sex, 20/10/2017 - 11:59
O que os pobres comem
por Urariano Mota
As notícias desta semana atualizaram uma fala do prefeito de São
Paulo, que em vídeo de 2011 gritou: “Pobre não tem hábito alimentar”.
Essa frase lapidar de João Doria esteve de volta quando ele anunciou a
distribuição da farinata – mistura de fascio e lixo de comida - como
ajuda alimentar para os pobres e crianças em creches. No vídeo, o então
apresentador Doria repreendeu um candidato que havia apresentado um
programa que incluía hábitos alimentares da gente do povo. E gritou, o
burguês Doria, cheio de ciência e autoridade:
- Hábitos alimentares?! Você acha que gente humilde, pobre,
miserável, lá vai ter hábito alimentar? Se ele se alimentar, ele tem que
dizer graças a Deus. O pobre tem fome, não tem hábito alimentar. Por
que essa insistência em um tema como esse?
Ontem, soubemos que o prefeito desistiu de incluir na merenda das
escolas da rede municipal de São Paulo a ração maravilhosa. Mas ele
continua com a farinata para os pobres adultos, que será distribuída
pela assistência social da prefeitura. Então, anoto brevíssimas
observações para essa caridade típica do burguês.
Primeiro, não é demais ensinar ao senhor prefeito que pobres são
pessoas, são gente. Se o miserável burgomestre de São Paulo não sabe,
vou lhe deixar aqui duas ou três coisas, do alto da minha experiência de
pobre, que em dias mais sombrios também passou fome. Saiba, prefeito,
que é uma experiência universal: as pessoas, por mais carentes, adaptam
ou adotam um caminho de vida humana em meio à penúria. Assim, em todo o
Nordeste brasileiro, do sertão ao litoral, as pessoas de todas as
classes gostam de comer cuscuz, arroz e feijão. Isso é um hábito,
pré-feito, isso é um gosto, uma escolha, um instinto de nacionalidade
que vai de geração a geração. Entre os pobres, até mesmo entre os mais
miseráveis, existe o hábito de comer carne, ou algo que pareça ou lembre
carne, quando nada vezes nada se possui para comer.
Saiba, perdido feito, que eu já vi família de quem era vizinho comer
pés e cabeças de galinha, cozidos em um caldeirão. Quero dizer, comer
aquilo não era bem uma opção, mas uma resistência do hábito de se comer
carne no almoço. Isto agora é cultura, burromestre, aprenda: uma mãe
pode fritar um só ovo para quatro filhos, ou pegar meio quilo de carne
de terceira, cheia de pelancas e osso, e servi-la para numerosa família.
De pedacinho em pedacinho, de taquinho em taquinho de carne. Ou até
mesmo – no extremo – sem ter nada vezes nada, uma senhora mãe pode pegar
ervas no mato e fervê-las para servir em farofa. Nesse limite, ervas
com farinha – não farinata, mas farinha de mandioca – essas pessoas
lembram o hábito alimentar de comer carne, feijão, arroz. Que passa
então a ser sonhado para melhor oportunidade.
Um exemplo, que talvez o magnífico burromestre entenda: um homem pode
viver sozinho, sem mulher, mas isso não quer dizer que ele tenha se
acostumado a não ter o calor do sexo. Ou que ele tenha se transformado
em uma nova categoria de marciano. Então, tente compreender num máximo
esforço, pré-histórico Doria: pobres também são pessoas que têm hábitos
seculares, que estão inscritos no seu DNA antes que tenham consciência.
Quero dizer: o hábito é um modo de ser, quando não, uma marca
inescapável de identidade. Os pobres vivem e se adaptam como podem, mas
têm sua identidade, seus hábitos alimentares, e o miserável burromestre
não sabe.
E atenção, amigos, olhem só até onde poderemos cair. A proposta da
farinata – fascistada - levada adiante por Doria já foi aprovada este
ano na Câmara dos Deputados e agora tramita no Senado. Ou seja: a ração
para os pobres ameaça se tornar uma lei nacional de combate à fome.
Amigos, saibam que depois da legalização do trabalho escravo, poderemos
ter ração de lixo em farinha para os miseráveis do Brasil. O Estado a
que chegamos supera os mais inverossímeis pesadelos.
Daí que não será indevida a grande antecipação de Swift , que piedoso
já havia notado a terrível condição dos miseráveis que não têm o que
comer:
“É motivo de melancolia para aqueles que passeiam por esta grande
cidade, ou que viajam pelo campo, verem nas ruas, nas estradas, e às
portas das barracas, uma multidão de pedintes do sexo feminino, seguidas
por três, quatro, ou seis crianças, todas em farrapos, a importunarem
cada passante pedindo esmola”.
E num ato de gênio criou em 1729 a farinata de Doria:
“Foi-me garantido por um muito sábio americano, que uma criança jovem
e saudável, bem alimentada, com um ano de idade, é do mais delicioso, o
alimento mais nutriente e completo – seja estufada, grelhada, assada,
ou cozida. E não tenho qualquer dúvida de que poderá igualmente ser
servida de fricassé ou num ragu... Uma criança dará duas doses numa
festa de amigos; e se for a família a jantar sozinha, os quartos da
frente, ou de trás, proporcionarão um prato razoável. Se temperada com
um pouco de sal ou pimenta e cozida, estará ainda bem conservada no
quarto dia, especialmente no Inverno.
Concedo que esta comida venha a ser de certo modo cara e, portanto,
estará muito adequada aos senhorios – e dado que estes já devoraram a
maior parte dos pais, poderão ter direito de preferência sobre os
filhos. A carne dos bebés estará dentro do prazo o ano todo, mas será
mais abundante um pouco antes, e depois, de março”.
Ao fim, penso que em lugar do título “O que os pobres comem”, mais próprio seria ter escrito:
O que come os pobres
A resposta é simples: todo carnívoro de classe come os pobres. Gente à
semelhança de porco feito Geddel, Blairo Maggi. Gente feito vampiro à
semelhança de Michel Temer. Gente feito os parlamentares vendidos na
Câmara e no Senado. Todo capital assim representado, todo capitalista
come os pobres. Swift já dizia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário