Na última terça-feira de julho, uma
mensagem apitou no celular de Kim Kataguiri, principal líder do
Movimento Brasil Livre. Conhecido nacionalmente como a face pública do
MBL, ele acabara de ser incluído em um grupo de WhatsApp chamado “MBL –
Mercado”. A cúpula do grupo – que ganhou notoriedade nas redes sociais
clamando pelo impeachment de Dilma Rousseff – também estava lá: os
irmãos Renan e Alexandre Santos, o vereador democrata de São Paulo
Fernando Holiday, o youtuber oficial do movimento e dono do canal “Mamãe
Falei”, Arthur do Val, e Pedro Augusto Ferreira Deiro, também conhecido
como o funkeiro Pedro D’Eyrot. O grupo, criado por um entusiasta do
MBL, serviria como interface entre o movimento e executivos de médio e
alto escalão do mercado financeiro – pelo menos 158 funcionários de
instituições como Banco Safra, XP Investimentos e Merrill Lynch.
Objetivos iniciais: levantar dinheiro para financiar o MBL e levar as
pautas dos executivos às discussões públicas e aos encontros a portas
fechadas que os membros do MBL teriam com políticos e lideranças
nacionais. Contudo, muito mais seria dito.
A piauí teve acesso ao histórico de conversas do dia 25 de
julho (13h49) até a última quarta-feira, 27 de setembro (20h25). As
trocas de mensagens durante esses dois meses renderam 685 páginas de
bate-papo que tratam de temas como saúde, segurança pública e educação.
Os debates acalorados aconteciam, no entanto, quando o grupo falava de
seu principal assunto no momento: o PSDB. Em meio a uma guerra fria
entre o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, e o prefeito
paulistano, João Doria – que disputam nas coxias o cargo de candidato à
Presidência da República no próximo ano –, o partido é tratado como um
território a ser pilhado pelo MBL. O movimento quer drenar parte das
jovens lideranças tucanas – as quais chamam de “cabeças pretas” –,
deixando os decanos do partido – os “cabeças brancas” – à deriva.
“A ideia é deixar todo esse povo podre afundando com o psdb e trazer a
galera mais Jovem e liberal pro mbl”, respondeu Kim Kataguiri em 22 de
agosto a um participante temeroso de que o grupo se juntasse ao
tucanato. Outro líder do movimento, Alexandre Santos, emendou: “Mas não
estamos nos juntando ao PSDB. Muito menos ao Aecio, Beto Richa e
Alckmin.” Ao serem questionados se o MBL teria “algum preconceito com
pessoal mais velho”, referindo-se aos tucanos mais antigos, Kataguiri
teclou: “Com os do PSDB temos preconceito, conceito e pós-conceito. São
pilantras.” No dia seguinte, Renan reforçou, em um áudio enviado ao
grupo: “Não bastava a gente tirar o PT do poder, estamos destruindo o
PSDB ali, essa ala de esquerda tá desesperada, estamos pegando os
melhores nomes deles e, ou eles vão sair, ou eles acabam fortalecendo e
tomam partido e tiram essa esquerda aí. Mas a esquerda do PSDB tá
desesperada, e não para de vir novas lideranças do PSDB pro time.
Doideira. Bom dia, aí.”
Os alvos principais no partido são os senadores Aécio Neves e José Serra, e também o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin.
Serra surge nas conversas no dia 22 de agosto, quando se alinhou ao
senador petista Lindbergh Farias pela suspensão das discussões sobre a
nova taxa de juros do BNDES, mais alta que a atual, desejada pelo
governo Temer e encampado pelo MBL. Farias e Serra tentaram protelar a
votação da Tarifa de Longo Prazo (TLP) até que ela caducasse sem ser
apreciada. Em áudio, Renan Santos comentou: “E ontem o Serra, por
exemplo, que é dessa ala de esquerda, tava com o Lindbergh Farias indo
contra o TLP, imagina? Vagabundo.” Logo recebeu apoio: “Vagabundo mesmo
Renan”, disse um membro. “PSDB e Serra ontem morreram para mim. Carga
total no Novo/MBL/VPR e Doria”, disse outro. A TLP seria aprovada dias
depois.
