Num tempo de sensibilidades afloradas, certas emoções ocupam o
centro da política. É neste ambiente que grupos primitivos porém hábeis
em manipulação de afetos, como o MBL, tentam emergir
Por Fran Alavina | Imagem: William Gropper, Leilão de Arte (1959)
A experiência do mundo contemporâneo parece ter gerado um consenso
estético de que vivemos tempos de insensibilidade. Ainda que possa soar
como algo piegas, e independentemente do espectro político –
progressista ou conservador – é cada vez mais audível o discurso de que o
caos atual, essa desordem programada a que assistimos atônitos, como se
fosse uma pura ficção, seria fruto de uma ordem de coisas de natureza
insensível. Para direita e para a esquerda, o certo é que este mundo
atual não é o melhor dos mundos possíveis.
Bastaria, por exemplo, ouvir os discursos de Jean-Luc Mélenchon (à esquerda) ou de Marina Le Pen
(à extrema direita), nas últimas eleições presidenciais francesas para
se ter certeza de que seus pressupostos eram, antes de tudo, estéticos.
Um “amontoado” de elementos discursivos contra a insensibilidade. Não se
quer com isso afirmar que os dois são iguais, mas sim que os dois estão
submetidos a uma ordem presente que faz dos afetos, das emoções e de todo campo sensível o lugar político mais determinante.
É preciso sensibilizar, emocionar, ganhar os afetos individuais como se
eles fossem somente uma mera determinação subjetiva, uma disposição
pessoal sem nexo com outras determinações histórico-sociais.
De fato, os usos perversos de nossas disposições afetivas criaram
esta ilusão de que somos pequenos átomos sensíveis, de funcionalidade
própria: sentiríamos sobre o que bem quiséssemos e como quiséssemos. A
realidade seria apenas o ativador dos circuitos sensíveis que
funcionariam de acordo com a nossa livre decisão. Ocorre, porém, que
nossas disposições sensíveis e afetivas não estão autonomizadas da
cultura, ou seja, elas não são meramente naturais, pois também são um
construto social.
Nossa sensibilidade nunca é solitária, ela se forma na interação com o mundo, que nos aparece em um primeiro momento como uma comunidade sensível,
isto é, como um lugar de seres que sentem de modo semelhante e em
conjunto. Se alguém ri daquilo que nos faz chorar, conjecturamos que
esta pessoa não é um dos nossos, pois incapacitada de formar conosco
solidariedade afetiva. Do mesmo modo, se perante algo que causa profunda
comoção social, alguém parece não se comover, dizemos que é um
insensível; e, dependendo da situação, chega-se mesmo a colocar em
questão sua humanidade. Aprendemos a medir o grau de humanização a
partir de uma teia sensível, de uma gama de afetos que construímos ao
longo do tempo, e que por nos conectar com nossa intimidade, acabamos
naturalizando como se fosse algo já dado de uma vez por todas.
Em virtude dessa naturalização de algo que não é natural, quase não
se percebe que no momento histórico que nossas capacidades sensíveis
estão expostas a um grau máximo de excitação, diz-se que são tempos de
insensibilidade: o período da sensibilização intermitente é dito
insensível. Será que o nosso sentir tornou-se um não sentir? Será que na
verdade nada sentimos quando achamos sentir?
A ascensão do virtual retirou do real a capacidade de ativador
primeiro de nossa sensibilidade. Não que o real não nos excite mais,
porém ele somente nos sensibilizará se nos for dado na forma do virtual.
Uma mistura que quando subordina o real à forma do virtual leva a
considerar, de modo estapafúrdio, que há uma “realidade aumentada”.
Dessa mistura gesta-se uma confusão entre real e virtual, confusão que
cria o paradoxo de que os tempos da sensibilidade absurda são tempos
insensíveis. Mas aí o que se chama insensibilidade, na maioria das
vezes, é incapacidade de lidar com os novos recursos que expandem nossa
sensibilidade; em outros casos, é o contrário, trata-se da capacidade de
gerir estes recursos de modo a se realizar uma gestão política dos
afetos. Fazendo parecer que a manipulação sensível-afetiva possa se
passar por espontânea e legítima, já que estamos acostumados a pensar
que nossa sensibilidade age autonomamente perante seus ativadores.
As manifestações destituintes de 2015 e 2016 marcaram para nós um modelo de gestão política dos afetos. Nelas, os afetos da política foram transformados cada vez mais na política dos afetos.
