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terça-feira, 24 de julho de 2018

A eleição do fim do mundo, por Wilson Gomes.

A eleição do fim do mundo
Em toda parte, as pessoas parecem particularmente aturdidas com esta eleição (Arte Revista CULT)

Daqui a dois meses e meio, prontos ou não, estaremos já votando nas eleições de 2018. E daqui a um mês a propaganda eleitoral estará oficialmente autorizada e as campanhas correndo soltas. E o que parecia uma suspeita e um sentimento há alguns meses, confirma-se agora como certeza: há algo de muito estranho e fora do prumo com essas eleições. Mas, o que haveria de singular nelas, para além das circunstâncias do jogo político, alteradas substancialmente pelo terremoto do impeachment depois das eleições de 2014? Muitos tipos de respostas poderiam surgir, a depender do que se deseja abordar. No meu caso, vou me concentrar aqui em algumas hipóteses sobre o sentimento e a atitude dos cidadãos, na medida em que tais sentimentos e atitudes estão envolvidos na sua razão de voto, nos argumentos que justificam as suas decisões eleitorais.
Em toda parte, as pessoas parecem particularmente aturdidas com esta eleição. Perplexas mesmo. Antes de tudo, por causa da polarização política. Confesso que eu mesmo nunca vi um ciclo eleitoral tão dominado pela polarização, isto é, pelo abandono de posições moderadas ou interessadas em articular e equilibrar as divergências. As pessoas estão amontoadas nos polos e a sociedade se dividiu em pedaços políticos que não dão mais o mínimo sinal de que podem ou queiram ser recompostos em um projeto único e produtivo de país. E a atitude não poderia ser mais belicosa, baseada em uma lógica de ou tudo ou nada e movida por certeza de que não se pode ceder ao outro lado, nem que o custo disso seja nefasto para todos: prevalecendo o meu ponto de vista, pereça o país e o mundo que eu não me importo.
A segunda característica assombrosa destas eleições é o sentimento antipolítica, que já considerei aqui em outras ocasiões. Trata-se, basicamente, da convicção generalizada de que a atividade política é vil e indigna, e de que procedimentos e instituições da política, como partidos e governo, estão irremediavelmente comprometidos do ponto de vista moral. Esta posição, em geral, conduz as pessoas mundo afora à apatia e ao cinismo – elas simplesmente deixam de acompanhar a política e de se envolver com ela e adotam o desprezo cínico com relação ao sistema político e ao Estado. Mas no Brasil, não. A antipolítica, paradoxalmente, é acompanhada por intenso engajamento político e por um sentimento muito agudo de ultraje moral, de indignação ética. Atualmente, somos cínicos em tudo, menos em política. Em política estamos arrebatados por uma fúria descomunal, que não apenas se dirige aos adversários da minha posição política (polarização), como também se volta contra o inteiro sistema político. O que pode resultar de uma eleição em que as pessoas odeiam a política, descobriremos em breve.
A terceira característica perturbadora das eleições de 2018, portanto, é a participação e o engajamento das pessoas. Depois de um enorme ciclo de decadência dos índices de interesse político e de participação, que vinha desde os anos 1960, os brasileiros descobriram uma paixão política sem precedentes. Quem há alguns anos tinha a maior preguiça até de acompanhar a política pelos meios de comunicação, agora milita diuturnamente em grupos de WhatsApp como se não houvesse amanhã, mata e morre pelas suas causas, usa as preferências políticas como critério para selecionar amizades e outros relacionamentos, sofre e se angustia com a cobertura política desfavorável ao seu lado, revolta-se e se insurge contra decisões judiciais, julgamentos do STF e até com posts políticos em redes digitais. E dá-lhe distribuição de fake news e de qualquer recurso que ajude a derrubar o adversário, a este ponto transformado em inimigo, ou confirmar a nossa fé.
A quarta característica destas eleições que eu gostaria de destacar tem a ver com as chamadas “pautas morais”. Claro que decisões baseadas em julgamento de valor sobre o caráter das pessoas e sobre desacordos morais costumam aparecer em eleições, mas é a primeira vez que vejo uma eleição em que políticas públicas voltadas para a resolução de problemas materiais podem ser menos importantes, para a decisão de voto, do que a guerra moral dos conservadores contra os liberais. Candidatos serão escolhidos por sua afinidade a valores conservadores. E políticas públicas morais, relacionadas a questões de gênero ou orientação sexual, por exemplo, podem ser mais importantes do que políticas fiscais, reforma previdenciária, ajuste nas contas públicas ou melhoria na prestação de serviços públicos.
A quinta e última característica é a fragmentação incoerente. O sistema político subestimou o efeito do impeachment, na pressa que os interessados tinham de aproveitar a janela de oportunidade criada pela fragilidade política de Dilma Rousseff, pela virada contra o governo da opinião pública em seguida aos protestos de 2013 e 2014 e pela crise nas contas públicas brasileiras que ficou escancarada em 2015. Imaginaram provavelmente que poderiam controlar uma ruptura política de tal monta dirigindo os seus danos exclusivamente à presidente eleita, ao PT ou, no máximo, à esquerda politicamente hegemônica depois de quatro vitórias presidenciais consecutivas. O resultado não previsto foi o mais completo desarranjo de todo o sistema, desencadeando um sentimento antipolítica sem precedente, poluindo e envenenando de tal maneira o ambiente político, seja nas instituições políticas que na opinião pública, de forma que as diferenças viraram divergências inconciliáveis, as pontes foram queimadas e cada um dos tantos lados da fragmentação política alimenta expectativas de extinção dos lados que odeia ou teme e afia facas à espera de uma oportunidade.
Assim, vamos às urnas com 35 partidos, muito deles recentemente e curiosamente renomeados. O que, per se, é já uma pulverização institucional capaz de deixar boquiabertos observadores internacionais. Pior que isso, contudo, é que, como partidos, em sua maioria, já não significam coisa alguma para as decisões de voto, as clivagens que nos dividem sequer ganham um formato institucional compreensível e administrável. Há pautas materiais (o partido do “queremos reformas”) e pautas de guerra moral (o partido do “queremos a família tradicional de volta”) colidindo ou se aglutinando, temos agendas voltadas para resolver problemas concretos (“política fiscal”, “concentração de renda”) e agendas morais abstratas (“todos contra a corrupção”). Dá quase uma prioridade, uma urgência, um diagnóstico dos problemas sociais e uma proposta de solução lacradora e definitiva por cidadão, sem que qualquer força pareça, neste momento, capaz de organizar os votos, estabelecer prioridades primárias e acalmar o turbilhão incoerente e inconsistente de causas por minuto em que estamos metidos. Na barafunda política de hoje, o que vemos, ao contrário, são militantes contra “a ideologia de gênero” que se veem, de forma esdrúxula, aliados de reformistas da Previdência e intervencionistas militares que acreditam estar do mesmo lado dos “liberais miseanos”, apenas porque consideram que o seu inimigo comum é a esquerda. A esquerda da sua imaginação. Assim, as agendas morais se aglutinam ou colidem com agendas de política econômica ou de política social, levadas mais por sentimentos e fantasias, orientadas mais por compreensões imprecisas e confusões mentais, do que por qualquer lógica sã e produtiva.
O tipo de país que pode emergir de uma escolha da elite política em condições tão peculiares é justamente o que nos faz ter medo desta que já está sendo considerada, não com alguma razão, a eleição do fim do mundo.

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