Aécio Neves aparece no dia 5 de setembro, quando um participante
postou a seguinte mensagem em relação à operação que flagrou o senador
mineiro, em grampo, pedindo 2 milhões de reais ao empresário Joesley
Batista, da JBS: “E o Aecio… dispensa comentários… Que termine o mandato
e seja encarcerado na sequência…” Renan Santos respondeu: “Tb acho”,
disse. Mas justificou o que prenunciaria uma mão leve nas críticas
públicas feitas pelo MBL ao senador: “Só não vamos alterar a
configuração atual das forças políticas nem fornecer uma narrativa que
favoreça o ressurgimento da esquerda enquanto isso. Essa é a tônica do
que defendemos.”
Alckmin é citado quando um membro comenta a notícia, veiculada em 27
de setembro, de que o ex-ministro dos governos Lula e Dilma e
ex-deputado federal Aldo Rebelo seria o vice do governador de São Paulo
em uma eventual disputa pela Presidência da República. Os irmãos Santos
trocaram mensagens. Alexandre escreveu: “Aldo Rabelo é fim de linha. O
bom é isso sepulta de vez o xuxu.” Renan respondeu: “Po. vamos torcer.”
As críticas ao PSDB deixam os inimigos tradicionais do MBL como
coadjuvantes no ringue. Não faltam, é claro, porretadas em Dilma, em
Lula, no PT, no PSOL, em Marina Silva e na Rede. Mas outros possíveis
adversários aparecem com mais destaque: Jair Bolsonaro (“tosco”,
“ignorante”, “sem noção”, “inadmissível”) e Luciano Huck – que, caso
saia candidato, poderia “diluir o voto da direita”, enfraquecendo Doria.
“Ele é piada”, disse Renan Santos. Quinze minutos depois, completou:
“Huck é lixo. Politicamente correto, desarmamentista, ambientalista de
boutique, intervencionista.”
O esvaziamento do PSDB engendrado
pelo MBL no grupo de WhatsApp parece ter como objetivo final tirar o
prefeito de São Paulo, João Doria, do partido. O apoio à candidatura de
Doria dá o tom em várias conversas durante os dois meses de debates. No
dia 5 de agosto, o movimento produziu um vídeo e postou nas redes
sociais, compartilhando no grupo fechado logo em seguida. O título: “Que
coisa feia, prefeito… Kim Kataguiri detona racismo e xenofobia de João
Doria.” Sem assistir ao vídeo, alguns membros se mostraram preocupados
com o título polêmico que parecia uma crítica ao prefeito. Alguém tratou
de jogar panos quentes: o título era, na verdade, irônico – seu
conteúdo era amplamente favorável a Doria.
Não convencidos, participantes questionaram se aquele tipo de ação
não causaria mal-entendidos nas redes sociais (“Aposto que tem gente de
esquerda compartilhando o video sem ver, achando que a crítica é
realmente ao Doria…”, alertou um). O líder Renan Santos respondeu, com
duas mensagens: “Esse tipo de chamada em video e noticias, como um
clickbait, funciona legal. Seria uma estratégia babaca se o vídeo não
fosse bem humorado, mas a ideia justamente era fazer algo leve. O Doria
adorou kkk.”
No dia 16 de agosto, quando comentavam sobre a possível trucagem
engendrada pela Rússia nas eleições dos Estados Unidos, um participante
teclou sobre a consultoria política Cambridge Analytica, que teria usado
bases de dados disponíveis na internet para influenciar a eleição de
Trump e a saída do Reino Unido da União Europeia. Mesmo diante da
postura cética de alguns membros, o participante enfatizou: “Isso é
muito sério, gente. E podem ter certeza que vai ser usado aqui em 2018.
