Muita gente ficou chocada com o que teria sido um dos grandes
acontecimentos da semana: os aplausos entusiastas dos empresários
reunidos na sede da Confederação Nacional da Indústria para o candidato a
presidente Jair Bolsonaro. Mesmo diante do notório despreparo do
postulante ao cargo máximo da República, suas bravatas e frases sem
nenhum sentido ou cheia de preconceito e racismo como “não quero colocar
um busto de Che Guevara no Palácio do Planalto” ou “hoje estão tirando a
nossa alegria de viver, não podemos mais contar piadas sobre
afrodescendentes, sobre cearenses, sobre goianos”, mereceram, da nata da
burguesia, da dita elite empresarial brasileira, efusivos aplausos. Que
a elite brasileira é autoritária e se identifica com o autoritarismo do
capitão, não é novidade; que a elite brasileira é racista e que suas
blagues em relação aos afrodescendentes são partilhadas por uma patota
que se julga toda branca, não é de se estranhar; que os capitães de
indústria brasileira sejam machistas, misóginos, homofóbicos em sua
maioria, também não é notícia nova. Mas, creio que mesmo assim, esse
gesto de profundo significado simbólico e de enorme gravidade política:
ver a elite empresarial de um país disposta a apoiar alguém que tem em
sua ficha corrida o elogio à tortura, a suspeita de ter participado do
plano que levaria a explosão de bombas de baixa intensidade para
protestar contra os baixos salários dos militares, que quando na ativa
foi diagnosticado em documentos do próprio Exército como alguém
ambicioso e agressivo no trato com os camaradas a quem sempre queria
liderar, como alguém a quem faltava lógica, racionalidade e equilíbrio
na apresentação de seus argumentos, merece a busca de explicações mais
profundas, tanto do ponto de vista histórico, como do ponto de vista do
funcionamento da vida psíquica, seja no plano individual, daqueles que a
ele aderem e a ele desejam, como no plano coletivo, daqueles que a ele
se dispõem a seguir e a ele se subordinar. Não há aqui qualquer
contradição, pois, a vida psíquica, as subjetividades, seja dos
indivíduos ou dos grupos, como os membros da CNI, se formam e se
constituem historicamente e no interior de uma dada sociedade. A
subjetividade não é algo interno, fechada em si mesma, solipsista, ela é
produto do processo de socialização, de humanização, que se dá no
contato com os outros, com a cultura, os valores, as normas, as leis,
encarnadas pelas instituições sociais e, elas, por seu turno, pelos
indivíduos que as compõem. A atuação de nossa libido, de nossas pulsões
instituais, de nosso corpo se dá no interior do social, na relação com
os outros corpos, portanto, as nossas formações de desejo nascem dessas
relações. O desejo por Bolsonaro, pelo que ele representa, pelo o que
ele figura, nasce de processos históricos e sociais, individuais e
coletivos, que eu tentarei minimamente abordar.
Considero que o desejo por Bolsonaro, tanto no plano individual, como
no plano coletivo, é de caráter sadomasoquista. Nele misturam-se de
modo inseparável o desejo de domínio, de subjugação, de controle, de
anulação do outro, do diferente, do distinto, a demonstração explícita
de um poder sem limites, um desejo de aniquilação do outro, desejo de
morte. Mas, como sabemos desde Freud, a pulsão, o desejo é sempre
ambivalente, pode ser regressivo, pode voltar-se contra si mesmo, pode
infletir na própria direção do sujeito do desejo e, portanto, o desejo
de subjugação carrega consigo, também, o desejo de ser subjugado, o
desejo de controle, o de ser controlado, o desejo de anulação do outro, o
desejo de anulação de si mesmo. O desejo de destruição do outro pode se
tornar desejo de autodestruição, a vontade de poder sem limites pode
reverter em vontade de submissão sem limites. O desejo de aniquilação do
outro pode vir a ser o desejo de autoaniquilação, o desejo de morte do
outro transformando-se em desejo de mortificação de si, de nadificação
do si mesmo. Para entender Bolsonaro e o que ele representa, para
entender os bolsominions e o desejo que os move, para entender o que faz
com que nosso empresariado diga um dane-se para qualquer escrúpulo e
mostre a sua face fascista e escravagista que sempre procurou esconder
sob o verniz de seus paletós e gravatas e de sua pretensa educação
superior, é preciso entender o que leva as pessoas como indivíduos ou
coletividades a buscar a sujeição, como desde a infância internalizamos o
poder à medida mesmo que nos tornamos gente, que nos tornamos sujeitos.
