O
grande capital governa, mas, contraditoriamente, não reina em paz, pois
o rei (o regime representativo) está nu, exibindo continuadamente em
público sua reprochável mácula, novamente exposta na segunda rodada de
denúncias da PGR contra o presidente Temer, desta vez abrangendo também
dois de seus ministros mais importantes, todos suspeitos de obstrução da
justiça e organização criminosa.
Nesse mar de lama, emergem do
bloco heterogêneo da direita que induziu à atual deformação regressiva
do Estado Democrático de Direito novas manifestações de autoritarismo
social, com respaldo dos políticos, e, na esfera institucional,
expande-se o bonapartismo, alastrando-se, preocupantemente, do
Judiciário e demais instituições de controle até nada mais nada menos
que a esfera militar. Os autoritarismos social e bonapartista
reforçam-se mutuamente, embora essa dinâmica ainda não tenha um curso
decidido. A crise de legitimidade é o centro de gravidade do direitismo.
A
deposição de Dilma, feito embalado na onda conservadora-neoliberal, não
tem logrado nem recuperar a atividade econômica e nem garantir a
estabilidade institucional, dada a desavença entre o Judiciário e os
dois outros poderes supremos da República. Apesar de haver
governabilidade, graças à aprovação da agenda política e legislativa do
Palácio do Planalto sob o guarda-chuva do presidencialismo de coalizão, o
sistema político carece de legitimidade. As maiores evidências disso
são a rejeição ao presidente Temer, nesse caso praticamente unânime, e
aos três principais partidos governistas: PMDB, PSDB e DEM, estes
repelidos por nada menos que 75% dos entrevistados, conforme a mais
recente sondagem de opinião, encomendada pelo próprio partido do
presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ).
A
perseverança da instabilidade trouxe novamente à cena a direita social.
No início de setembro, foi fechada, após protestos do MBL, a exposição
do Santander Cultural, em Porto Alegre, dedicada a temas LGBT.
Recentemente, ocorreu forte reação contrária a uma performance de nudez
artística no MAM-SP. Tais fatos, entre outros (como a questão da “cura
gay”) representam um avanço do conservadorismo e da intolerância da
direita social e política no plano da cultura e do comportamento. O
prefeito João Dória (PSDB-SP), por exemplo, acaba de publicar um vídeo
criticando as duas referidas manifestações e defendendo a censura delas.
Não por acaso, esse notório antipetista é virtual candidato à sucessão
presidencial de 2018, agenda eleitoral que várias forças progressistas
têm colocado em dúvida sobre se realmente será cumprida. Segundo a
última pesquisa do Datafolha sobre para a corrida eleitoral que se
avizinha, Jair Bolsonaro (PSC-RJ), que também corre em raia da direita
raivosa, aparece em segunda posição com 16% das preferências, 20 pontos
atrás do arquitemido líder Lula.
Mas o direitismo não para por aí.
Com a falência do Estado, que no Rio de Janeiro é paroxística, a
política de segurança pela via das tropas federais do Exército ocupou
territórios para combater o tráfico de drogas, ainda que em parceria com
as polícias locais e em contexto do grande evento Rock in Rio. A paz
dos moradores da Rocinha fica associada à presença dos tanques de
guerra. A retirada dos militares trás de volta a sensação de insegurança
à comunidade dos pobres e excluídos e de seus vizinhos privilegiados da
zona sul carioca, como um virtual saldo político do autoritarismo em
emersão lenta, gradual e segura.
Entrementes, os generais Hamilton
Mourão e seu superior e comandante do Exército, Eduardo Villa Bôas, já
admitiram entrar em ação para, nas palavras deles, evitar mais caos,
saneando o problema da corrupção no sistema político, expressão de outra
falência, a da liderança no sistema representativo democrático
realmente existente. O bonapartismo militar surge como outro ingrediente
autoritário da crise, como um salvacionismo em busca de apelo popular
para restaurar a ordem. Não se esqueça que, nas manifestações de 2016,
houve cenas de identificação mútua entre a direita das ruas e as
polícias militares que fizeram a segurança dos protestos, nem que há
saudosismo da ditadura entre uma minoria da opinião pública e que o
apoio à democracia tem caído em toda a América Latina.
Ademais,
como já apontado nessa coluna (e. g. 20 dez. 2016), o ativismo do
sistema jurídico-policial (Operação Lava Jato, MPF, Polícia Federal,
STF) abriu seu caminho de ação no processo político conjuntural um tanto
quanto motivado pela vontade de passar o país a limpo e inaugurar uma
nova etapa da história nacional. Até recentemente, esse ativismo era a
principal manifestação do bonapartismo decorrente da crise de
legitimidade que desequilibrou a balança de força entre os Três Poderes
em benefício do Judiciário. Sua mais recente manifestação foi a inédita
decisão da primeira turma do STF de afastar Aécio Neves (PSDB-MG) do
cargo e o submeter a recolhimento noturno, o que causou inúmeras reações
contrárias no Congresso Nacional, principalmente no Senado, e renovou a
tensão entre, por um lado, o Legislativo e o Executivo e, por outro, o
Judiciário. O nada exemplar senador mineiro é uma importante liderança
governista. Ainda que não tenha havido cassação do mandato de Aécio, a
prerrogativa para afastamento de cargo representativo cabe
constitucionalmente ao Congresso, de modo que a tese do bonapartismo
judiciário é plausível por mais esse fato.
A economia continua
muito mal das pernas. O colapso do Estado brasileiro e a adesão à
disciplina de mercado servem à penetração do capital internacional, os
chamados “investidores”, por via indireta e direta e por políticas
macroeconômicas e microeconômicas, como o teto de gastos pró-rentismo na
política fiscal, a reforma trabalhista, o reforço à dependência
nacional pelo estímulo ao investimento externo direito, a
desnacionalização do pré-sal e, a depender apenas da vontade dos
ultraliberais, da infraestrutura, facilitada pelos acordos de leniência
prejudiciais às grandes empreiteiras, e não ao patrimônio de seus
proprietários enquanto pessoas físicas e assim por diante.
Feitas
as contas, temos uma crise econômica, política e institucional.
Governabilidade, mas não legitimidade. Um presidente muito fraco perante
a nação, mas servil ao poder econômico. Se, por um lado, ele se esforça
para atender à demanda do mercado por previsibilidade, tem também
havido muita incerteza na esfera política e institucional, que nutre a
expansão do autoritarismo social e político, inclusive por sinais de
contágio militar do ímpeto bonapartista até então presente no
Judiciário. A democracia, golpeada e submetida às rédeas oligárquicas
das elites políticas e do grande capital com a deposição de Dilma,
prossegue com a saúde fragilizada.
*
Marcus Ianoni é professor do Departamento de Ciência Política da
Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador do INCT-PPED,
realizou estágio de pós-doutorado na Universidade de Oxford e estuda as
relações entre Política e Economia
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