Só espero que o Doria ja tenha fechado contrato de exclusividade com a
Cambridge analytica. Rss.”
Três dias depois, quando o prefeito de São Paulo disse publicamente
que aceitaria se candidatar à Presidência pelo PSDB, outro participante
comemorou: “Go Dória.”
No fim da tarde do último domingo de agosto, Renan Santos mandou uma
mensagem em tom definitivo para o grupo que ansiava por uma decisão do
prefeito paulistano: “Jd será candidato”, teclou, referindo-se a João
Doria, sem, no entanto, citar a fonte da informação. Alguém respondeu:
“Dória e ACM Neto é o gabarito.” Em outras três mensagens, Santos
continuou: “Com ou sem psdb. A aliança q pode lhe eleger está no pmdb
dem evangélicos agro e mbl. Nosso trabalho será o de unir essa turma num
projeto comum.” E completou, menos de meia hora mais tarde: “Espero, de
coração, q a tese q a gente defende (aliança entre setores modernos da
economia + agro + evangelicos) seja aplicada. É a melhor forma de termos
um pacto politico de centro-direita, q dialoga com o campo e com a
classe C.”
Se no grupo fechado o MBL garantia que estava trabalhando para roer o
PSDB por dentro, publicamente a postura do grupo era diversa. Em fins
de setembro, o movimento disparou no Twitter: “Tem ninguém aqui querendo
rachar a direita”, dizia a mensagem, para seus 91,5 mil seguidores. E
completava: “Uma pena que tenha gente querendo destruir o MBL com facada
nas costas.”
As conversas ajudam a elucidar, mesmo
que parcialmente, um dos maiores mistérios que cercam o MBL: como o
grupo se financia. “O MBL não está exatamente nadando em dinheiro. Os
caras precisam ir pra Brasília de ônibus”, disse o criador do grupo de
WhatsApp e entusiasta do movimento em 27 de julho, dois dias depois de
iniciada a troca de mensagens. A partir daí contribuições se tornaram
assunto recorrente.
Uma planilha foi criada para que os integrantes do “MBL – Mercado”
registrassem seus dados e o valor das doações. No início da tarde de 9
de agosto, uma quarta-feira, um deles anunciou: “já mandei 15 mil e vou
mandar mais”. “Opa! Foi hoje?”, respondeu Alexandre Santos, no mesmo
minuto. “Hoje não mandei, vou mandar mais tarde. Os 15k mandei faz um
mês.” Com a ajuda de integrantes que atuam como arrecadadores (enviaram
12 vezes o link com a planilha), a tática de convencimento pessoa a
pessoa ficou aparente.
De tempos em tempos, a evolução dos aportes foi sendo informada pelos
participantes. E as mensagens serviam como uma espécie de livro-caixa
do MBL naquele grupo: em duas semanas, foram arrecadados mais de 50 mil
reais, reforçados, aparentemente, por um evento presencial. Além das
contribuições esporádicas, os integrantes descreveram uma receita fixa
mensal que, no período das conversas, só cresceu. Também na
quarta-feira, 9 de agosto, um balanço da planilha feito pelos
integrantes indicava que um punhado de apoiadores já doavam, somados, 2
380 reais todo mês. No dia seguinte, já eram 5 780 reais fixos por mês
na soma de todos os apoiadores.
A tabela de Excel que fazia as vezes de livro-caixa passou dias sem
registrar novos doadores, o que incomodou um dos participantes. No dia
17 de agosto, logo cedo pela manhã, ele decidiu pressionar os demais.