A palavra sujeito, na língua portuguesa, possui uma ambiguidade que é
preciso ser aqui ressaltada e entendida para que possamos caminhar na
direção da compreensão do fenômeno do desejo fascista, da formação das
subjetividades e dos sujeitos fascistoides, do qual Bolsonaro é apenas
uma encarnação. Alguém para se tornar sujeito, isto é, para estar no
princípio de suas ações, de suas atitudes, de ser responsável pelo que
diz e faz, por ser, pretensamente, a origem de tudo o que lhe acontece e
de tudo que faz acontecer, de tudo que realiza e constrói, tem que se
sujeitar às normas e às leis que regulam a vida social, têm que
subjetivar, internalizar, encarnar os códigos sociais e culturais que
definem a própria condição de humano. Ou seja, para se tornar sujeito
todo ser humano se sujeita, para se subjetivar todo ser humano se
assujeita a forças e regras que lhe vêm de fora e que uma vez
apreendidas passam a lhe constituir, passam a ser seu dentro, passam a
constituir seu próprio desejo. Dobrado pelos poderes que o cercam, esse
corpo se humaniza ao introjetar as interpelações, as ordens, os
comandos, os ditames que lhe vem do social através dos outros que
nasceram primeiro que ele, que o antecederam, que são seus ancestrais.
Mas por que nos sujeitamos, por que assumimos essa servidão voluntária,
para ser sujeitos?
A criança humana ao nascer é um ser profundamente frágil e
desamparado. Ela depende dos outros, dos pais e, mais ainda da mãe, que a
amamenta e cuida, para continuar viva. O bebê ao mamar, ao compartilhar
o calor do corpo materno, ao escutar sua voz, ao precisar de seus
cuidados, vai fazendo o aprendizado doloroso da fragilidade, da
dependência, da necessidade dos outros, que caracteriza a vida humana.
Ao correr risco de vida se aquele outro corpo se ausenta, falta, vai
para longe, a criança desenvolve o apego e, portanto, a dependência em
relação ao outro. As relações libidinais, pulsionais, desejantes do
corpo da criança vão sendo moldadas nesses encontros com o corpo da mãe e
com outros corpos cuidadores. O apego necessário à sobrevivência será
aquilo que socialmente, mais tarde, se chamará de amor. Eu amo aquele
corpo que satisfaz os meus desejos, que me cuida, que me socorre sempre
que choro ou grito, eu amo no outro a mim mesmo, pois sem ele sei que
nada sou ou nada consigo ser. Mas, como o desejo é ambivalente, se
descobrir dependente, apegado, carente de alguém é também motivo de
desenvolvimento de sentimentos agressivos em relação àquele corpo,
àquele outro, até porque ele não pode estar o tempo todo à minha
disposição, ele é disputado e amado por outros seres, inclusive pelo
pai, uma espécie de rival do amor infantil.
A proximidade sempre constatada entre amor, agressividade e ódio,
advém dessa ambiguidade de um desejo que quer ser satisfeito, mas que
por ser satisfeito se sabe desejo, se descobre carência e falta de algo.