Do nosso lado, alguns contentaram-se com uma explicação superficial,
que até hoje ainda vem à tona, de que o ódio explicaria por si só todo o
circuito afetivo de uma passionalidade política reacionária. Se é certo
que há uma boa parcela de ódio, ele não age sozinho, e, ademais, não
pode ser assumido abertamente, uma vez que é uma das marcas da
construção social de nossa sensibilidade que odiar não é o mais nobre
dos sentimentos.
Neste modelo de gestão política dos afetos destacou-se um grupo gestor preparado: o MBL.
Foi um dos principais articuladores de como se deveria sensibilizar
para as manifestações. A desculpa de que a corrupção era o principal
alvo, criou uma normalização dos afetos, pois quem não se moveria contra
ela, quem não se indignaria contra o roubo? Contra a corrupção todos as
reações eram legítimas, espontâneas, corretas, em uma palavra: eram
naturais.
Esta naturalização vulgar dos afetos, que se não eram completamente
manipulados, não se poderia dizer meramente espontâneos, deu lugar a um
discurso que deve manipular a sensibilidade política para daí criar a
ilusão que há um consenso, quando, na verdade, há apenas uma aglutinação
de indivíduos que se movem por uma sensibilização que lhes é externa, e
sobre a qual não possuem domínio, mas que para eles se mostra como algo
espontâneo-natural.
Assim, a excitação que partiu do virtual, fez das ruas uma espécie de
“realidade aumentada”, já que as manifestações continuavam a ocorrer
mesmo depois de se ter ganhado as ruas e saído delas; e nestas mesmas
ruas, elas ocorriam sob a forma do virtual. Era como se os vídeos
assistidos nas páginas virtuais do MBL pudessem ser vistos apenas em
outro lugar que não o computador, ou o aparelho celular, obedecendo,
contudo, as mesmas formas. Era preciso excitar, de modo que ativação do
estado de excitação política perdurasse o máximo possível, pois como bom
gestor da manipulação emocional, o grupo sabe que não se pode exercer
um domínio ininterrupto sobre um estado de excitação por demais
prologando. O organismo excitado cansa, além de se dar por satisfeito
quando desconfia ter alcançado o ápice de suas aspirações.
O orgasmo político já aconteceu, posto que a destituição foi
realizada. Como nos momentos de pós-gozo, o grupo e seus mais fiéis
seguidores aproveitaram-se dos rendimentos de sua estratégia política,
elegeram vereadores alguns de seus mais destacados agentes excitadores,
sem, logo após as manifestações destituintes provocar um novo
estado de excitação do mesmo tipo. Era preciso elaborar um discurso
legitimador da experiência orgástica, para que ela pudesse ser recordada
e colocada em uso nos momentos em que não podendo ser de novo ativada,
ao menos prometesse a repetição da experiência.
Sem a promessa de repetição, o grupo perderia sua legitimidade, já
que se mostraria incapaz de conduzir novamente os mesmos estados de
excitação. Daí ter chegado o tempo de realizar um novo circuito de
comoção emocional e obscurecimento afetivo. Todavia, se agora não há
mais um estado político capaz de pôr em marcha as estratégias da
sensibilidade manipulada do grupo, como excitar de novo, já que seus
seguidores já estavam sob um longo período de abstinência?
Ora, a estratégia foi então voltar-se para aquele campo que apela mais diretamente ao sensível: a Arte.
Neste âmbito, como na Política, todo nosso campo afetivo pode
liberar-se dos usos cotidianos e das experiências hodiernas que excitam
pouco, e que se mostram para nós carentes de maior sentido. O
deslocamento dos canhões midiáticos do grupelho, que se desviou dos
eventos mais essencialmente políticos, não foi um simples desvio de
foco, mas a tentativa de continuar chamando atenção, vinculando entre
seus seguidores um estado de excitação como aquele de 2015 e de 16.
Pode-se identificar aí o mesmo princípio viciante dos narcóticos:
após um longo período de abstinência, é preciso repetir a dose. Afirmar
que o MBL é uma droga não é uma sentença de sentido metafórico, mas
plenamente literal. Por conseguinte, é preciso ficar atento, já que uma
vez estabelecido o ciclo vicioso, a tendência é que a dosagem seja
aumentada. De fato, funcionando como um tipo de ópio – talvez se pudesse
dizer o ópio dos liberais, se liberais por aqui houvesse – o
MBL descaracteriza a realidade, dando a seus seguidores aquilo que pode
excitá-los mais uma vez. O princípio de realidade é substituído pelo princípio de prazer, pois a ilusão e a farsa, na grande maioria dos casos, são mais prazerosas que a realidade.