Escreveu: “Agora, sem querer dar uma de moderador chato, tem um pessoal
que ta cagando pra preencher essa xls. tudo em branco ainda. xls ja ta
aqui faz quase tres semanas. das duas, uma: ou quem nao preencheu nao lê
esse grupo faz semanas e nao viu o pedido pra preencher, ou
simplesmente ta cagando mesmo pro mbl rs. em ambas as hipóteses, acho
que a pessoa nao deveria estar aqui. right?”
E voltou à carga, 15 minutos depois: “Acho que temos graus de
afinidades diferentes no grupo, nem por isso penso em excluir os que
ainda não se sentem 100% prontos para contribuir de forma efetiva. Se
não conseguirmos mostrar o valor dessa parceria entre nós que estamos
alinhdos, sinal que estamos fracos contra os reais adversários, e gosto
da ideia de ter o contraponto “razoável” aqui dentro… mas claro, alguma
hora, cada um tem que tomar a decisão: avaliou, discutiu, pensou… entao
ou se engaja mais ou abre espaço pra outro.”
A pressão funcionou. No dia seguinte, as doações de 37 integrantes já somavam 8 510 reais mensais.
Para formar uma espécie de distinção entre seus membros, o MBL criou
nomes que seriam dados conforme os valores depositados mensalmente. A
maioria dos participantes optou pelo plano “Mão Invisível”, de 250 reais
por mês, o que garante ao doador a participação em jantares e reuniões.
Outros planos receberam nomes como “Agentes da CIA” (30 reais por mês),
“Exterminador de Pelegos” (500 reais mensais) e “Privatiza Tudo” (5 mil
reais todo mês). Esses, pagos via PayPal.
As trocas de mensagens renderam também outro tipo de auxílio nas
despesas do movimento: a transferência de milhas aéreas não usadas pelos
executivos, para utilização em viagens dos integrantes do MBL. Outra
planilha também foi criada para o controle. “Era legal você ter acesso a
isso”, disse Alexandre Santos a Kim Kataguiri. Em menos de um dia, 400
mil milhas foram doadas e, em um mês, dezessete pessoas haviam doado 959
mil milhas, segundo a troca de mensagens – ou, mais de 20 mil reais,
pelas contas de um dos integrantes, com base em passagens aéreas de São
Paulo a Brasília. “Muito obrigado pelas milhas, pessoal! Vou sentir
saudade das garrafinhas de água e dos biscoitos cream cracker do busão”,
escreveu Kataguiri.
O presidente Michel Temer é citado 76
vezes no grupo. Pelas conversas, o MBL – que foi uma das maiores forças
para derrubar Dilma – tem uma relação utilitarista com o político: não o
defende abertamente, mas se utiliza do poder de pressão para aprovar a
agenda política, cultural e econômica do movimento.
No dia 2 de agosto, um membro postou uma notícia informando que o
presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, já tinha quórum para
votar a denúncia feita pela Procuradoria-Geral da República, que acusava
Temer de corrupção passiva. Nenhum líder do MBL respondeu. Duas semanas
depois, um participante comentou em três mensagens distintas: “Reunião
com Deputado federal do DEM agora. Disse que governo Temer precisa focar
em reforma da previdência na divulgação nas redes sociais. Precisam de
ajuda na comunicação para população entender.” Um minuto depois, Renan
Santos, do MBL, se prontificou: “Já estamos, soltamos dois videos.”
No dia 21 pela manhã, uma segunda-feira, um participante perguntou:
“O MBL vai participar do protesto este domingo?”, referindo-se a uma
marcha contra a corrupção convocada por movimentos sociais e sites
ligados à direita, que aconteceria no dia 27. Quinze minutos depois, Kim
Kataguiri respondeu: “Não vamos. Achamos que é um tiro no pé, não há
clima para mobilização, qualquer que seja a pauta.” Um mês depois,
durante uma discussão sobre reformas, Renan Santos disparou,
possivelmente referindo-se a Temer: “E é o seguinte: vamos tentar botar
pra frente essa previdência. Ainda da tempo. O zumbizão ta lá pra isso
kkk.”
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