Imagine os traumas psíquicos que o desamor, o abandono, a agressão, a
violência, podem causar na formação da subjetividade infantil. Se em
casa, na vida familiar, não há ninguém com quem se apegar, a quem amar, a
carência, a falta, o medo de morrer levará a que essa criança e,
depois, o adulto que ele vier a se tornar, a se apegar a todo aquele que
lhe prometa a segurança, a continuidade da vida mesma, que sempre lhe
esteve ameaçada desde muito cedo. Numa sociedade em que a maioria das
crianças nasce em lares carentes: carentes financeiramente, carentes de
estrutura familiar, carentes de ordem e de autoridade, carentes de vida
simbólica e cultural, não é de estranhar o sentimento generalizado de
insegurança, o medo generalizado de morrer, a vontade de proteção, de
segurança, de ordem, o desejo de autoridade e de leis. Numa sociedade
onde a insegurança vivida na vida familiar, na vida doméstica, se
prolonga de forma assustadora para fora de casa, se a morte espreita a
vida em cada esquina, aqueles corpos que, muitas vezes, são
sobreviventes de uma vida que esteve assombrada pela possibilidade de
morrer a cada dia, tende a se sujeitar, a se tornarem sujeitos de ações,
ideias, propostas, formas de vida, formas de atuação social que
prometam reduzir essa fragilidade de seu viver: o que pode ser desde a
adesão a grupos armados, compostos de milicianos e traficantes, às
forças armadas do Estado até a qualquer liderança que lhes prometa
acabar com a carência de ordem, de segurança, com a vulnerabilidade que
constitui a vida mesma de nosso corpo, mas que é potencializada por
dadas condições sociais, raciais e de gênero no Brasil.
Não é uma anomalia que negros, mulheres e homossexuais se
identifiquem, desejem a figura de Bolsonaro, pois ela representa uma
espécie de revanche, de possibilidade de reparação dos danos sofridos
desde a infância por corpos fragilizados, carentes, dependentes,
marginalizados, subordinados, e que não viram seu apego e seu amor
correspondidos, nem em nível pessoal, nem em nível coletivo. Os
fascistas sempre arrebanharam os frágeis, os carentes, os mal amados, os
inseguros, os revoltados e rebeldes sem causa, os agredidos que se
tornaram agressivos, os traumatizados que querem infundir traumas, os
sofridos que querem se comprazer com o sofrimento alheio, os negados que
querem gozar com a negação e a nadificação do outro, os que nunca foram
ninguém, que nunca tiveram importância para ninguém e que querem se
fazer, na marra, na força, reconhecidas, querem que suas existências
como sujeitos sejam visibilizadas, os que foram sempre assujeitados
querem se fazer visíveis como aqueles que assujeitam. A malta fascista
costuma ter as almas e os corpos traumatizados, ela transforma o desejo
de vida em desejo de morte, pessoal e coletiva. Com a imagem de si
degradada pelas experiências que a formou como sujeito, tendo seu
narcisismo, seu amor por si mesmo rebaixados, tendo sua relação com seu
próprio corpo e sua própria vida marcadas pela abjeção de si, esses
sujeitos são capazes de muita raiva, ódio, até o limite da
autodestruição e da destruição coletiva. O fascista termina por amar
mais a morte que a vida, o que não significa que ele conscientemente
queira morrer, seja um suicida, mas todos esses processos se passam no
inconsciente e lá a pulsão de morte, os desejos tristes podem levá-lo a
procurar se colocar em situações pessoais e coletivas destrutivas.
Mas seria esse o caso de nosso empresariado industrial? Não duvido
que, individualmente, muitos possam ter experimentado essa trajetória,
mas creio que outras variáveis ligadas à produção de subjetividades e a
produção coletiva dos desejos expliquem a vontade por Bolsonaro dos
nossos capitães da indústria. Creio que nesse sentido as reflexões do
filósofo alemão Hegel sobre as relações entre o senhor e o escravo
explique melhor essa formação de uma consciência infeliz entre nossas
elites, já que elas advém de uma sociedade que viveu a escravidão por
cerca de quatrocentos anos e em sua esmagadora maioria são descendentes
ou seus ancestrais estiveram relacionados com elites escravocratas.