De fato, não estava em questão uma discussão de cunho estético sobre
as obras que o grupo se empenhou em destratar em obsessivos expurgos. A
experiência artística foi deixada em segundo plano para dar lugar a um
tipo de julgamento moral. Este joga com a vulgarização e o
empobrecimento do campo sensível-afetivo. Na verdade, quando perguntamos
a alguém que se deixou contaminar pela manipulação do MBL,
declarando-se contra as exposições, sobre qual justificativa estética
embasou a crítica, no geral ouve-se que não é arte. Então, quando se
pergunta qual a sua respectiva definição de arte para que se possa
separar o artístico do não artístico, o silêncio é a resposta mais
frequente e menos vergonhosa. Depois de mais algumas indagações, apenas
se repete: “aquilo lá não era Arte”! Mas baseado em que se diz
que não é Arte? De novo o silêncio, ou o balbuciar de uma tentativa de
resposta que não vai além de uma referência ensimesmada.
Se o grupo fosse honesto em suas condenações estéticas, e até mesmo,
um pouco menos embrutecido, poderia ter acrescido às suas justificativas
uma noção de poética, de quais regras considera válidas no
plano do fazer artístico. Ou mesmo poderia apresentar exemplos daquilo
que consideram como arte autêntica. Contudo, isso seria exigir demais…
Em recente entrevista-almoço, uma das suas lideranças mais destacada,
ao justificar os atos contra as exposições, mostrou quão ricos são seus
conhecimentos. As exposições devem ser fechadas, segundo ele, por serem
financiadas com dinheiro público. Não aparece, uma única vez, um mísero
argumento de caráter estético. Tudo se passa como se ele estivesse
tratando de um delito comum, ou de uma de suas simplificações de
economia liberal. Segundo ele, em tempos de crise, Arte não é
prioridade. Depreende-se de sua resposta que o artístico é um bem de
luxo, não uma necessidade humana essencial. Sua resposta deixa ver que,
como já desconfiávamos, nunca se tratou de Arte, mas de reativar a sanha
manipuladora de afetos do MBL.
Esta sanha, porém, não pode se mostrar como é: embrutecida e criadora
de afetos repressores. É preciso dar uma roupagem de civilidade.
Durante suas respostas, Kim usa chavões como dizer que defende os
pilares da civilização ocidental “que basicamente são a filosofia grega,
o direito romano e a religiosidade judaico-cristã”. Quase no fim da
entrevista afirma que “de inspiração filosófica, sou platônico, acho que
a ideia precede a matéria, acho que isto ajuda a ter a compreensão de
que existe certo e errado, minha visão anti-relativista vem daí, de
Platão”. Qualquer estudante de Filosofia do primeiro semestre sabe que
está frase é uma das maiores vulgarizações do pensamento platônico,
coisa de quem, de fato, nunca se dedicou seriamente à leitura dos
diálogos do pensador grego — é aquele tipo de coisa que se diz à mesa
para se parecer mais culto. Ah, tinha esquecido que a entrevista foi
durante um almoço!
Contudo, no caso do afilado Kim, que se diz liberal, isto é ainda
pior, pois se tivesse lido um dos diálogos do autor que diz ser sua
fonte de inspiração, saberia que no seu modelo político ideal, o Estado
deve exercer um tipo de controle quase absoluto, bem mais além das
intervenções estatais que o moço do MBL tanto combate. Seria apenas
tragicamente contraditório, se também não fosse cômico: eleger como uma
de suas fontes de inspiração alguém que afirma o contrário do que você
defende. A explicação dessa contradição, contudo, está em uma declaração
dada um pouco antes. Sobre uma obra citada, ele diz: “esse, eu confesso
que não li inteiro, só uns capítulos porque é grande o negócio”. Talvez
ele nunca leia A República, de Platão, sua inspiração filosófica, para se dar conta da contradição, pois, como ele mesmo diz, “é grande o negócio”…
Kim parece gostar de livros tão curtos quanto suas ideias.
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