seg, 09/07/2018 - 12:50
A batalha (que não houve) sobre o HC de Lula
por João Feres Júnior
Eventos críticos como os ocorridos nesse domingo, dia 8 de julho de
2018, são cruciais para revelar o nível de politização a que a grande
mídia brasileira chegou. Em períodos de polarização política, como este
que atravessamos desde 2013, eventos críticos tendem a gerar
controvérsia, palavra que significa literalmente oposição de versões,
isto é, diferentes pontos de vista. O evento de ontem foi um caso
exemplar. Perante a dissonância interpretativa, como se comportou a
grande mídia? Vejamos aqui dois exemplos bastante significativos que não
pertencem ao rol de meios examinados pelas análises do Manchetômetro.
Matéria na Band News no dia 9 de manhã comentando a batalha jurídica
em torno da liberação de Lula que se travou no dia anterior. O âncora
descreve o ocorrido, de maneira a dar entender que o presidente do
TRF-4, Flores, terminou com a “confusão”. Daí ele parte para ouvir
opiniões de especialistas. Primeiro fala um jurista que diz que o
desembargador plantonista Rogério Favretto não pode reverter decisão da
própria corte e que somente o STJ poderia decidir sobre um habeas corpus
para Lula. Em seguida, outro jurista declara o contrário – que o
plantonista pode sim decidir dessa maneira, mas que ele não pode estar
movido por motivo ideológico, como estava Favretto. Aí a Band News abre
seus microfones para ninguém menos que Janaína Paschoal, que com seu
estilo já bem conhecido, desanca a decisão de Favretto. Por fim, volta o
âncora dizendo que a defesa de Lula não aceitou a decisão do presidente
do TRF-4, que cancela o ato de Favretto.
É difícil conceber cobertura mais enviesada. Nenhum dos agentes que
defendeu a soltura do petista foi ouvido pela reportagem da Band News,
juristas com posição favorável ao habeas corpus tampouco. Um dos
juristas entrevistados, o que desqualifica o procedimento de aprovação
do habeas corpus por Favretto, atuou como promotor da Lava Jato. O outro
desqualifica Favretto, acusando-o de ideológico, um argumento bastante
estranho pois se generalizado, desqualificaria boa parte dos juízes
brasileiros, inclusive vários ministros do STF. Não bastasse essas duas
fontes bastante desequilibradas para um lado da controvérsia, a Band
News conclama o auxílio luxuoso de Janaína Paschoal, cujas credenciais e
modus operandi dispensam comentários, mas que vale anotar, tem posição
extremamente parcial na controvérsia, como era de se esperar.
Perante esse estado de coisas, cabe a pergunta: onde está o outro
lado? A resposta é simples: ele aparece muito brevemente quando os
advogados de Lula são nomeados, mas não ouvidos, e só. Advogados são
parte; eles têm o dever profissional de defender seus clientes.
Portanto, não contam como opiniões advindas da sociedade usadas para
exemplificar as posições em torno de um evento. Vamos ao outro exemplo.
Enquanto se desenrolavam os acontecimentos, no período da tarde, o
UOL, portal noticioso de propriedade do grupo empresarial da Folha de S.
Paulo, estampava no topo do site foto do ex-presidente Lula com
chamadas para cinco matérias. A foto em si continha a legenda “Relator
não solta Lula”. As outras três matérias cujas chamadas estão ali são
impressionantes. A primeira tem o seguinte título: “Para Moro, juiz é
incompetente”. O texto dá a palavra a Moro para desqualificar a decisão
do desembargador Favretto. Em seguida, vem reportagem em que a palavra é
dada a membros do MPF envolvidos na Lava Jato, que fazem o mesmo. A
próxima matéria tem a seguinte chamada: “Marun: Lula não pode ser
candidato”. O entrevistado agora é o ministro da Secretaria de Governo,
Carlos Marun, que já havia dado declaração idêntica quando da decisão do
TRF4 de rejeitar os embargos de declaração do ex-presidente, em março
deste ano.