Hegel lembra que o escravo era uma mercadoria, portanto tinha assim a
sua condição de humano negada. Assim como a criança que não encontra as
condições de se humanizar, o escravo seria uma coisa, um objeto entre
objetos, não tendo aquilo que caracteriza fundamentalmente o ser sujeito
de sua própria existência: o direito de exercer o domínio sobre si
mesmo, de decidir suas próprias ações e reações, de poder expressar o
que sente e pensa sem estar sujeito à punição e ao castigo. A vida do
escravo, assim como a da criança, era uma vida precária, uma vida humana
negada em sua humanidade, o que a disponibilizava para a sevícia, os
maus tratos, a tortura e a morte. A educação escravista, que ainda
ressoa em nossas camadas populares, era uma educação visando a
dessubjetivação do negro africano aqui aportado, ela visava esvaziar
aquele corpo da formação subjetiva anterior, ela visava reconfigurar
aquela subjetividade, fazê-lo aprender a se sujeitar e, portanto, deixar
de ser sujeito social e culturalmente reconhecido. Se a criança que não
passa por um processo regular de socialização permaneceria como
esvaziada de subjetividade e, portanto, de humanidade, o escravo era
esvaziado à força, da subjetividade e, portanto, da humanidade de que
era portador. Nossas elites se formaram no aprendizado de como esvaziar
os outros de seu ser humano, elas se incomodam, portanto, a cada vez que
aqueles fadados a serem objetos, a serem mercadoria, reivindicam seu
direito de ser humano, seu direito de ser sujeito e não apenas
assujeitado. Quando negros, índios, empregadas domésticas, nordestinos,
pobres querem ser gente, essas elites se veem ameaçadas em sua própria
humanidade, temem passar de sujeitos a assujeitados e tratam de acabar
com a festa na senzala.
Mas, para Hegel, havia um problema em tudo isso: o escravo era posto a
trabalhar e, ao trabalhar, afirmava a capacidade humana de transformar a
natureza, de criar, de inventar o que não está dado ou posto no mundo. O
escravo se redescobria humano ao ver que suas mãos, que suas
habilidades, que sua inteligência, que sua imaginação, eram capazes de
criar coisas que ainda não existiam no mundo. O escravo se descobria
assim ativo no mundo e, portanto, sujeito de seu trabalho. E mais, o
escravo via o seu senhor se apropriar daquilo que ele produzia com o seu
trabalho. O escravo podia perceber que o senhor dependia de seu
trabalho. Numa reversão dialética, como costuma também a acontecer com
as crianças (com o tempo os pais precisam do apego e do amor de seus
filhos para viverem, inclusive na velhice precisarão do amparo que um
dia lhes deram), os escravos, mesmo sendo considerados coisas, eram eles
que acabavam por conferir humanidade a seu senhor que, por não
trabalhar, por nada criar e inventar com suas próprias mãos, por não
produzirem as coisas de que precisavam, nem mesmo a comida e a bebida,
podiam ter a sua humanidade negada. Quando se apropriava do fruto do
trabalho de seus escravos, os senhores se apropriavam de sua humanidade e
tornavam-na a humanidade deles. Era necessário que essa dependência dos
senhores de seus escravos até mesmo para existirem como humanos fosse
negada, fosse encoberta por toda uma produção discursiva, cultural,
conceitual, amparada no racismo, que tornasse o próprio corpo, a própria
carne dos escravos suspeita de não humanidade, de animalidade. As
teorias de superioridade racial, que ainda ressoam nas piadas de
Bolsonaro sobre afrodescendentes que, segundo ele, “não servem nem para
procriar”, era a tentativa de mascarar que o escravo era “os pés e as
mãos do senhor”, que o escravo era o corpo do senhor, era ele que lhe
dava a vida e a riqueza, a segurança e o amparo e, muitas vezes, lhe
dava, inclusive o sexo e o amor.
