
acusações vagas, mas provas evidentes de que se trata de entes
delinquenciais. Nenhum país do mundo, minimamente sério e democrático,
teria um governo que é expressão de inominável indignidade. O STF
precisa responder à sociedade como é possível que ministros delinquentes
continuam ministros; como é possível que deputados e senadores
corruptos continuam em seus cargos.
Deputados
e senadores só são invioláveis, civil e penalmente, pelas suas
opiniões, palavras e votos, diz a Constituição. Não o são por atos
criminosos. Quando cometem crimes, precisam ser punidos na mesma
condição dos demais cidadãos. Se não for assim, isto é contra os
fundamentos e os princípios da Constituição. Se em algum lugar a
Constituição garante proteção a políticos criminosos, isto é contra os
fundamentos Constituição e o STF precisa pronunciar-se e adotar
providências. Se não é assim, a nossa Constituição não é nem democrática
e nem republicana. É uma Constituição refém de covardes, de sofistas e
de corruptos.
Aldo Fornazieri - Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).
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