Por fim, o UOL coloca a chamada para a matéria intitulada “Políticos
comentam a decisão”. A estrutura do texto é bastante simples. Ela
consiste em uma lista alternada de políticos, uns a favor e outros
contrários ao habeas corpus de Lula. Há uma exceção, contudo, ao rol de
políticos elencados na matéria: o líder do MBL Kim Kataguiri. Todos ali
têm ou tiveram mandato, menos ele.
Temos aqui mais um exemplo de viés pronunciado, acompanhado de
silenciamento de vozes discordantes. É preciso entender a estratégia de
apresentação da opinião adotada por essas mídias para ter uma real
compreensão do grau de politização de sua cobertura.
A Band News optou por uma estratégia mais simples. Separou opinião
douta, de supostos especialistas, de opinião interessada, no caso a dos
advogados de Lula. Para compor o primeiro time escalou um ex-integrante
da Lava Jato, Janaína Paschoal, e outro jurista com opinião também
contrária ao habeas corpus. Em suma, falta total de pluralidade no
âmbito da opinião douta, apesar de haver uma multidão de juristas de
opinião diversa. Os advogados de Lula são as únicas partes nomeadas.
Assim, a cena dramática composta é de agentes partidários em contenda
contra agentes técnicos, cuja opinião desinteressada é consensualmente
contrária aos interesses partidários.
No UOL a estratégia é um pouco mais complexa, mas nem por isso mais
sofisticada. Assim como na matéria da Band News, temos uma narrativa dos
fatos supostamente isenta que então é qualificada por opiniões. O UOL
também utiliza o recurso da opinião douta. Para esse papel escalam
Sergio Moro e os procuradores da Lava-Jato. Tal escolha é no mínimo
temerária, dado que a suposta falta de isenção desses operadores do
direito é matéria da própria contestação ora em trânsito no TRF4. Assim,
no que toca os eventos de domingo, Moro e os promotores lavajateiros
são também parte interessada e não operadores isentos do sistema de
justiça. Não bastasse tal escolha enviesada, a editoria do Portal
publica a opinião requentada de Carlos Marun, político envolvido na
articulação que retirou a presidente do PT do poder. A matéria com o
ping pong entre políticos contra e a favor pretende claramente dar um
verniz de pluralidade à cobertura do UOL. Mas tal verniz mal esconde o
viés, dada a maneira tendenciosa com que a opinião douta foi
representada e o privilégio dado a Marun entre os políticos.
Mostrando-se fiel a suas práticas jornalísticas, o UOL amanheceu na
segunda-feira, dia 9 de julho, com um layout diferente para a cobertura
do “caso Lula”. Ao lado de foto do ex-presidente há uma chamada em
letras garrafais para entrevista com o advogado e ex-ministro do STF
Carlos Velloso, na qual este qualifica a decisão de Favretto como
estranha e teratológica. Em seguida, defende a posição de Sérgio Moro
com as seguintes palavras: “O juiz é juiz 24 horas por dia. É assim
mesmo que se portam os juízes vocacionados. É possível verificar que
Sergio Moro é um juiz vocacionado. Ele procedeu muito bem”.
Mais uma vez, selecionamos um evento crítico, controverso, e
verificamos a prática da expressão da pluralidade de opiniões na
cobertura jornalísticas de grandes mídias brasileiras. Dessa vez os
casos foram a Band News e o portal UOL. Os resultados, ainda que não
surpreendentes, são alarmantes para aqueles que testemunham o
esfacelamento das instituições da democracia brasileira.
E pensar que ainda há aqueles polemistas de plantão, sempre sequiosos
para publicar suas opiniões isentas em veículos da grande imprensa, que
se exasperam ao ouvirem essa mesma imprensa receber a alcunha de PIG
por parte de seus críticos. Ora, difícil conceber caraterização mais
sintética, bem-humorada e verdadeira. A única dúvida que me resta é se
há ainda espaço para qualquer humor perante a calamidade que assistimos.
João Feres Júnior - Professor de Ciência Política do
IESP-UERJ, o antigo IUPERJ. Coordenador do Grupo de Estudos
Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) e do Laboratório de
Estudos da Mídia e Esfera Pública (LEMEP), que abriga o site
Manchetômetro (http://www.manchetometro.com.br) e o boletim semanal Congresso em Notas (http://congressoemnotas.tumblr.com)
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