Não é difícil pensar a partir desse raciocínio, tão bem desenvolvido
em recente livro da filósofa norte-americana Judith Butler (a odiada
filósofa que causou manifestações patéticas dos coxinhas e bolsominions
quando veio ao Brasil e é acusada de ser a introdutora da “ideologia de
gênero entre nós), o comportamento de nossos empresários industriais. Se
os aplausos entusiastas a Bolsonaro se transformaram em vaias quando o
candidato Ciro Gomes expressou sua disposição em modificar a reforma
trabalhista aprovada pelo governo golpista que, como sabemos, foi uma
das exigências para que a FIESP se tornasse um dos carros chefes do
golpe contra a democracia (não podemos esquecer que os apoiadores de
Bolsonaro hoje, apoiaram o golpe e a ditadura militar de 1964), isso se
deve ao fato de que todo empresário sofre daquilo que Hegel chamou de
consciência infeliz e Nietzsche, outro filósofo alemão, chamou de má
consciência, por saberem que suas vidas, suas existências como sujeitos
econômicos, políticos e culturais dependem da existência e do trabalho
do outro, da existência e do trabalho do trabalhador, dos quais eles se
apropriam. A defesa da propriedade do trabalho de outrem, da apropriação
privada do trabalho alheio, é condição fundamental para a formação
dessa consciência culpada, que precisa constantemente construir
justificativas ideológicas de superioridade social, educacional,
civilizacional, de classe, de raça, de gênero para se tornar minimamente
justificável. As blagues do capitão com aqueles que normalmente formam a
classe trabalhadora (afrodescendentes, cearenses, goianos) soa assim
como um bálsamo para ouvidos marcados pelo desejo de justificar as
desigualdades e as hierarquias de fortuna e de condição social,
buscando, sempre que possível naturalizá-las, desresponsabilizando a
ordem social em que vivem, as leis e normas, os códigos e regras que
fundam essa desigualdade na constituição dos sujeitos humanos desde o
berço, o que facilita a naturalização ou mesmo a responsabilização do
divino por tais diferenças de destino. Mas sempre que o trabalhador
exerce seu trabalho (por isso o desemprego nada significa para a classe
empresarial, é uma espécie de vitória para o ser mesmo humano do
empresário sempre que o desemprego vem desumanizar o trabalhador), ele
reafirma sua humanidade e sua relevância social perante uma classe que
para ser relevante precisa concentrar em suas mãos a riqueza produzida
por outrem, se apossando da mais valia, do sobretrabalho. O empresário
se apossa do conteúdo de humanidade que há naquela riqueza para se
sentir humano e poder dizer que sua função social é fornecer trabalho, é
fornecer emprego, no que quer dizer que mesmo sendo o principal
beneficiado de um modo de produção desumano é ele que concede humanidade
ao trabalhador e não o reverso. Por isso toda reivindicação
trabalhista, toda vez que a classe operária se coloca como sujeito de
sua vida e de seu trabalho, incomoda profundamente uma classe que vive
de parasitar a humanidade alheia. Assim como os escravos afirmavam sua
humanidade não apenas trabalhando, mas resistindo de todas as formas à
escravidão, criando arte, cultura, religião, formas de vida, o que
incomodava os senhores que tinham que reconhecer a contragosto essas
manifestações de humanidade, sob pena de instaurar o permanente conflito
e afrontamento aberto em suas senzalas, o que inviabilizaria sua
produção. Toda vez que o senhor tinha que se curvar a um desejo do
escravo (assim como cada vez que nos rendemos aos desejos de uma
criança) estava reconhecendo sua humanidade e sua condição de sujeito. O
empresário reconhece a humanidade e o caráter de sujeito do trabalhador
quando ele se manifesta politicamente, quando ele faz greve, quando ele
produz seus próprios modos de vida. A reforma trabalhista tira direitos
dos trabalhadores, logo os torna menos humanos, menos sujeitos de suas
vidas e mais sujeitos, subjugados, assujeitados a patrões que dependem
disso para se sentirem sujeitos, para se sentirem gente.
Quando Bolsonaro disse que eles eram os seus patrões, o gozo só podia
ser generalizado. Depois que tiveram que viver por doze anos sob o
governo de um partido político que nasceu para dar aos trabalhadores a
condição de sujeitos de sua própria vida política, fugindo do
assujeitamento aos partidos dos patrões. Partido que levou ao poder um
operário, em quem aqueles senhores não só não se viam como igual.
