O emblemático caso de Lula está revelando que o conceito de ética está desmoronando a ponto de não se saber mais onde começa a verdade e a mentira
O caso Lula e os últimos acontecimentos em torno da tentativa de libertá-lo da prisão
a qualquer preço estão revelando algo mais profundo e grave: que, no
Brasil, o espúrio conúbio entre política e justiça está jogando por
terra o sentido sagrado da ética, que em suas origens supõe o
reconhecimento entre “o bem e o mal”, como já advertia o filósofo
Aristóteles. E quando um povo confunde os limites entre o bem comum e o
pessoal, quando zomba da ética, coloca-se às portas da ditadura.
Se instituições como a política e a Justiça são concebidas por seus
responsáveis como uma confraria de interesses pessoais, à custa das
pessoas, é inevitável que surja a tentação de soluções autoritárias para
impor e decidir o que é bom e o que é mau, à margem do que a sociedade
possa pensar.
E esse é um perigo real hoje no Brasil, onde o emblemático caso de Lula,
com tudo o que arrasta de paixões e interesses e que pode condicionar o
presente e o futuro do país, está revelando que o conceito de ética
está desmoronando a ponto de não se saber mais onde começa a verdade e a
mentira, a liberdade e a tirania.
Quando uma sociedade percebe que os principais responsáveis nacionais
por lutar pelo princípio da ética – vista como o sal que impede que a
democracia apodreça – são os primeiros a pisoteá-la e ajoelhá-la perante
seus interesses, não há nada de estranho que ela acabe envenenada,
dividida, incrédula e tentada a tomar a justiça nas suas próprias mãos.
Nesse ponto, a explosão de violência é inevitável.
Quando magistrados, juízes e políticos (preciso dar nomes?) usam seu
poder a favor ou contra os que consideram ser “deles”, em detrimento do
princípio de que ela deve ser igual para todos; quando os que nomeiam os
cargos consideram normal que os nomeados sejam gratos a esses padrinhos
ou ao seu partido, mesmo que à custa de usar dois pesos e duas medidas;
quando observamos esse conluio político judicial à custa da sociedade e
até da Constituição, não é de estranhar que as pessoas nas ruas vejam
isso como um grotesco espetáculo que não corresponde ao peso e à
importância de uma sociedade como a brasileira.
Que Lula seja julgado como qualquer outro cidadão, nem com maior nem
com menor rigor, já que a lei é igual para todos. Mas que a sociedade
sinta de forma palpável que esse rigor da lei serve também com os outros
personagens da política. Do contrário, não é de estranhar que acabe
convencida de que existem réus de estimação e réus para serem
perseguidos.
E quando uma sociedade se sente traída e burlada, não é difícil que
caia na tentação de jogar a ética na sarjeta para fazer justiça com as
próprias mãos. Pudemos ver isso nos últimos dias, depois da loucura judicial da ordem de domingo do juiz Rogério Favreto
de tirar Lula da prisão, e tudo o que isso desencadeou no mundo
político e judicial. Um episódio que serve para pôr sobre a mesa a
irritação nacional contra as diversas instituições. O eco que isso
produziu entre cidadãos de ambos os lados do espectro político foi
significativo e aterrador. Por parte da esquerda, os tuítes violentos
lançados à sombra do anonimato das redes, como os que diziam: “Eu queria
libertar Lula com as minhas mãos, e com as mesmas matar Moro”,
ou “Gente, é preciso mandar matar o Moro”. E pela direita, a divulgação
do celular do juiz Favreto, que também culminaram em ameaças de morte a
ele e à sua família, e até o tuíte do general Paulo Chagas, que, com a
cara descoberta, incita à violência contra o juiz que mandou soltar a
Lula: “Gauchada!!! O nome dele é Rogerio Favreto. É um desembargador
petralha, está de plantão no TRF.4. Será fácil encontrá-lo para
manifestar-lhe, com a veemência cabível, a nossa opinião sobre ele e a
sua irresponsabilidade. Ele é mais um apaixonado pelo ladrão maior.
Conversem com ele”.
Alguém poderá estranhar que a sociedade se sinta em guerra? Dividida
em lados, como quem a governa, quando vê que aqueles em quem deveria
confiar para que a deusa da justiça não seja estuprada a colocam aos pés
de seus piores interesses?
Até nas guerras, nos campos de batalha, existem entre inimigos certas
regras e pausas em que os soldados enfrentados param para conversar e
até se confraternizar. Na guerra do Brasil, não parece haver nem
momentos de pausa para refletir. Existirá alguém com autoridade e
moralidade capaz de erguer a bandeira branca da paz, ou os políticos
continuarão aproveitando o descontrole que criaram para continuar
pescando nas águas revoltas?
Quando na Espanha, há mais de 40 anos, faleceu o ditador militar Franco,
o país, ferido com mais de um milhão de mortos vítimas da guerra civil,
estava partido em dois. O então futuro rei Juan Carlos, perante o
cadáver do ditador, prometeu: “Serei o rei de todos os espanhóis”. Ali
começou a difícil e ainda inacabada reconciliação nacional.
Quando em um país perde-se a medida para distinguir o bem do mal,
onde a Justiça pode ter muitas caras e a ética aparece doente e
desprezada, a democracia corre perigo de morte e abrem-se as portas dos
fantasmas autoritários.
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