Consciente ou inconscientemente julgavam que ele estar ali, naquele
lugar, usurpava o direito exclusivo deles de serem sujeitos da ordem
política. Lula, cada vez que entrava na CNI, lembrava àqueles senhores
de que seu papel de sujeito havia diminuído e que a humanidade deles,
que julgavam ser de outra qualidade, estava não só sendo contestada, mas
rebaixada. Ter um capitão que representa a força, a virilidade, o
poder, o masculino, o dominador, o branco, o rico, o heterossexual, aos
seus serviços, na condição de serviçal, de subordinado, de subalterno,
de pau mandado, inflama a libido e o desejo dos capitães de nossas
empresas. Mesmo que masoquistamente estejam contribuindo para sua
própria debacle como industriais, que estejam contribuindo para a
destruição do país, que estejam contribuindo para tornar o país
irrelevante no mundo e, por extensão suas empresas, que sonhem apenas em
vender o que têm o mais rápido para empresas internacionais e, com o
apurado, viver de dividendos da corrida rentista, o que os torna mais
improdutivos, menos sujeitos e menos humanos, mesmo que estejam vendendo
as riquezas do país que podiam ser a base de sua atividade, nossa elite
empresarial, colonizada, formada desde os primórdios na submissão e
subordinação às forças externas, colonialistas, são elites
subjetivamente colonizadas, que na sua formação internalizaram o
sentimento de ser menos, de ser menor, o que as fragiliza, ainda mais,
perante os trabalhadores e as outras classes sociais que têm, por isso
mesmo, de rebaixar, de manter na ignorância, na miséria, na carência, na
insegurança, na doença, pois somente diante de corpos e mentes mais
frágeis e fragilizadas é que se sentem sendo alguém e tendo força.
Ter um presidente da República como lacaio e serviçal, como é o caso
do que no momento ocupa a cadeira presidencial, que seja um nada do
ponto de vista intelectual e moral, é tudo que almeja uma elite formada
no sadismo contra os escravos, os trabalhadores, as mulheres, os
indígenas, os mais pobres, as crianças, mas que dado o caráter
reversível do desejo é também uma elite masoquista, capaz de gozar ao se
entregar gostosamente ao colonialismo e ao imperialismo, de se sentirem
mais fortes como parasitas das forças internacionais, de se sentirem
sujeitos quando se sujeitam aos ditames do capital internacional, de se
sentirem humanos só quando aplicam políticas desumanas contra aqueles
que os sustentam, dão a vida e a riqueza, dão o luxo e o conforto.
Bolsonaro encarna, é bem a expressão dessa força ao mesmo tempo
truculenta e frágil, machista e emasculada, poderosa e débil,
externamente vigorosa e internamente pavorosa de tanta decrepitude, um
jovem velho e decrépito como muitos dos nossos capitães de indústrias.
Em seu narcisismo, os capitães de indústria se miram no espelho do
capitão e se identificam com sua força fraca e sua potência impotente.
Depois de passarem anos sem ter um presidente com quem se identificassem
(como se identificarem com uma mulher e com um operário e nordestino? )
nossas elites industriais encontraram um homem para chamar de seu,
mesmo que esse homem seja Bolsonaro, a expressão mais desabrida e
descarada da má consciência, da consciência infeliz, do sadomasoquismo
de nossa burguesia, que nunca foi liberal de verdade. Nosso
neoliberalismo é uma nova versão do porrete, do chicote, da chibata (a
senadora Ana Amélia não me deixa mentir), das algemas e dos troncos em
que nossas crianças e escravos foram e são “educados” e em que querem
amarrar para assujeitar e desumanizar nossos trabalhadores. Temos um
elite empresarial que masoquistamente destrói o país a curto prazo, o
que levará à sua própria destruição a médio e a longo prazo, mas que
gozam com sua própria impotência transformada em impotência de todos. Os
que não podem permitir que outros venham a ter o poder, preferem a
impotência. E para impotentes, o simulacro de potência, de macheza e de
hombridade de Bolsonaro seduz. Isso explica os aplausos gozosos de
nossos industriais, a maioria deles sem indústrias ou fadados a
perdê-las. Mas é assim que se dá o gozo masoquista: na perda de poder,
na perda de humanidade, na perda do ser sujeito, contanto que esse gozo
gere prazer sádico na destruição dos demais. Muita gente aposta que na
última hora nossas elites não vão querer ver o circo pegar fogo: acho
que tocarão fogo e ficarão em seu interior se divertindo com a morte de
todos à sua volta. Em todo masoquista mora um sádico e vice versa. Cabe a
esperança que o candidato sádico ao se expor a um processo eleitoral de
forma masoquista venha a externalizar toda sua menoridade, sua
fragilidade, sua inconsistência, sua ignorância, e que os outros
percebam o engodo que ele é. Nossos industriais percebem, mas como eles
também são engodos, o processo de identificação e de espelhamento é
inevitável.
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